Sobre a série Carbono Alterado. Ou como transformar uma história perfeitamente ok num lixo puramente comercial.

Resenha escrita por meu amado marido. Ao lado de quem eu tive o desprazer de assistir esta série.

Eu já não tinha grandes expectativas mesmo, mas ele, tendo lido com interesse o primeiro livro, ficou empolgado com o lançamento da série. Foi triste ter de assistir não só aos lamentáveis episódios da série, mas também ao desapontamento dele.

A única coisa boa que saiu disso foi esta resenha. Com um ótimo resumo da história do livro e uma analise crítica precisa da série.

 

Primeiramente, este texto tem spoilers tanto do livro quanto da série, ambos intitulados Carbono Alterado (Altered Carbon).

 

Ok, começando por uma breve sinopse do livro: A raça humana colonizou outros planetas. A direção desse processo foi a ONU, com um exército de ocupação de soldados transformados em máquinas de manipulação, assassinato e tortura. Esses soldados foram chamados emissários. O protagonista e narrador da história é um emissário renegado, chamado Takeshi Kovacs que é morto no início da história. O que vamos descobrir depois é que a morte vem perdendo a batalha contra a humanidade porque uma tecnologia foi desenvolvida para permitir o download da mente das pessoas. Esse download é feito num cartucho conectado ao sistema nervoso na região da nuca e, desde que não seja danificado, pode ser transplantado para outro corpo, que passará a ser o novo lar da consciência da pessoa em questão.

Sinceramente, a história principal que vai envolver o Takeshi não é lá essas coisas. É meramente um enredo policial em que o protagonista tem que solucionar um crime. Você encontra isso em qualquer conto da Agatha Christie ou do Dan Brown. A única parte interessante dessa história é que o Takeshi tinha sido preso, ou melhor, sua mente tinha sido armazenada numa espécie de “prisão na nuvem”. Quem contrata ele é um magnata terráqueo que já viveu mais de 300 anos e que acha que foi assassinado quando todo mundo acha que ele se suicidou. Ele é carinhosamente conhecido na cultura terráquea como um Matusa, referência a Matusalém da bíblia que foi um humano que viveu em torno de mil anos. Obviamente esse cara é podre de rico, porque é claro que numa sociedade super avançada o capitalismo ainda reina de vento em popa e a desigualdade social permanece a mesma.

Enfim, como eu disse, essa história é clichê. O final é tão previsível que você acaba não se interessando pelos detalhes que tomam boa parte da narrativa. Mesmo assim, na pior das hipóteses o livro é ok, porque tem pontos positivos para balancearem esse lenga lenga do enredo.

Um desses pontos é obviamente o pano de fundo da história. O protagonista veio de outro planeta, o planeta de Harlan, que o autor consegue descrever em nuances, salientando diferenças e semelhanças culturais em relação ao que a gente percebe hoje na nossa sociedade terráquea. Como exemplo de semelhança, em Harlan tem a lenda do “Homem Retalho” que é uma espécie de “Bicho Papão” daqui. Mas lá, os cidadãos comuns tendem mais a se posicionar e intervir em questões de conflitos cotidianos do que na Terra. Além disso, Takeshi é um ex-super-soldado da ONU que participou da destruição de rebeliões nativas dos planetas que o exército do qual fazia parte ocupou. Ele desertou quando percebeu que fazia a mesma coisa que os criminosos comuns só que numa escala genocida.

Outro ponto é a tecnologia que torna possível adiar a chegada da morte, maior fonte de medo da psique humana. Já ouvi críticas do ponto de vista metafísico dessa abordagem de que a mente poder ser baixada digitalmente seria já um jargão materialista de que a consciência e a mente estão no cérebro e não passam de sinapses e reações químicas. O corpo e aspectos como hormônios e DNA ficam em segundo plano. Sinceramente, eu não vejo um grande problema nessa questão. Foi um ponto de vista que o autor escolheu para construir seu universo e tem alguns indícios na ciência de hoje de que isso pode ter um fundo de verdade. E, ora, é uma obra de ficção científica. Você faz concessões para as premissas do autor para aproveitar a história. Acha que não vai conseguir? Não lê o livro ou pelo menos não reclama quando se desapontar. Particularmente, eu não compro essa posição metafísica da mente se resumir ao cérebro, mas entendo porque ela é atraente. Sua consequência é o que torna o universo de Carbono Alterado tão cativante:

As pessoas não precisam mais morrer no fim da vida de seus corpos.

Elas podem continuar vivendo aqui nesse mundo. Elas até podem morrer também, mas ao critério delas. Talvez esse seja o mote da existência de toda a Medicina e provavelmente de boa parte da ciência, quer se admita ou não, todos gostaríamos de poder vencer a morte. A possibilidade de, um dia, vencer ou pelo menos conseguir escapar da morte, desperta um sentimento que mexe com o coração do ser humano mais resignado com a realidade, seja para ansiar por essa possibilidade, seja para acusa-la de inatural ou herege (inclusive, no livro aparece a seita dos Católicos que são contra a tecnologia de trazer as pessoas de volta).

Um outro típico de discussão interessante levantado pelo livro, é pensar em até que ponto a mente e a consciência definem uma pessoa. Eu já falei que, por exemplo, o corpo fica em segundo plano na premissa do autor, então você poderia afirmar que a pessoa está onde está a mente dela. No entanto, no universo do livro é possível fazer cópias da sua mente e colocar a cópia em outra “capa” vazia. Será que isso seria clonagem? Esse processo criou uma pessoa nova? Se sim, por que e como ela é diferente da pessoa anterior? Se não, ela é só uma cópia; e se for assim o que diferencia ela da original? Esses debates foram atualmente trazidos por alguns episódios de Black Mirror e foram tão inquietantes quanto, mas ver isso apresentado num romance tecnicamente bem escrito é uma experiência bem intensa. O ponto mais alto do livro, na minha opinião, é sem dúvida quando o protagonista passa um capítulo inteiro conversando com a sua própria mente, mas num outro corpo; ou seja, ele se duplica num corpo diferente e tem a oportunidade de levar um lero amigável consigo mesmo. Em uma das partes da conversa, eles discutem qual dos dois terá que morrer se for necessário. Uma conversa consigo mesmo é o que todo mundo faz dentro da própria cabeça, mas ver a sua consciência ou a cópia dela tomar corpo na sua frente e ainda poder conversar com ela é certamente algo interessante de se imaginar As sutilezas e a imaginação necessária para transformar esse devaneio filosófico numa cena que se encaixa perfeitamente numa história humana é de se admirar, além de libertar nossas próprias imaginação e inquietação com essas questões.

