Quando o superego cochila…

Estava eu conversando com minha mãe no ponto de ônibus. Papo vai, papo vem; quinze minutos e nada do bexiguento.
Quando ele apareceu, parou perto de onde eu e um senhor fizemos sinal.
Nesse momento aconteceram muitas coisas ao mesmo tempo.
Por educação, eu fiz um gesto para que o senhor subisse na minha frente e rapidamente voltei a atenção para minha mãe de novo, pois ela estava a meio caminho de terminar uma última frase que encerraria nossa conversa. Mas, nesse meio tempo, o senhor resolveu não subir na minha frente, e foi gentil o suficiente para querer que eu fosse primeiro. Mas minha mãe (meio prolixa, é verdade) ainda não tinha terminado a frase. Eu rapidamente devo ter pensado algo do tipo: “Senhor educado, mas seria realmente bom que ele subisse primeiro para eu poder me despedir melhor”. Por isso eu permaneci parada e insisti: ” pode subir o senhor”! Só que o motorista começou a andar com o ônibus antes que qualquer um de nós dois movesse um músculo! Narrando assim para vocês, pode parecer que passou muito tempo, mas foi coisa de cinco segundos apenas. O motorista deu, sei lá, duas pequenas aceleradas como quem ia arrancar. Foi quando eu levantei o rosto para ele e comecei: “Que isso?! Tá maluco! Tchau, mãe! (E subi no ônibus). O senhor tá doido acelerando desse jeito! Não tá vendo que tme gente para subir”?! O motorista falou com uma voz xôxa: “Tá enrolando aí”… E eu raivosamente continuei: “Enrolando não! O nome disso se chama educação! Que o senhor não tem! Eu, hein! Nunca vi isso! Tá maluco! Ah! Tô trabalhando também desde oito da manhã! Eu, hein”!
Depois disso eu fui sentar sorrindo.
O sorriso era se alegria por ter conseguido expressar descontentamento assim de forma tão espontânea. Isso não é comum na minha vida. Avalio que não fui particularmente agressiva ou grosseria, mas deixei claro meu descontentamento. O motorista também não se exaltou. Pensando com calma sobre a situação, repassando a cena na minha cabeça, eu inclusive pensei mais na resposta e no tom de voz do condutor quando disse que estávamos enrolando para subir. Ele pareceu mais um adolescente contrariado do que um homem irado. Trabalhar é estressante, convenhamos. Como motorista de ônibus no Rio de Janeiro, isso deve acrescentar um quê de desespero ao estresse comum do trabalhador. Cinco segundos de atraso já deveria estar parecendo uma eternidade para ele. A conclusão é que eu fico feliz de ter me colocado, apesar de tudo eu sou gente também e tenho meus sentimentos. Mas eu não fiquei com raiva ou mágoa, pois eu consigo me imaginar naquela situação que o sujeito estava fazendo a mesma coisa num dia mais estressante da minha vida. Eu consigo compreender de onde parte essa atitude. Eu não sei se essa minha interpretação é verdadeira, mas não importa, foi a atitude de empatia que eu procurei exercitar naquele momento.
Por todas essas questões, na hora de descer, eu agradeci ao motorista e fui embora feliz da vida.
No entanto, algo ainda me intriga: o fato de eu ter me expressado assim de forma tão enfática e ainda por cima totalmente espontânea. Normalmente, quando era para eu ter uma reação desse tipo, eu me reprimo intensamente. Era para ter como? Quando eu sinto vontade de gritar e brigar com a outra pessoa, eu sinto as palavras virem na garganta, mas as engulo a seco e depois fico me dando chibatadas por não ter me defendido contra a ofensa. Na maioria das vezes, é isso que acontece. Mas, em um momento ou outro, subitamente, de dentro de mim jorra um tsunami, eu explodo numa erupção de Pompeia e eu bufo tufões. Como isso acontece eu não sei explicar. Eu estou me sentindo mais confiante naquele dia? Ou já estou tão de saco cheio, transbordando, aí vômito tudo? Não me aprece que eu estava nenhuma dessas coisas. O que eu sei é que, naquele dia, eu estava feliz, simplesmente. Será que é a própria felicidade que nos liberta de certas amarras? Vou atentar para episódios futuros desse tipo para ter mais informações…

Adeus ao Museu Nacional. 