Tão interessante (na verdade, até mais interessante) do que esse retrato do universo do autor, é a história de Quellcrist Falconer e dos quellistas. Infelizmente, pouco se fala sobre isso ao longo do livro, mas o autor consegue sintetizar um componente principal de toda a história da humanidade na expansão interplanetária, a história de resistência ao poder oficial. A resistência dos quellistas acontece no planeta de Harlan e é incerto saber se o planeta era já ocupado antes ou não. Eu diria que não. Mas o que ocorre é que após a colonização do Protetorado da ONU, a sociedade que se forma começa a se rebelar contra o Protetorado e dá origem a um grupo de combate armado pela independência de Harlan. Esse grupo é liderado por Quellcrist Falconer que tem claramente um discurso com um caráter propagandístico muito potente e não só é antissistema, mas com componentes claramente de defesa de igualdade social, de liberdade em detrimento do poder dominador dos ricos e poderosos e de companheirismo entre o povo oprimido. No livro, dá a entender que Quell já morreu, mas que o movimento quellista continua vivo e militante no planeta de Harlan e talvez em outros planetas também.

Um ponto importante dessa parte é a seguinte: se você não teve contato com nenhuma das obras de Carbono Alterado e tentou imaginar o personagem de Quell na leitura desse parágrafo, responda à pergunta em sua mente: qual o sexo de Quell? Ele (a) é homem ou mulher? Pois é, na história Quell não é homem. Quell é mulher. Ou seja, a líder de uma porra de exército armado, claramente progressista em comparação ao Protetorado, que produziu teoria política, obras de literatura e ainda criou um movimento de massa que influenciou gerações depois de sua morte é mulher. O autor não conseguiu escapar muito do básico e dos clichês ao criar personagens femininas na sua história, mas o fato de ter escolhido Quell como mulher é, no mínimo, ousada, pois esta personagem é central desenvolvimento do pano de fundo moral de Carbono Alterado, é a protagonista de um dos mais interessantes adendos da história do livro e ainda é a representante da resistência popular heroica da história da humanidade. Não é preciso ser nenhum especialista em estudos de gênero para saber que isso tem uma certa importância simbólica, já que esse papel é sempre dado a homens.

Sinceramente, se o livro apresentasse o mesmo universo e contasse a história de Quell Falconer ao invés de Kovacs teria sido uma obra muito mais apreciável, salientando é claro que dependeria muito da competência do autor, que sinceramente não inspirou muita confiança. Dá até um pouco de medo de ler os dois outros livros da trilogia. Aparentemente a mente da Quell aparece em um dos personagens do terceiro livro. Mas o mais interessante mesmo teria sido a história da revolta e trajetória quellista em Harlan. Será que não rola um esforço, Richard Morgan?

É nesse gancho que começo a falar alguns dos muitos motivos da série ser uma completa destruição dos pontos positivos presentes no livro. Não estou falando dos detalhes que mudaram, sejam importantes, como os quellistas passarem a ser chamados de emissários ou terem feito os Matusa desnecessariamente supermalvadões para tentar forçar o telespectador a odiar mais eles e se regozijarem quando eles forem punidos no fim; ou não tão importantes, como por exemplo terem mudado o nome do hotel de Hendrix para Raven, onde o dono era uma imitação do próprio Poe; vai ver é porque trata-se de uma referência que deve ser requisito para o James Brian poder estar na série.

O livro já tinha alguns traços machistas, como o uso da prostituição como uma presença e um mote constante no livro (estamos numa sociedade uns 500 anos à frente do agora, com tecnologia para quase derrotar a morte, mas não se avançou quase nada em termo de igualdade social e Deus livre o autor de pensar uma solução humanitária para a prostituição), usar mulheres mortas como fio condutor do enredo etc. Isso é esperado de um romance escrito por um homem que não prefere ou não tem a capacidade de se aventurar além do arroz com feijão do romance policial tradicional.

A proeza magnífica da série foi pegar esses traços e transformá-los numa tendência vergonhosa que piora episódio a episódio. É feito de uma maneira tão impressionantemente estúpida que quando você se convence de que não pode piorar, a série fica ainda níveis inteiros pior. Vai desde a cena paradigmática da misoginia onde aparece a tenente Ortega da polícia, sidekick do protagonista (mais um traço clichê do livro, mas pelo menos a personagem tem vida e motivação própria, enquanto na série isso é quase apagado), está atirando e matando em clones atrás de clones de outra mulher. E se eu te pedir para imaginar a roupa da mulher que é consecutivamente assassinada, será que você adivinha? Exatamente. Sem roupa. Não é brincadeira. Essa cena não está no livro, mas incrivelmente a série conseguiu mudar a história a ponto de incluir uma cena feminicida com um fetiche estranho por clone que o diretor ou o roteirista da série devem ter, que é simplesmente praticada e sofrida por mulheres. Quem quiser pode ler mais sobre o tipo de sentimento que essa cena desperta em qualquer pessoa normal aqui:

https://encantodoscontos.com/2018/02/20/carbono-alterado-resenha/

 

Essa cena é auge da misoginia disfarçada de arte presente na série. Enquanto o autor do livro poderia, pelo menos por mim, ser desculpado em prol dos pontos positivos que conseguiu desenvolver e por não ter abusado dessa tendência; a série parece apostar e usar a censura de 18 anos como desculpa para mostrar um show de horrores, não sendo nada mais do que um clichê hollywoodiano onde as mulheres aparecem como personagens que só aparecem para morrer ou para servir um homem e não tem nenhum papel importante na história. É um absurdo que se esteja tentando passar essa cena como algum tipo deturpado de empoderamento feminino.

Você acha que acabou? Não acabou, não. Pode pegar a pipoca que tem mais. Lembra a senhora Quellcrist Falconer? A personagem mais promissora da história do livro, que infelizmente não aparece na história para além de alguns fragmentos? Pois é. Na série ela aparece, líder dos quellistas (que na série são chamados de emissários, sabe-se lá porque) e, e digo e porque é claro que a série não podia parar por aí, par romântico do nosso amado protagonista. Exatamente.

É óbvio que uma história de amor, ou mesmo só de sexo poderia ser bem-vinda, se bem construída. No entanto, nas telas, como a série não poderia deixar de contribuir para destruir qualquer vestígio de qualidade e realidade nas relações com mulheres, Quell aparece como uma mulher completamente insegura no que diz respeito aos seus sentimentos por Kovacs, dizendo que “não deviam” transar quando ela parecia querer, ou deixando ele a enganar num exercício de treinamento por causa do afeto que tinha por ele etc. Então, reparem só, a guerreira, líder da resistência quellista se apaixona perdidamente pelo machão da história e age como uma adolescente insegura que não sabe lidar com seu tesão. É importante ressaltar aqui; no livro eles sequer se conhecem. Quell não é responsável pelo treinamento desumano de Kovacs, ela lidera um exército clandestino contra o exército de homens treinados como Kovacs, e como no Vietnã, conta com o conhecimento de seu território e a causa justa que mobiliza as massas a lutar contra um inimigo invasor ou um hóspede não mais bem-vindo. Quell é rebelde, forjada na luta clandestina contra um inimigo mais poderoso e mesmo assim não abandona um idealismo agitador que usa muito bem em sua propaganda. Kovacs, por outro lado, vivia como um criminoso egoísta, mesmo após a deserção, tentando conseguir dinheiro sujo para desfrutar prazeres mundanos. Portanto, mesmo na hipótese de terem se conhecido, é inteiramente improvável que tivessem algum tipo de relacionamento.

Após a conversão do personagem, são as palavras de Quell, no livro, aparecem como um guia moral para o protagonista, que apesar de ainda ser um bufão egoísta, apresenta um código de conduta mais ou menos construído, onde a principal base da noção de justiça parece vir do compasso ideológico quellista. Esse aspecto, junto com uma certa maneira de apreciar algumas coisas ao seu redor de maneira atenta, quase ingênua e infantil são alguns dos pontos que tornam o protagonista interessante e cativante ao mesmo tempo. Dar forma ao personagem de Quell na série foi não só um erro, pois diminui a importância da personagem e acaba com uma das principais fontes de mistério que era imaginar como foi a resistência no planeta de Harlan, mas completamente artificial e ridícula em colocá-la como pupila de Takeshi na sua descoberta do amor.

Essa maneira como Quell é retratada é um dos componentes que transformam o protagonista no verdadeiro clichê do pica de mel. O gostosão que toda mulher quer laçar. Não basta que o personagem de Kovacs seja bonito ou charmoso, é completamente necessário nas fantasias misóginas e doentias dos organizadores da série que todas as mulheres ao redor dele que tenham algum tipo de participação na trama queiram comer ele, que estejam ali na história com o único intuito de servirem como ferramentas para sua jornada individual de machão para concluir sua superimportante missão. Quell por exemplo, mesmo morta, fica aparecendo como fantasminha na mente do protagonista para guiá-lo pelas dificuldades da vida e o “amor” que Kovacs sente por ela fazem que ele siga em frente. Até no último capítulo, a gente fica sabendo que o cartucho da Quell está intacto em algum lugar e ele, o príncipe no cavalo branco vai atrás dela tentar resgatá-la. Esse é aquele artifício mais do que manjado e esdrúxulo que jogam no final da história para quem sabe no futuro, se verem que dá para ganhar mais dinheiro, poderem fazer uma segunda temporada.

Tem mais? Tem mais sim. Já falamos da Quell. Além dela, já nos primeiros episódios, a Miriam, que é esposa do cara que contratou ele vai atrás dele para seduzi-lo e tentar fazê-lo largar a investigação. Não bastasse ela escolher usar sexo para isso, no livro, segundas intenções de ambos a parte, a relação sexual pelo menos aparece como consensual e satisfatória para os dois; já na série, a Miriam praticamente tem que drogar e estuprar o cara para levar ele para cama. É como se ele estivesse sendo vítima da sedução pecaminosa daquela mulher, ele jamais se rebaixaria a transar com ela.

A tenente Ortega, que tem um relacionamento anterior com o sujeito (que foi preso injustamente) que estava anteriormente no corpo que Kovacs usa na história, em relação aos sentimentos sexuais, ela está meio confusa por ver o corpo do homem que amava com uma mente diferente. O livro chega a descrever a atração entre os dois, como uma espécie de química entre os corpos, que é recíproca; pois Kovacs parece se importar também com a tenente, tanto pelo relacionamento que vai sendo construído entre os dois quanto por essa memória sentimental corporal de sua capa. Eles transam no livro e ambos parecem saber que o principal fator foi esse tesão corporal entre os dois, o que não impede de ambos aproveitarem e quererem de fato transar. Quando o Kovacs já aparece em outro corpo, ele diz (o livro é em primeira pessoa, como eu disse) que já não sente a tal química e parece perceber que a tenente também não, o que não quer dizer que ambos deixam automaticamente de se importar um com outro. Qual você, caro leitor, acha que será a versão desse relacionamento nas telinhas? A tenente Ortega, também mulher, que no livro aparece pelo menos como uma personagem de alma própria, com seus motivos e desejos próprios, fica loucamente apaixonada pelo machão da história. Chegando ao ridículo de Kovacs ter que “magoar os sentimentos” dela para afastá-la dele e dos perigos que o enredo trouxe. Tirando o fato do Kovacs tê-la salvo na série várias vezes, enquanto o livro descreve mais um trabalho de equipe igualmente distribuído quando eles dividem cenas. É um perfeito caso de donzela em perigo. Nesse cenário, o roteiro só tinha duas possibilidades: fazer a tenente tentar conquistar o protagonista machão com sexo ou, e eu não sei o que é pior, mantê-la como donzela, insinuando que ela está moralmente acima das outras mulheres e não deixar o machão comer ela para que ela permaneça virginal e pura; ou seja, ela deverá, mesmo estando apaixonada, se resguardar para quando seu verdadeiro amor voltar e o Kovacs, que não a ama, não pode simplesmente manchar a honra dela com sexo se não for para ficarem juntos para sempre. Nenhuma das duas possibilidades clichês despertam interesse ou chance de se construir algum relacionamento real e significativo. Isso vai sendo carregado por alguns episódios, mas o que acontece mesmo é essa primeira alternativa. Chega a dar a entender que o Kovacs fica tentado a ficar com ela no final da série, mas a tenente acaba tendo que se contentar com o outro cara mesmo porque o Kovacs vai atrás da Quell. Grande surpresa. Patético. Roteiro realmente patético. Que perda de tempo ter assistido essa série.

Por último, mesmo apesar de não haver o componente sexual explícito, não dá para esquecer a imbecilidade monumental da série de criar uma irmã do protagonista que também não só conheceu a Quell, mas a matou por ciúme! Sim, por ciúme! É óbvio, já que esse é quase o único meio de duas mulheres interagirem na série, ou seja, disputar o afeto de um homem. Foi ela, Raileen, que arquitetou todo o plano para trazer o irmão para a Terra. E se ela não quer trepar com ele literalmente, o que eu nem tenho certeza, podemos quase afirmar que isso seria menos insano do que o que ela de fato quer, que é ter o irmão só para ela para todo o sempre, sentimento nada doentio e tão normal a ponto de ela ameaçar matar todo mundo que ele teve contato na Terra caso ele não seguisse suas ordens. Ou seja, mais uma mulher ciumenta atrás do machão pica doce da história.

Essa mulher, claro é a vilãzona da história. Logo, ela deve morrer no final. E morre. Sabe como? Pedindo para o irmão matar ela, porque ela é má e pervertida pelo mal e que se ele não a matar, ela não vai parar e vai seguir fazendo o mal. Não é brincadeira. A vilã, mulher obviamente, diz que quer morrer pelas mãos do homem amado para poder não mais fazer mal a ele! Caralho! Qualquer semelhança com “apanhou/morreu/foi estuprada porque mereceu/pediu” não é mera coincidência! É exatamente aquele sentimento de quando você acha que não pode piorar, a “história” desce mais alguns níveis! Não precisa mais fazer uma série que defenda e justifique a violência contra a mulher porque são todas malvadas e safadas. Esse completo lixo de série de merda já fez esse papel como poucos imbecis conseguem fazer. A única coisa que é realmente digna de uma trama de ficção, pois é extremamente difícil de compreender, é que a pessoa que criou o roteiro da série seja uma mulher (fato que é certo de merecer uma discussão a parte).