O museu queimou de verdade. As primeiras noticias que eu vi, eu não acreditei. Pensei: é aquele amigo bobo postando fake news de novo. Mas aí começaram a pipocar as reportagens, apareceram os testemunhos e as notícias no rádio e na TV e, ainda assim, a ficha demorou a cair.
Eu vou abrir meu coração e dizer para você que eu já sofro com os objetos históricos não encontrados ou já há muito tempo perdidos. Explico. Eu me pego pensando, de vez em quando, se não existem objetos valiosos soterrados, por exemplo, debaixo das grandes cidades. De baixo do concreto, do asfalto e dos prédios do Centro da Cidade. Às vezes eu me pergunto: será que antes de construírem alguma coisa, eles reviram o solo e se certificam de que não há nada de valioso enterrado ali?
Lá na Gamboa, vale a pena conhecer, existe o Memorial aos Pretos Novos. Quando era feita a travessia dos negro escravizados pelo Atlântico para o Brasil, muitos sucumbiam às doenças e aos maus tratos. Quando chegavam aqui, seus corpos eram jogados em covas coletivas e a localidade era conhecida como cemitério dos pretos novos. Os historiadores sabiam da existência desse cemitério, ma sua localização era completamente desconhecida até 1996, quando foi feita uma obra na fundação de uma casa localizada na Gamboa. Com as primeiras escavações da obra, foram encontradas ossadas humanas pertencentes aos negro mortos. Eu chorei e fiquei arrepiada da primeira vez que ouvi essa história.
Deve ter muita coisa enterrada por aí que a gente não conhece.
Outra questão que me traz muita reflexão e pesar, é a curiosidade e o pesar por artefatos há muito perdidos. Como é o caso da Biblioteca de Alexandria. Eu já investi algum tempo de vida imaginando o que havia lá.
Então imagina a situação quando eu realmente me dei conta do que havia acontecido com o nosso museu. É realmente difícil de acreditar. Extremamente lamentável.
O conhecimento é o que nos faz andar para frente e o que dá o fôlego da luta de quem não quer repetir as atrocidades do passado. Conhecimento é o poder de construir um mundo melhor. A ausência dele significa atraso, doença, desigualdade, injustiça, terror.
No fundo, no fundo, eu não choro nem pelas peças que estavam lá (espero que tenham registro de tudo), o que é verdadeiramente assustador é o que esse descaso representa e o futuro que ele anuncia. Junte isso com a situação da educação e se pergunte o que dá para esperar do futuro deste país.

Link do Memorial dos Pretos Novos: http://www.museusdorio.com.br/joomla/index.php?option=com_k2&view=item&id=83:memorial-dos-pretos-novos#sobre_o_museu.

Mude sua maneira de ver a vida ou mude a própria vida. 

Quando eu vou trabalhar na Barra da Tijuca, ou em qualquer outro lugar longe da minha casa, existem algumas opções de trajeto para mim, utilizando transporte público. Todas elas são extremamente agradáveis.
A monotonia é apenas aparente, é para aqueles que não sabem apreciar o mundo. Na verdade a vida, tanto dentro quanto fora da minha cabeça, é extremamente rica.
Basta parar e prestar atenção à natureza ao redor, quando você está subindo de ônibus o Alto da Boa Vista, que você vai ter uma impressão diferente em cada viagem.
Indo de metrô, aproveite para ler um bom livro, seja o livro físico seja um e-book. Nem preciso falar, não é? Quem lê vive mil vidas em uma. Outra opção muito interessante é ouvir música. Músicas animadas, emocionantes…. Diferentes tipos de música, para cada ocasião, cada estado de espírito… Elas vão enriquecer a sua viagem além de proporcionar fortes emoções.
Quando você consegue sentar e está muito cansado (se você não estiver paranóico com a violência da cidade), você também pode investir naquele cochilo. Compre aquele colar para apoiar o pescoço para melhorar a qualidade dessas sonecas. Aí sim elas terão potencial para serem verdadeiramente revigorantes!
Se você passa esse tempo dirigindo, a esperança para você não está perdida. O investimento pesado em música e audiobooks vão salvar sua vida!
Quem gasta muito tempo em viagens e engarrafamentos na cidade, não pode se dar ao luxo de desperdiçar essas horas valiosas. Você está jogando a sua vida no lixo quando fica lamentando o fato de ter que passar esse tempo no trânsito. Se você achar que nenhuma das opções acima é viável para você, mude de emprego ou de casa. Sofrer, não vale a pena. Faça um favor a si mesmo: mude sua maneira de ver a vida ou mude a própria vida.
Eu me concentrei em falar neste texto especificamente sobre o trânsito, pois é um fator relevante da vida no Rio de Janeiro. Mas a idéia vale para todas as coisas que nos geram insatisfação. Pense nisso.