Essas críticas devem ser feitas pelo enjoo que causam de ver o mesmo padrão desde a infância repetido várias vezes e, mais do que isso, pela imagem completamente negativa e degenerada que retratam as mulheres. Isso tem um impacto que não é difícil de rastrear quando o estereótipo da mulher inclui a histeria, o ciúme, a sedutora maligna, a que se apega demais, a insegura etc. Sendo homem, eu já fico puto com esses discursos misóginos disfarçadas de arte ou senso comum, imagina quem sofre na pele os prejuízos imediatos desse processo. A maior parte do público de ficção científica parece ser masculino e, em vista dessa série, isso não é surpresa. É muito difícil permitir que esse nixo abandone, ou pelo menos critique essas velhas práticas de estigmatização e misoginia se a gente pelo menos não começar a discutir o assunto.

Por último, eu tenho uma última crítica a fazer a essa obra, que, sem exagero subiu para as primeiras posições de piores séries já assistidas. Vou falar uma última vez da personagem, que já deve ter ficado claro, é minha favorita: Quellcrist Falconer.

Além de mostrar a líder da resistência sendo morta por uma de suas militantes por ciúme do irmão, tem outra tosqueira no enredo. Lembra a resistência que ela liderava? Pois é… a série faz questão de mostrar essa resistência sendo completamente dizimada. Isso está num nível maior de estupidez, pois tudo bem uma adaptação para série mudar algumas coisas, mas qual a necessidade de escolher mudar a porra do livro para pior, ou seja, mostrar uma resistência progressista sendo completamente morta pelas forças do Estado. O adaptador de roteiro resolve exercer a sua liberdade de mudar um ponto ou outro do enredo e muda especificamente isso? Por quê? Qual a mensagem que é enviada com isso? É aquela mentira clichê de que não importa o que você faça, o Estado sempre vence? Porque isso parece baixo demais até para esse chorume de série. Enfim, isso é no mínimo revoltante. E é claro, mentiroso. Uma resistência organizada a nível planetário, com fama interplanetária, caçada pelo imperialismo da ONU por décadas, obviamente tomaria todas as providências possíveis para impedir que fosse extinta de uma vez só. Táticas de células independentes, dirigentes que não sabem de todas as operações. Qualquer pessoa consegue pensar medidas para não deixar isso acontecer. A história de resistência contra o poder dominante é a história desses métodos. Mesmo que os quellistas tivessem sofrido derrotas e baixas, a organização e a ideologia teriam perdurado, isso é um fato. Você pode matar pessoas, não ideias. Como se já não bastasse essa palhaçada toda, foi preciso coroar a bizarrice da série com uma cereja de ignorância.

Persistente em tirar da Quell e dos quellistas qualquer caráter revolucionário, a série resolve mostrar o plano último da organização, que é, obviamente, destruir a tecnologia de armazenamento de mentes (tecnologia que, segundo a série, foi a própria Quell quem criou e depois parece que se arrependeu). É muito fácil ser levado a pensar que o problema é a tecnologia em si, mas qualquer pessoa pode ver a existência de prolongar a vida, por qualquer método tecnológico que seja, é uma coisa boa. A Quell da série faz um discurso quase fundamentalista religioso, dizendo que não é humano viver tanto. Diz que só quem tem dinheiro pode viver para sempre e os pobres, não. É importante reafirmar que esse último ponto é de fato um problema; mas destruir avanços tecnológicos não pode ser e nunca será a resposta. Não é porque o SUS é pior que hospitais particulares que a solução é destruir a medicina. Esse raciocínio é simplesmente estapafúrdio. E sem contar que mesmo que tivessem sido bem-sucedidos, era só começar a desenvolver a tecnologia toda de novo.

Nos trechos do livro e em algumas reflexões do Kovacs, fica claro que a organização quellista é contra a desigualdade social e tanto se propõe como convoca outros e outras a combatê-la, inclusive violentamente. É contra os interesses dos generais e ricos que mandam no governo, que jogam pobres contra pobres para continuarem acumulando poder, que sugam as riquezas de seus territórios (qualquer semelhança não é mera coincidência) etc.

As pessoas que fizeram a série conseguiram fazer um esforço monumental e, mais uma vez, usar da liberdade de adaptação para fazer uma asneira inacreditável. Esse ponto da história é tão absurdo que ainda me vem à cabeça em momentos aleatórios, sempre acompanhado daquele sentimento de vergonha alheia e da pergunta “Como alguém pode ser tão idiota a esse ponto?”.

“Quando perguntarem como morri, diga a eles: ainda com raiva [da série Carbono Alterado]” (Quellcrist Falconer).

Uma hierarquia para os seus problemas.

A maior parte das pessoas do planeta não estão sofrendo com nenhum tipo de transtorno psicológico. Mas estas pessoas também não estão bem.

Pensando num continuo, sendo -5 o pior estado emocional possível e +5 o melhor estado emocional possível, onde você acha que a maioria das pessoas se encontra?

Você acertou se pensou no 0.

A verdade é que a maioria das pessoas não está mal, mas também não está bem. Estão ali andando em cima da corda bamba. Uma hora acham que estão com um pezinho na depressão e/ou na ansiedade, outra hora estão sentindo um leve sentimento de prazer e felicidade.

Um amigo meu me ensinou uma técnica maravilhosa há alguns meses para “limpar o ar” nos momentos em que nós começamos a nos sentir um pouquinho mais para baixo. É uma técnica bem simples e poderosa.

 

Em primeiro lugar faça uma lista dos seus problemas e de afazeres atrasados.

Agora, ordene os itens da lista em uma hierarquia, do maior e mais complicado, mais difícil de ser executado até o mais simples, o menor, mais tranquilo e rápido de se resolver.

Pense, para cada um dos itens, se você já enfrentou problemas iguais ou similares no passado. O que você fez que ajudou a resolver o problema que você pode repetir agora?

Por fim, “mãos à obra”! Comece a executar a sua lista, partindo do problema mais simples e irrelevante.

 

Isso mesmo. Comece pelo problema mais simples e irrelevante da sua lista.

Quando nós pensamos nos nossos problemas, queremos atacar logo o problema mais monstruoso, mais difícil, aquele que incomoda mais e que é mais difícil de resolver. O que acontece é que a chance de termos dificuldades na resolução desse problemão são grandes por uma série de questões que veremos adiante. A consequência é o desânimo, o acúmulo de problemas e a sensação de que não seremos capazes de dar conta deles.

Imagine que você é o super-herói de um desenho animado. A luta do herói nunca acontece diretamente com o grande vilão da história. Se fosse assim, o desenho só teria um episódio. O herói passa por uma série de inimigos, cada vez mais poderosos, adquirindo mais força e sabedoria e se preparando para enfrentar o chefão mais adiante. Esses são os problemas que você já enfrentou.

É importante sempre ter em mente como nós resolvemos nossos problemas no passado e o que aprendemos nestas ocasiões. O que podemos aproveitar e o que podemos melhorar em nossa resolução de problemas?

Além disso, quando o grande chefão aparece, ele sempre vem acompanhado dos seus capangas. Estes capangas são inimigos facilmente derrotáveis, mas que, se forem ignorados pelo herói, podem ser mortais. Esta é a imagem da sua lista atual de problemas: um ou dois problemas maiores e os seus capangas.

O herói precisa derrotar os capangas antes de atacar o chefão.