Praia, peixe, pestana. 

Hoje aproveitamos o feriado indo à praia.
Calor, água gelada, areia.
Vocês não sentem saudades de brincar na areia não? Falei para meu marido que, por enquanto, eu penso em ter filho nessas horas: quando eu quero uma desculpa para, com quase trinta anos, ficar construindo castelos (desengonçados) de areia. Não que a ausência me impeça, esse é o tipo de mico que eu pago sem problema nenhum. Mico é roubar e não poder carregar, tudo mundo sabe. Deixar de brincar na areia quando se tem vontade é só ser um velho recalcado.
E ainda, no fundo, no fundo, vou ser absolutamente sincera com vocês, uma das melhores coisas a respeito da areia da praia, é o fato de que ela, as vezes, vai parar dentro da boca e você, como quem não quer nada, fica ali, só mastigando e estalando os grãozinhos (o que, na verdade, é mais um tabu nacional. Eu tenho certeza de que todo mundo passa por isso, mas niguem fala sobre ou admite que gosta).
Depois da praia, peixe. Muito bom. Com uma vista maravilhosa. No restaurante Point de Grumari. Já foram? Dá para ver o local (inacessível) onde o fora Temer passou o carnaval, se não me engano. Lindo o lugar. Isso que salvou o fora Temer, na verdade, por que, se não, os frequentadores do restaurante, durante os dias de carnaval, não teriam hesitado em mandar a coisa toda pelas ares com um tiro de canhão (rumores que ouvimos).
Enfim, na volta, quem não dirige, cochila no carro. Chegando em casa, mais cochilo. Ainda bem que alguém aqui pensou: tudo bem que são apenas sete da noite e eu só vou dormir meia horinha, mas eu vou botar o celular para despertar, só por garantia, para poder ter certeza de que eu vou acordar para escrever o texto do blog.

Enchente na Praça da Bandeira. 

Ontem, quarta feira de cinzas, fechando o carnaval,  choveu muito no Rio de Janeiro.
Hoje eu só acho importante informar aos moradores da cidade que, ao contrário do que diz a mídia, a Praça da Bandeira ainda inunda. Portanto, fiquem atentos em dias de chuvas!
Eu moro de frente para a Praça e fiquei de meia noite até as quatro da manhã acompanhando a enchente.
Muitas pessoas ficaram presas na própria Praça, em cima da passarela, em um ônibus que tentou mas não conseguiu atravessar a rua alagada, lojas inundaram e comerciantes perderam suas mercadorias, o trânsito ficou interditado por quatro horas até que a água finalmente abaixou e o tráfego foi normalizado.
Foi bastante tenso. Eu nuca tinha visto algo parecido. No meio da cidade, como é possível que um local fique completamente alagado. Uma piscina gigante, suja e com uma correnteza considerável! Os moradores se esforçando para salvar o que fosse possível.
Quando eu via as enchentes da Praça da Bandeira na televisão há anos atrás eu pensava: gente, é tudo aberto! É rua! Como é que enche?
Eu não sei muito bem ainda como enche, mas enche mesmo e enche muito. E é de uma hora para outra. Eu publiquei ontem no Blog que eu passei o dia cuidando do meu jardim. De noite, eu ainda estava no apego total com as minhas plantas, fiquei um bom tempo na varanda com elas, até que a chuva começou. Ainda fiquei um tempo olhando os raios (quem não gosta de ficar vendo o céu em dia de chuva?). Então eu encostei a janela e saí da varanda. Como continuou chovendo e ventando muito, eu voltei para fechar a janela completamente, não tinham se passado quinze minutos, e a Praça já estava de baixo d’agua. Para completar, havia faltado luz, situação que também só foi ser normalizada no fim da madrugada. 
Portanto fiquem alertas e tomem cuidado!

Você prefere morrer de frio ou de calor?