Com os seus problemas acontece a mesma coisa. Normalmente nós temos um grande problema – o chefão – e vários outros pequenos problemas – os capangas – que são facilmente derrotáveis, mas que, quando ignorados se somam ao chefão e dificultam muito a nossa luta.

Elimine os capangas em primeiro lugar. Elimine esses problemas pequenos que ficam ali sugando sua energia, te exaurindo mentalmente e drenando seu senso de autoeficácia.

Quando nós resolvemos esses problemas que estão lá no final da nossa hierarquia, nós adquirimos confiança e nos fortalecemos. No final, a chance de conseguirmos resolver então os maiores de nossos problemas, já será muito maior.

A Interdição do Suicídio.

Capítulo III    

A partir do século II d.C., Roma começa a se deparar com as tentativas de invasões bárbaras que ameaçam um império sub-povoado atingido pela fome e a peste. Sob a constante ameaça de dispersão do domínio territorial, ganha força a pregação cristã e novas noções de responsabilidade afloram no homem pecador decaído, divido entre a fé e o compromisso ético-político na “comunidade de fato” da ordem temporal. Declina o estoicismo e, com ele, o direito do cidadão de dispor da própria vida. A conduta refletida e racional é substituída pela doutrina da dignidade, de aceitação do destino (Chatelêt, 2000, p.26).

O império, em intensa crise econômica necessita cada vez mais de gente para defender o Estado e para sustentá-lo economicamente. A legislação prevê, então, novas sanções a determinados tipos de suicídio. Antes dessa crise, caso uma pessoa levada a julgamento fosse considerada culpada, além de morrer sob tortura tinha a família prejudicada pela confiscação de seus bens. No entanto, se houvesse um suicídio antes do julgamento, este ficava impedido. Depois do enrijecimento das leis aqueles suicidas não escapam mais à punição, mas sua ação é tomada como confissão de seu crime, portanto são imediatamente considerados culpados e se prosseguem as demais sanções. Endurecem também as penas contra escravos e soldados que atentam contra a própria vida. Isto para que, a partir do século IV d.C., passassem a ser condenados todos os tipos de suicídio e a punição designada a tal ato recaía tanto sobre os familiares quanto sobre o cadáver. Os rituais supersticiosos se estabelecem como pena assim como a confiscação dos bens. (Esse enrijecimento das leis que regiam a conduta foi aplicado a diversas esferas da vida privada. Ou seja, uma série de medidas de controle e organização sociais para tentar fazer com que o império superasse o período das invasões. O que não aconteceu. O grande império romano foi destruído. Eu destaquei aqui, por conta do interesse do trabalho, o endurecimento das penas contra o suicídio, mas o que estava em jogo era um conjunto de ações. Esse conjunto de ações teve como efeito uma outra maneira de olhar para a morte voluntária. Começou a ser criado um estigma em torno da ideia do suicídio que, principalmente no auge do império romano, não era verificado. A gente vai ver no que que isso deu mais adiante).

A doutrina cristã, então já dominante e, conforme declina o império Romano, cada vez mais influente na organização política, ainda que por razões diversas daquelas das do imperador, também demonstra seu repúdio ao suicídio e promove ampla campanha de moralização dos costumes (Góes, 2004, p.172). As atitudes tomadas pela igreja nesse sentido são: o esforço pela revalorização do casamento (e da virgindade), condenação aos desvios sexuais (sexo oral, masturbação), proibição do aborto como método contraceptivo (Áries e Duby, 2006) e a recusa de sepultura cristã para os suicidas. A necessidade dessa oposição seria a princípio devida às atitudes dos cristãos devotos que se entregavam com plena disposição ao martírio[1]. (A própria doutrina cristã estava ameaçada na época por conta do desprendimento da vida dos devotos do cristianismo que chegavam a praticar ações terroristas naqueles primeiros anos. Portanto, houve também, nesse período, a luta pelo estabelecimento da religião católica oficial e de seu código de conduta. Impressionante isso, não é? A luta pelo estabelecimento dos princípios da religião católica na verdade foi uma luta mesmo. Uma batalha de corpos e de ideias, de homens poderes, de riquezas. Não foi o caminho pacífico da iluminação).

As bases para a condenação do suicídio, contudo, não estão expressas nos Textos Sagrados, sendo assim houve dificuldade para a Igreja em assumir uma posição definitiva e coerente perante o ato, que só virá a se firmar por volta do século XI d.C., mesmo assim devido ao contexto histórico e não pela força de seus argumentos. As Escrituras Sagradas não traziam julgamentos do ato, mas, pelo contrário, uma série de exemplos louváveis do mesmo. Razis, cognominado pai dos Judeus, “preferiu morrer nobremente antes de cair nas mãos dos ímpios”, transpassou-as com sua espada, lançou-se animosamente da torre onde se encontrava na multidão de soldados que forçavam sua porta.

Todavia, ainda respirando, cheio de ardor, ergueu-se e, embora o sangue lhe jorrasse como uma fonte de suas horríveis feridas, atravessou a multidão numa carreira; em seguida, de pé sobre uma rocha escarpada e já inteiramente exangue, arrancou com as próprias mãos as entranhas que saíam, e lançou-as sobre os inimigos (Macabeus II, 14, 45-46).

(Essa foi outra parte insana do trabalho: percorrer a bíblia atrás dessas citações. Mas o legal da pesquisa é justamente isso. Não era só aprender sobre o suicídio em si, o que por si só era muito interessante, sem dúvida, mas eu sempre gostei também de aprender sobre outros períodos históricos, de saber como as coisas eram no passado. É meio isso mesmo, você começa a perceber que tudo foi construído pelos seres humanos e que as coisas nem sempre foram do jeito que são hoje, portanto, elas podem mudar. Tendo sido criada em uma família católica, também foi particularmente interessante para mim ver como a bíblia trazia ensinamentos diferentes daqueles que eram passados na igreja e pelos que professam essa fé. Foi ficando cada vez mais clara para mim aquela ideia de que a religião é construída por pessoas. Isso faz com que você comece a perceber que a sua religião e a do amiguinho são iguais e as duas merecem respeito. Uma não é melhor do que a outra. Todas são sistematizações da fé que o ser humano é capaz de expressar, são feitas por homens – literalmente falando – na maioria das vezes, e atendem a determinados interesses).

Eleazar, numa façanha arriscada, “projetou então salvar todo o povo e conquistar um nome eterno” atirando-se debaixo do elefante do rei para matá-lo e morreu junto com ele (Macabeus I, 6, 43-46). Sansão, aprisionado e cego pelos filisteus, evoca o nome de Deus rogando-lhe força para se vingar: “Morra eu com os filisteus! Dizendo isso, sacudiu com toda a força o edifício, que ruiu sobre os príncipes e sobre todo o povo (…) Matou pela sua própria morte” (Juízes, 16, 30). Abimelec, gravemente ferido, pede a seu escudeiro que lhe desfira um golpe de espada para que não digam que foi morto por uma mulher (Juízes, 9, 54). (Ok, esse é o exemplo mais idiota). E Saul, derrotado em uma batalha lançou-se sobre a própria espada e seu escudeiro morreu do mesmo modo (Samuel II, 31, 4-5).