As sensações térmicas corporais são coisas muito estranhas.
Parece que, pelo menos o meu corpo, não tem memória térmica nenhuma.
Quando eu estou com frio eu fico pensando: “ah, meu deus! Que coisa horrível deve ser morrer congelada. Suas extremidades ficam roxas e dormentes e, se bobear, quebram que nem copo que escorrega da mão enquanto a gente lava louça”!
Nesses momentos, me bate aquele desejo do sol forte de quarenta e cinco graus do Rio de Janeiro na minha testa.
Então, eu saio de algum lugar gelado (recentemente eu passei isso no cinema. Fiquei lá congelando durante o filme e não via a hora de ir para a rua) e vem aquele bafo quente na minha cara, mas, nos primeiros instantes, eu ainda estou tipo: “ah! Que delícia! Eu não sei como eu cheguei a pensar que eu odiava o calor”!
Ok. Só que aí eu ando dois minutos no sol e já estou suada, fedendo, morrendo de sede e me lamentando: “como deve ser algo tenebroso morrer de calor! Você morre fedido, suado, com a garganta seca de sede (infecção urinária no meu caso, porque quando eu fico sem beber água, ela ataca). Que horror! Mil vezes morrer de frio. Dizem que vai só dando sono e você morre em paz”.
Ou seja, minha vida no Rio de Janeiro é uma montanha russa de sentimentos em relação à temperatura.
Seria maravilhoso se o corpo não tivesse problema de memória: “poxa… Eu acabei de passar o maior sufoco… Duas horas nesse frio do caralho. Vou aproveitar aqui agora duas horinhas no sol tranquilo…. De boa… Sem começar a exalar fluidos e odores desagradáveis”.

Vai subir, motorista!

Outro dia, estava eu suando dentro de um ônibus na Presidente Vargas. Era o meio da tarde, o sol estava alto ainda, um calorão, mas o ônibus estava vazio. Graças a deus. Havíamos acabados de sair do ponto da Cidade Nova em direção à Praça da Bandeira.
Foi quando a vi apontando para o céu, gritando para o motorista que acelerava; uma mulher que seria deixada para trás. Meu coração disparou e eu ainda olhei para o motorista: vai subir! Mas, no lugar de demonstrar compaixão, ele deu um sorrisinho maroto e foi embora.
Mais adiante, já perto da estação de São Cristóvão, escuto o motorista xingando e gritando, ele gesticula e eu me levanto assustada.
Que isso? Assalto?
Com quem você pensa que está falando – grita uma voz aguda.
Começo a espixar o pescoço e olhar para os lados. O que está havendo?
Os outros passageiros, muito sagazes, já explicam: não, o que aconteceu foi o seguinte, ela fez sinal lá atrás e ele não parou. Foi isso.
Vou até as janelas da frente do ônibus do lado do motorista e vejo um táxi fechado o ônibus e a tal mulher em pé no meio da rua gritando com motorista que ele não sabia quem ela era, ele não tinha idéia de quem ela era. Ah! Se ele soubesse. Ela xingava o motorista e de quebra, o prefeito da cidade, e todo mundo ia pegar. Aquilo não ia ficar daquele jeito.
O motorista se engaja na conversa: eu sei, sei muito bem quem você é sim. Minha senhora, você quer saber quem eu sou? Vou te falar quem eu sou. Você vai ver bem.
Eles pareciam que não iam se cansar nunca daquela discussão. Mas os passageiros começaram a reclamar: Vamos embora motorista!
Ele engata a marcha ré, a mulher ainda dá um trote atrás dele e esbofeteia o ônibus que consegue se desvencilhar e arrancar. O motorista xinga a mulher até o Meier, pelo menos.
Eu saltei na Dias da Cruz me perguntando quem devia ser aquela mulher, no fim das contas? Meu primeiro impulso foi pensar: juíza. Mas, porra, pegando ônibus?!
Me distraio porque ouço a voz de novo, já familiar, lá estava ela, dentro do táxi, colada na traseira do ônibus.
Vai dar merda, com certeza.

“Eu espio com os meus olhos”. Parte V.

Eu já falei com vocês do Solícito, que me importunou nos primeiros meses de faculdade.

Além dele, havia um outro menino, que me zoava como se ainda estivéssemos na quinta série: “quantos dedos têm aqui”, “que cara eu estou fazendo”, “está vendo que dedo é esse aqui levantado” e todos os outros clássicos. Mas eu só tenho a agradecer pelo sentimento que todos nós tínhamos de que havíamos amadurecido, pois o menino foi logo desencorajado pelas caras de paisagem que as pessoas ao redor faziam para as encheções de saco dele.

A faculdade de psicologia era meio, digamos que, no mínimo estranha, nos primeiros períodos para quem entra achando que vai aprender a desvendar os mistérios da mente humana nas primeiras duas horas de aula.

Logo na segunda feira do primeiro período da faculdade, passávamos o dia inteira no campus do Fundão assistindo aulas no CCS – Centro de Ciências da Saúde. Anatomia, histologia, genética e embriologia. Isso tomava o dia inteiro.

A princípio, na verdade, ir para a faculdade teria sido um grande desafio para mim, mas a minha mãe conseguiu continuar me dando carona de carro nos dias que eu tinha aula de manhã cedo. (Nas primeiras cinco vezes que ela me levou no Fundão nós nos perdemos lá dentro. Uma comédia).

Então, carona para ir para o Fundão, na volta, vinha todo mundo junto. Tranquilo nesse ponto.

Mas, enfim, essas matérias no fundão ainda exigiam bastante da minha visão, só que eu estava com tanto gás e tão empolgada, que eu copiei os cadernos dos colegas, li os textos, fiz pesquisas na internet e dei conta de passar em todas as matérias biológicas; nos períodos seguintes, ainda tivemos fisiologia I e II. Eu até que gostava dessas matérias.

Estatística foi mais complicado, porque era chato e a empolgação inicial já estava passando.

No segundo e no terceiro período fizemos estatística I e II. Ok. A princípio eu até aturei. Eu ficava dentro de sala, li O Morro dos Ventos Uivantes naquelas aulas. No terceiro lá estava eu novamente, em estatística II. Mas… Eu já estava na faculdade! Já havia sacado há muito tempo que era possível ir e vir da sala de aula sempre que desejasse. Pedi dispensa das aulas, não queria ir mais nem para assinar a chamada, o professor disse: “Você faz o que quiser, minha filha, só que tem que ter nota pra passar”. Maravilha. A nota eu consegui.

Depois disso, nunca mais tive nenhum estresse com quadro ou slide ou qualquer coisa do tipo. Às vezes até tinha, mas era algo completamente dispensável.

A maior descoberta que eu fiz nessa época, a coisa mais importante que a faculdade me trouxe, foi a intuição profunda de que eu tinha nascido para aquilo ali mesmo: estudar.

Cara… Ninguém nunca teria suspeitado que esse era um dos meus principais talentos. Gostar de estudar de um tudo. No segundo período decidi que eu ia cursar o mestrado. E ia ser um mestrado em filosofia. Tem um salto aí, certo?

Foi um caminho tortuoso, mas muito bom.

Eu entrei na psicologia para saber o que era o ser humano. Mas a resposta que a psicologia dá para essa pergunta não é das mais satisfatórias. A psicologia comporta diversas visões diferentes a respeito do que é o ser humano, quais são as suas caraterísticas principais. Bom, logo eu esbarrei com duas explicações para este problema: uma metodológica e outra ontológica.

A explicação metodológica fala do método empregado pelas ciências humanas no estudo de seus objetos. Como o ser humano não é um objeto tal qual os das ciências naturais, como os objetos da física, por exemplo, que podem ser estudados por diferentes cientistas e todos vão chegar às mesmas conclusões a respeito dele; dependendo do método que você utiliza para estudar o ser humano, você vai chegar a uma concepção diferente a seu respeito.

A explicação ontológica, contudo, foi a que me encantou. O que precisamos é descobrir a essência do ser humano e construir uma teoria psicológica a partir daí.

Segui firme e forte por esse caminho e dei a cagada de encontrar um professor da filosofia para me orientar já no meu último período de faculdade. Tive que ir para a filosofia, pois a psicologia não é muito chegada a esse tipo de estudo teórico.