A própria morte de Cristo, ato fundador do cristianismo, não teria sido por uma entrega voluntária? Cristo se entrega à própria morte, sem tentar em momento algum dela se evadir. Esta questão ocupa teólogos medievais de maneira mais demarcada até aproximadamente o século V. (A morte de Cristo era muito comparada com a morte de Sócrates pelos teóricos que eu estudei. Os dois teriam tido oportunidade de fugir de seu destino, mas seus ensinamentos não teriam sido levados a cabo se eles tivessem escapado da morte).

De um modo geral, a negação da vida terrena e a aspiração à morte para se aproximar de Deus e da eternidade abrem espaço para predisposição ao suicídio. O bom cristão, a exemplo de seu mestre, é induzido ao sacrifício da própria vida. Conforme os ensinamentos bíblicos “Quem quiser a sua vida perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por minha causa encontrá-la-á” (Evangelho São Mateus 16, 25). No século II, Tertuliano, hostil à latinidade pagã, admite a ideia de uma penitência da alma após a morte, da qual somente os mártires escapariam. Todos os outros teriam um tempo de espera até ao juízo final. (O martírio é caracterizado por uma entrega voluntária à própria morte. Você concorda que essa atitude é abarcada pelo conceito de suicídio? Há muito debate em torno dessas ideias. Mas, geralmente, entende-se que esta é sim uma forma de suicídio. Por isso todo o embaraço dos teólogos perante a necessidade de encontrar bases bíblicas para a condenação do ato).

As bases para a condenação do ato são, então, buscadas primeiramente na doutrina platônica, tal como interpretada pelas autoridades eclesiásticas. Santo Agostinho emerge aqui como seu principal representante, utilizando-se também do “não matarás”, que segundo ele interditaria tanto a morte auto-infligida quanto o homicídio. Esta é a primeira aproximação destas duas ações: a de matar a si mesmo e a de matar ao próximo. O suicida é um homicida de si mesmo. O quinto mandamento, no entanto, está longe de ser absoluto, pois é permitido matar os condenados, e os inimigos, tanto da Igreja quanto do Estado. (Olha como as coisas não são assim, preto no branco. Essa discussão é feita em diversos tons de cinza. Como a igreja condenaria de maneira absoluta o assassinato, mesmo que seja o assassinato de si mesmo? Tudo bem que tem um mandamento que proíbe matar, mas a igreja tinha que abrir certas exceções. É aí que você vê a questão dos interesses dos quais eu falei. A igreja tem interesses aliados com os interesses do Estado, especialmente em se tratando de Estados que não eram laicos, a igreja tem interesses econômicos. E, não se engane, nem mesmo os mandamentos são maiores do que esses interesses. Por que motivo você acha que a igreja não está travando uma guerra com o governo dos Estados Unidos atualmente para lutar contra a pena de morte? Pelo contrário, o padre vai lá na cadeia confessar os condenados? Pois essa não é uma briga que interessa para a igreja comprar agora. Assim, como a igreja já precisou fazer muitas guerras para proteger seus interesses, ela não poderia condenar completamente o assassinato e o suicídio, como consequencia). Além disso, a própria doutrina cristã se apresenta como uma dificuldade, por pregar o desprezo a esta vida mundana e enaltecer a vida eterna[2]. As considerações de Santo Agostinho sobre o suicídio estão expostas em A cidade de Deus e se constituem como a primeira demonstração bem articulada que se conhece no Ocidente sobre o tema.  Durante toda a Idade Média, notadamente no período patrístico, sua leitura constituía importância fundamental na formação dos doutores da Igreja, tal como a Bíblia. Em função das controvérsias entre Império e Igreja, era lida a partir de uma perspectiva política. Pois, pretendia indicar as forças malignas que atuavam por meio da luta política, na Terra, através da sede de poder e de glória, sem afirmar, contudo, que o Império estaria destinado à danação. Ele reconhece que na cidade terrena encontram-se vivendo juntos tanto os que pertencem à cidade celeste quanto os que pertencem à cidade da Terra. Em A cidade de Deus, o tema do suicídio, avaliado do ponto de vista da desobediência divina, é tratado a partir de dois ângulos.

No primeiro, prevalece a condenação do suicídio no que concerne à valorização da vida e à consideração desta como dádiva divina. A morte de si poderia ser interpretada como meio para alcançar a dimensão supratemporal da vida eterna que a tudo se sobrepõe. Por essa razão, o filósofo desenvolve argumentos em resposta aos discursos que justificavam a morte voluntária. Seguindo sua argumentação, nenhum cristão teria o direito de causar a própria morte, mesmo que tal iniciativa tivesse como pretexto: evitar cometer mais pecados futuros, preservar a pureza; expurgar pecados passados, buscando uma vida melhor após a morte; martirizar-se para redimir os pecados do mundo. Segundo Santo Agostinho, o suicídio torna impuro aquele que atenta contra si; a vida torna-se necessária para penitência e reparo de pecados passados; o julgamento divino após a morte não concederá uma vida melhor a um pecador e contrai-se um pecado próprio gravíssimo ao matar-se pelo pecado alheio.

No segundo, o filósofo absolve personagens bíblicos e as mulheres santas cristãs que praticaram tal ato, em respeito à Tradição e à autoridade das Escrituras. Diferencia sua argumentação quando são avaliados casos pagãos. Ressalvas ao suicídio só são admitidas em se tratando de valores aplicados àqueles que assumem o cristianismo. Aos pagãos, é previamente estabelecido o rigor do julgamento condenatório. Todavia, não é possível inferir a aprovação à prática de suicídio religioso equivalente ao martírio. Finalmente, porque um juízo de condenação universal poderia pô-lo em contradição com a veneração da Igreja, o filósofo deixa em aberto os casos marcados pela certeza absoluta de uma permissão divina. (Ou seja, pode se matar em alguns casos, algumas vezes o suicídio é mesmo louvável, mas em outros não, sendo o ato considerado extremamente reprovável).

Com Santo Agostinho, houve uma tendência à “unificação doutrinal” que permitiu reunir a pluralidade do pensamento grego, constituindo um conjunto teórico capaz de nortear as condições de acesso à verdade sob um mesmo solo.  Essa unificação se estende à prática quando prescreve condutas mediadas por procedimentos de purificação e “combate à concupiscência” (Foucault, 1984, p. 221).

Por volta do século XI d.C., uma nova medida é adotada pela Igreja para tentar impedir o suicídio: a confissão passa a ser obrigatória para todos os fiéis pela sua sacramentalização. Por essa medida, pretendia-se aliviar a consciência dos fiéis pelo recebimento imediato do perdão divino de seus pecados, graças ao poder intercessor da Igreja. Deste modo esperava-se aplacar o desespero do suicida diante da grandiosidade de suas faltas e a incerteza da misericórdia divina.