Isso é importante porque, ao longo da graduação, eu peguei inúmeras matérias na filosofia, inclusive lógica. E, no início do mestrado, como eu o cursei no Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, eu tive lógica de novo. Essas matérias dependiam do quadro e dos slides. E foi extremamente gratificante perceber que eu já não sentia nenhum enjoo ou frio na barriga ou nervoso com essa situação. Os anos já passados na faculdade e a confiança que eu havia adquirido, meu novo olhar sobre a educação, o reconhecimento de que não era eu a errada e a culpada por todos aqueles miseráveis anos escolares, enfim, depois de tudo isso, não enxergar do quadro deixou de ser um problema.

Ah, não posso deixar de mencionar um recurso tecnológico novo que também mudou a minha vida: smartfones com boas câmeras. O professor mudava o slide eu tum! Tirava foto e ficava ali com o slide na minha mão, ampliando-o o quanto fosse necessário.

Perto do final da faculdade, eu viajei sozinha para a Alemanha. O medo do problema de visão bateu novamente. (Imagina minha mãe como ficou). Eu ia fazer um curso de alemão lá e fiquei com medo de não acompanhar. E eu tinha que acompanhar por ser aluna bolsista. Ia pegar muito mal se eu não fosse bem neste curso. Eu estava nervosa de novo. Mas, por incrível que pareça, uma professora rodeada de vinte alunos do mundo inteiro conseguiu lidar melhor com a situação do que meus professores aqui no Brasil. Inclusive, nessa turma tinha um rapaz que via ainda menos do que eu! O material do curso era todo preparado com antecedência e, apesar da professora usar bastante o quadro, tudo que ela escrevia era dado para nós dois no papel e ela ia nos mostrando  onde estava conforme avançava a aula. Todas as placas de rua, monumentos e tal, eu via com a câmera do celular. O transporte também não era desafiador, pois eu só andava de trem e os ônibus eram pegos em um terminal. Pelo menos nas cidade de Freiburg e Berlin era assim, que foram as cidades que eu visitei.

De volta ao Rio de Janeiro, contudo, pegar ônibus ficou ainda mais difícil depois que os pintaram a todos de cinza.

Como as aulas da faculdade ocorriam em diversos horários, minha mãe nem sempre podia me levar. Eu sofri bastante nesse sentido e isso, infelizmente, até hoje não passou. É o inferno para o deficiente visual pegar ônibus nessa cidade.

Pedir ajuda? 1- Nem sempre tem gente no ponto, 2- às vezes eu tenho que falar com duas ou três pessoas quando o meu ônibus demora mais do que o delas, 3- tenho que ficar ouvindo mais blá, blá, blá: “cadê o óculos, hein?”, “Moça tão bonita, não tem que ficar com vergonha de usar óculos não”, “Vai pegar ônibus a essa hora? Vai para onde?”, “Sabe que faz mal forçar a vista assim, não é?”, “Cadê seu namorado para ajudar? Nessas horas é bom, não é?”, “Se você não consegue pegar ônibus, por que você não aprende a dirigir?”, “Ih… Olha o seu ônibus indo lá. Você quer que faça sinal no próximo, é isso?”. Acredite, não é fácil ser obrigada a depender da boa vontade dos outros.

Além dessas bobagens, certa vez, no ponto em frente a faculdade…

– Moço, com licença. Eu não estou conseguindo ver os números dos ônibus muito bem, o senhor pode me ajudar a pegar o 433?

– Você não enxerga não, é?

– Não eu tenho um problema de visão.

– Está conseguindo ver meu rosto?

– Assim no escuro não muito bem, não.

– Então me passa o dinheiro agora, anda!

Isso mesmo. Fui assaltada numa das vezes em que pedi ajuda. Meio traumático. Hoje em dia eu evito. Faço sinal para todos os ônibus até parar o meu. Inconvenientes: em pontos muito movimentados passam vários ônibus juntos e eu só consigo verificar um ou dois, eu fico correndo de um lado para o outro o que é bastante cansativo e demora.

Por falar em demora, certa vez eu consegui um estágio em um hospital psiquiátrico, na Gamboa. Era praticamente impossível chegar lá sozinha, eu só tinha uma opção de ônibus, que passava pouco em um ponto bastante movimentado. Quando eu não estava com um amigo que estagiava lá junto comigo ou com minha mãe, era um parto pegar aquela merda. O professor, psicanalista, usou isso e os meus questionamentos do pensamento lacaniano para me expulsar do estágio afirmando que não, eu não tinha problema com Lacan e nem com a minha visão, mas sim um problema psicológico que devia ser tratado em análise. Saí chorando de ódio da sala naquele dia, estava triste também, mas estava com mais raiva. Mais um imbecil dizendo que o meu problema era alguma neurose a ser analisada.

Hoje em dia, quando eu não posso me atrasar, eu vou de táxi. Uber eu evito pegar sozinha, porque não consigo enxergar a placa para conferir o carro. Mas na época daquele estágio eu não tinha dinheiro para isso ainda. O estágio, inclusive, não era remunerado.

Nem sempre é fácil transformar dinheiro em qualidade de vida, porque a despesa que eu teria que ter para me locomover com tranquilidade pela cidade é enorme. Se eu investir nisso, vou perder idas ao cinema ou passeios com meu marido e amigos.

Até hoje minha mãe me leva de carro a todos os lugares que é possível para ela. Além disso, eu vim morar em um apartamento que fica de frente para quatro pistas, em todas elas passam ônibus indo para diversos lugares do Rio. Também estou a vinte minutos do metrô. No caso dos ônibus, meu marido vê os números da janela do apartamento e me avisa pelo celular para que eu faça sinal. O ruim é que aqui é muito barulhento, tem bastante poluição e eu tenho medo de ficar no celular falando com ele enquanto estou no ponto. Mas eu não penso em me mudar tão cedo.

 

Libere sua imaginação com a gente!

Hoje eu e Natalia fizemos mais uma contação de histórias interativa no evento La Féria Princesas e Super-heróis, que aconteceu no Clube Militar, sede Lagoa.

Como são as contações interativas?

Essa contação funciona como uma espécie de teatro do improviso.
Eu e Natalia, as facilitadoras da capacidade imaginativa das crianças, recrutamos agentes da imaginação que irão nos ajudar a contar a história (todas as crianças ganham um distintivo de agente da imaginação). Nós levamos uma bolsa cheia de objetos encantados que vão sendo retirados pelas crianças durante a contação da história. O objeto retirado mais a interpretação que a criança dá ao objeto ditam o rumo da história.
As crianças também decidem quem são os personagens e onde se passa a história.

A história de hoje:

Era uma vez um parque de diversões que ficava dentro de uma floresta encantada. É essencial dizer que, neste parque, havia um piscina de bolinhas.
Quem estava neste parque era a Chapéuzinho Vermelho. E ela estava acompanhada da baleia Maracujazinha.
Chapéuzinho Vermelho e Maracujazinha começaram a cavar o chão da floresta e encontraram um esqueleto de dinossauro. Enquanto cavavam para desenterrar o esqueleto, elas acabaram encontrando a toca de uma bruxa.
Curiosas que só elas, Chapéuzinho e Maracujazinha entraram na toca da bruxa e encontraram lá dentro o chifre de um unicórnio. Nessa hora, percebemos que a bruxa não era má, se tratava de uma feiticeira boa que era amiga dos unicórnios.
Chapéuzinho e Maracujazinha resolveram então ir atrás do unicórnio. Mas por onde começar a procurar?
Elas começaram a andar pelo arco-íris procurando por ele. Foram andando, andando e acabaram indo parar no meio das estrelas. Foi aí que descobrimos que se tratava de um unicórnio alado, primo do cavalo Pégasus.
Mas, ao chegar lá nas estrelas, o que elas encontraram foi um sapo que pulou tão alto que ficou preso em uma nuvem.
Chapéuzinho e Maracujazinha logo tiveram uma idéia: ora, já temos um sapo, uma baleia e uma menina… Vamos fazer uma festa no céu!!!
E a festa começou com muita alegria e animação.
Mas, de repente, apareceu o dinossauro-esqueleto que elas haviam desenterrado para atacar a festa!
Foi bem nessa hora que a feiticeira apareceu e com a ajuda de todas as crianças foi possível concentrar muita energia no chifre do unicórnio e disparar um raio que derrotou o dinossauro.
Depois que o perigo passou a festa pode continuar para sempre.