Já ao longo da primeira metade do século XIII, São Tomás de Aquino, diretamente influenciado por Aristóteles, representa o apogeu da escolástica medieval quando aproxima a fé da razão e a filosofia da teologia. Dilui oposições entre as verdades da razão natural e as verdades divinas reveladas, esclarecendo que a razão divina seria a expressão plena da razão humana. Para tal projeto, lança mão do método escolástico da disputa para analisar se matar a si mesmo seria lícito ou não. Este método consistia em apresentar argumentos retirados de fontes reconhecidas pela Igreja contra e a favor de algo para que, em decorrência da quantidade ou do peso dos argumentos, se chegasse a um veredicto quanto ao assunto. Primeiramente, São Tomás de Aquino apresenta cinco argumentos segundo os quais seria lícito se matar para em seguida apresentar três argumentos segundo os quais seria ilícito se matar: o suicídio seria contra a natureza, pois toda coisa amaria a si mesma, logo destruir-se seria contra uma inclinação natural. Em segundo lugar, ele seria contra a sociedade, na qual cada um teria um papel a desempenhar. Por último, seria um pecado contra Deus que, tendo-nos dado a vida, seria o único que possuiria o direito de dispor da mesma. Contudo, pela necessidade de justificarem os suicídios cometidos por figuras caras à Igreja, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino admitem que, por um apelo divino, o suicídio poderia ser com glória executado. (Nossa, cada volume da Suma Teológica é um livrão, não é. Eu ficava com dor nas costas de carregar aquele negócio para cima e para baixo na hora de estudar esses argumentos).

Por fim, o que se percebe de uma maneira geral é que, na medida em que o Império Romano decai e a Igreja católica se torna extremamente influente no governo, se alinham as forças do Estado e da Igreja contra a morte de si mesmo. Observa-se então que, neste momento, as necessidades sociopolíticas e econômicas se aliam à moral.

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1]A exemplo do movimento donatista, grupo religioso extremista de dissidentes da Igreja oficial e do Império, em geral de classes desfavorecidas que praticavam atos de terrorismo espalhando horror e derramando sangue em Roma. Era costume entre os membros do grupo tirar a própria vida arrogando para si a glória do martírio, seja entregando-se aos soldados do império, constrangendo pessoas a matá-los  sob ameaças de matá-las ou jogando-se do alto de rochedos. Esse ímpeto donatista surge como fruto da crise econômica e política. Sua violência e extravagância poderiam ser interpretadas por uma ânsia de participação social (Góes, 2004).

[2]Segundo as Sagradas Escrituras “Se alguém vem ter comigo e não me prefere ao seu pai, mãe, esposa, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida não pode ser meu discípulo” (Evangelho de São Lucas 14, 26.)

A Austeridade Romana e a “Saída Racional”.

Capítulo II

Inspirada nos princípios estoicos, a fundação da cidade ecumênica romana ergue-se sob a lei natural da razão, imutável e inscrita no cosmo. (Enquanto eu estava lendo sobre as diferentes escolas filosóficas mencionadas neste trabalho, porque eu já amava filosofia na época e tinha curiosidade de saber uma pouco sobre cada uma, eu acabei me interessando muito pelo estoicismo. Li bastante coisa do filósofo estoico Sêneca. O primeiro artigo que escrevi completamente sozinha, sem orientação, por puro interesse, foi sobre a morte na perspectiva do Sêneca. Foi esse artigo que eu apresentei na minha seleção de mestrado. Este artigo Também faz parte dos textos que eu quero reler e retrabalhar através do blog para um possível envio para uma revista filosófica no futuro. Até porque, infelizmente, a lógica produtivista está aí, não é, e eu preciso pensar mais em publicações nos próximos anos). A razão é para os romanos o princípio do universo, é norma de justiça e da ação calculada que permite guiar a sábia conduta.

Segundo Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), preceptor de Marco Aurélio e Nero, a morte assume importante papel na formação do homem sábio. A liberdade e a vontade guiadas pela razão conduziriam à perfeita humanidade e à consonância com a ordem natural do universo, do logos. (Bom, sim, claro. Existe essa consonância com o universo, pois é a lei da razão, que governa o homem, que governa também todo o universo. Para que exista tal consonância, o homem deve viver racionalmente). O homem sábio alcançaria a liberdade se se colocasse acima da injúria e extraísse de si mesmo suas satisfações. A filosofia serviria como técnica para uma vida feliz, livrando a alma do peso do corpo, das paixões sensuais e do temor da morte. (Era essa ideia que me encantava. O poder da filosofia de livrar-nos do medo da morte. O poder de se elevar acima das circunstâncias, de ser feliz a despeito do que nos aconteça. A chave da vida boa estaria nos ensinamentos de algum filósofo por aí, eu pensava). Assim, o saber teórico deve ser exercido em vida, pela prática das virtudes, como uma arte. (O exercício do saber teórico em vida. Perfeito para mim que gostava tanto de pensar sobre a existência. Já estava na psicologia por isso mesmo. E, cedo, eu vi na filosofia a complementação necessária e o fundamente da própria psicologia. A filosofia seria capaz de fornecer a visão de homem e de mundo que a psicologia trabalharia na prática clínica. Eu ainda sonho com esta ideia). A elaboração da arte de viver inclui ainda uma inflexão, a arte de morrer, de saber evadir-se quando a vida se torna indigna.

A morte voluntária pode desviar da crueldade do inimigo, da proba escravidão, da doença e da humilhação. Segundo Sêneca, “a vida inteira é aprender a morrer”, pois que o homem, enquanto mortal, segue seu curso irreversível para o destino determinado pela natureza. A morte é o livramento da tormenta da vida que nos arrebata as instabilidades, “nos joga uns contra os outros”. Sêneca não perfila ao lado daqueles que se opõem a morte voluntária, chegando mesmo a defendê-la em certos extremos. Esta defesa era o reflexo de um julgamento a respeito das condições da vida quando desfavoráveis ao exercício bem-sucedido da razão, “é preciso deixar esse modo de vida ou deixar a própria vida”. (Sêneca, 2008). (Bastante austeridade, mas ele mesmo parece que não seguia seus ensinamentos. Era um velho, rico e gordo. Mas tinha uma fala austera. Lembra alguém que você conhece)? Ainda, com relação ao momento adequado para se abandonar esta vida, declara: “Velhos decrépitos mendigam em suas orações um acréscimo de uns poucos anos” de vida, enquanto, aqueles que prepararam o espírito para combater a dor, habitaram o corpo como alguém que esteve “prestes a se mudar”, estarão preparados para o dia em que tiverem que morrer não tornando este o mais miserável de suas vidas. Logo, não importa quando se encontrará a morte e sim o quão digna será.

Segundo Minois (1998), Roma talvez tenha sido, dentre todas as civilizações, aquela mais favorável ao suicídio. Nela não se observava proibição alguma ao cidadão comum no que dizia respeito ao ato. Sem interdições morais, a “saída racional” (eulógos exagogé) era considerada por suas causas necessárias ao indivíduo mantendo o estatuto ético da conduta estoica. (Engraçado isso, não é? Tem coisa que a gente escreve que depois a gente mesmo não entende. Eu não entendi esta última frase. Como assim “causas necessárias)? O cidadão livre romano era senhor de sua vida e não a concebia como um presente dos deuses, podendo dispor da mesma de acordo com sua vontade. Contudo, segundo a Lei das Doze Tábuas, antiga legislação que deu origem ao direito romano, somente o chefe da família era detentor de status cívico e tinha poder absoluto “de vida e de morte” (vitae necisque potestas) sobre si mesmo, seus filhos, esposa e escravos (Ariès e Duby, 2006). (TAM TAM TAM!!!) A tentativa de suicídio de qualquer dos três últimos constituía uma afronta à autoridade legal do pater familias, bem como à figura  do imperador. Aos soldados e escravos eram previstas algumas penas no caso de sobrevivência a uma tentativa de suicídio. No primeiro caso, havia por detrás da proibição um interesse político evidente; no segundo, interesses econômicos.