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As crianças sempre ficam bastante entusiasmadas com a possibilidade de decidir os rumos da história.
Elas se voluntariam para tirar objetos da sacola e pensam em um milhão de locais para a história se passar.
O meu trabalho e o da Natalia é o de tentar conciliar a visão das crianças, condensando-as em uma única história.
Na história de hoje, essa questão apareceu logo no início. Três crianças queriam decidir onde a história se passava: uma floresta, um parque de diversões e uma piscina de bolinha. A nossa tarefa é mostrar que a imaginação é ilimitada, incentivando-os abertamente a pensar fora da caixinha, não limitadas pela lógica que o mundo começa a nos empurrar desde cedo.
Portanto, todos os lugares podem coexistir em harmonia na nossa história.
As histórias que contamos comportam o poder e a potência da imaginação de todas as crianças.
E elas vão se soltando e se libertando das amarras conforme a história vai se desenrolando.
As histórias também ajudam as crianças a dialogar e buscar a resolução saudável de conflitos, pois elas precisam aprender a aceitar que a história do amigo vai se cruzar e conviver pacificamente com a dela.
A colaboração que nasce entre os pequenos também é emocionante e pode ser observada hoje. Uma criança trouxe o perigo do ataque do dinossauro e todas se juntaram imediatamente para derrotá-lo.

É sempre um grande e prazeroso desafio, para nós, participar da história delas!

Calçada

Eu estava descendo a rua Gonzaga Bastos em direção à 28 de Setembro, em Vila Isabel, nos últimos cinco minutos do meu horário de almoço. Eu ia me atrasar, era certo. Estava estressada, eu falava sozinha pensando desculpas para o atraso, quando fui obrigada a parar e arrancada de meus pensamentos, por uma dor intensa no dedão do pé. Eu tinha tropecei em um vaso feito de cimento que estava bem no meio da calçada.

Tentando me refazer da dor, vi a padaria nova, bem decorada, com uma vitrine atrativa, exalando cheiro de pão fresco, contrastando com o resto da paisagem. O dono se apoderou de uma parte da calçada. Criou um canteiro particular esquecendo a existência dos transeuntes. Fez uma espécie de cercadinho com vários vasos de plantas, muito vistosas e bem cuidadas, no qual os clientes podiam sentar confortavelmente. Um espaço de aconchego para quem não se importava com os barulhos da rua agitada e a fumaça dos carros.

Quando a padaria fechava, as mesas e cadeiras eram retiradas, mas os vasos, pesadíssimos, continuavam lá atravancando a passagem.

Não me informei se o dono teve autorização para usurpar parte da calçada, tomando para si o que estava ali para servir a todos. Me juntei a um grupo indignado que se recusava a comer no local.  Virou um hábito para mim passar pelo lugar reclamando alto para que todos ouvissem minha insatisfação.

Fiz cálculos dos prejuízos causados que afetavam a mobilidade das pessoas, num exemplo típico do uso das coisas públicas para atender aos interesses privados.  Os pedestres faziam acrobacias perigosas para conseguir se deslocar pela calçada invadida.

Foi neste tempo de reflexão exaltada e indignada que, notei um banco do outro lado da rua. Ali estava um menino pobre. Sua aparência contava uma história de negligência. Roupas sujas e rasgadas, cabelos desgrenhados e um olhar de tristeza sem tamanho. Tanta precariedade, olhos tão vazios, sem futuro. Me parecia um mendigo, embora não pedisse nada naquele momento. O menino roía as unhas nervosamente e tinha o olhar vidrado e direcionado para a padaria, de onde se via a exposição de frangos assados. Suculentos, com gordura caindo, provocação para alguns cachorros que rondavam a calçada. Conhecida como TV de cachorro, aquele conjunto de grelhas provocava um desejo de comer para qualquer um que passasse. Naquele momento fiquei inquieta ao ver o menino na mesma condição dos cachorros, olhando a TV com seus olhos de fome.

Me perguntei quem teria sido o primeiro a ignorar que mais além do cachorro que olha o frango de padaria tem um menino também passando fome. Lembrei-me de todas as vezes em que vi pessoas jogando porções de comida para os cães em restaurantes de beira de rua e recusando esmolas a pedintes. Corre-se da fome do pobre com medo de assalto.

Eu estava tão preocupada com o lado da calçada onde eu estava que não vi o menino sentado lá longe no banco. O cercadinho afastava também o menino. Uma espécie de mecanismo anti-mendigo disfarçado de ornamentação. O menino tinha medo da cegueira da cidade. A cegueira que faz você tropeçar em vasos de plantas privatizadores de calçadas públicas e olhar apenas para o próprio pé.