A violência e tragicidade dessa morte, contudo, não deixava de causar inquietações. De modo que em alguns lugares eram realizados rituais supersticiosos com o cadáver do suicida para impedir que o morto perturbasse os vivos. Por exemplo, em algumas regiões, o corpo era mutilado e cada parte enterrada separadamente. Em outras, ele era enterrado em uma encruzilhada ou com uma estaca cravada no peito. Tudo isso para que o morto não viesse a se levantar e encontrar o caminho de volta à sua cidade. (Loucura esses rituais. Mas vem coisa pior pela frente)! Também, acredita-se que o suicídio por enforcamento era o mais rejeitado pelos romanos, uma vez que as vítimas mortas por asfixia sem efusão de sangue eram oferecidas às divindades telúricas (Minois, 1998, p.66). (Essa informação foi outra que eu coloquei porque eu achei que parecia fazer uma referência interessante, mas eu nunca consegui encontrar muitas informações a respeito. Vou fazer mais algumas pesquisas sobre isso para ver se eu consigo encontrar alguma coisa. Afinal, cinco anos já se passaram da minha formação… Muito artigo novo já foi escrito nesse tempo…).

A natureza do ato variava por razões que compreendiam motivos políticos, para escapar à decrepitude da velhice, por ordálio[1], suicídios lúdicos – como era o caso dos gladiadores voluntários –, martírios voluntários – cometidos pelos cristãos em nome da fé, nos tempos em que o cristianismo está se firmando – e os suicídios por taedium vitae. Este último se define pelos suicídios por desgosto da vida, sendo caracterizado por uma espécie de tédio mórbido e ansioso, ocorrendo mais frequentemente nos períodos das grandes transições históricas ou crises da consciência quando as verdades religiosas e científicas, os valores tradicionais e a moral são postos em questão. Ele é verificado normalmente no seio da elite intelectual. (Olha só quantas concepções diferentes de suicídio existiam nessa sociedade! Hoje em dia isso também existe, mas como o suicídio é sempre pouco debatido, são discussões com as quais não estamos muito familiarizados. Talvez eu ainda escreva sobre isso no blog. Sobre taedium vitae eu já escrevi. Você pode ver aqui).

Contudo não se tem razão para crer que Roma haveria assistido a um número de suicídios relativamente maior do que o ocorrido em outros períodos históricos por conta de sua permissividade perante o ato. (Esse é outro tema quente de discussão).

 

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1] O ordálio era uma espécie de julgamento dos mortais pelos deuses. Nesse tipo de situação a morte era certa. Tal julgamento consistia em submeter o acusado a circunstâncias nas quais a vontade dos deuses pudesse se manifestar. Por exemplo, ele poderia ser lançado a um rio e o seu afogamento traduziria tal vontade. No entanto, caso isso não ocorresse se entendia que a culpa do sujeito era tão grande que mesmo o rio o rejeitara e ele era então submetido a uma pena de morte.

Poço sem fundo.

Interessante, porque eu precisei atingir várias vezes o fundo do poço antes de finalmente perceber que o poço não tem fundo.
Quando me dei conta da profundidade insólita do poço eu pensei: o suicídio, então, deve ser o real fundo do poço.
Mas nem nisso eu acredito mais.
O suicídio é a decisão de construir um fundo artificial no poço. Do tipo: daqui eu não passo mais. Então vou me matar porque se eu continuar vivo vou inevitavelmente continuar afundando.
Claro que eu estou viva ainda. E não estou miserável o tempo todo. Já estive muito mal no passado. Atualmente minha vida é linda. Isso não quer dizer que os sentimentos negativos não existem mais.
Nos momentos de infelicidade, eu tenho que fazer um esforço homérico para impedir que a tristeza atual dê as mãos com as mágoas do passado, me deixando devastada, vazia, em total desespero. E esse esforço geralmente é bem sucedido.
Isso me mostra que existe uma alternativa. A alternativa é parar de cavar.
Parar de cavar o fundo do poço. Porque se a gente cavar, vai se enterrar cada vez mais na lama, não é? Como o poço não tem fundo, quanto mais a gente cava, mais afunda.
Mas a gente não percebe isso e continua cavando. A gente não percebe que se parar de procurar, a gente encontra menos problemas e preocupações.
Eu tenho simplesmente tentado ignorar certas preocupações e pensamentos que eu remoía antes e que não me levavam a lugar nenhum.
Ignorar significa reconhecer que estão ali presentes, sem ficar me dedicando a pensar cada um dos pensamentos negativos que pipocam na minha cabeça. Parar de ruminar preocupação e partir para abordar as soluções.
Não conclua a partir daí que eu não penso na vida, não busco autoconhecimento ou que não tenho altos devaneios intelectuais.
Chafurdar nas nossas mágoas não é algo enriquecidor. Pelo contrário. Isso chega mesmo a nos impedir de transformar experiências negativas em potência.
Quando eu estou triste, eu escrevo, desenho, danço etc.
Quando eu estou no fundo do poço, eu não escrevo nem faço mais nada. Se bobear nem banho tomo (me julga, mas aposto que sabe do que eu estou falando!).
O fundo do poço é paralisante e não nos ilumina em relação a mossa essência. Não nos leva a concepções filosóficas profundas. O fundo do poço não é nobre. É podre. Lá só tem morte, lágrimas e desespero.
Portanto pare de chafurdar na lama do fundo do poço e encontre a sua forma de transformar sua tristeza em arte, criatividade e vida boa.

Abertura de Possibilidades na Polis.

 Capítulo I

O caso específico da morte como escolha refletida é posta ao lado da razão no mundo grego, devendo ser avaliada e tida como solução para uma vida desonrosa. É notável a multiplicidade de argumentos e concepções que envolvem as correntes filosóficas gregas e, mesmo dentro dessas, tantas outras ocorrências particulares. As abordagens sobre o tema apontam para opiniões acerca do suicídio que envolviam repúdios e glorificações. Havia na Antiguidade, certo reconhecimento da nobreza do ato e as posições favoráveis eram muito mais frequentes do que em períodos históricos posteriores. Não se trata de um período legitimador do ato, mas sem dúvida, não havia elaboração de severas interdições.

Como ilustrativo do afirmado pode-se recorrer ao exemplo de uma série de personagens históricos ilustres tais como os suicídios patrióticos de Temístocles e Demóstenes; o suicídio por remorso de Aristodemo; suicídio para escapar a decrepitude da velhice de Demócrito; suicídios filosóficos por desprezo à vida de Zenão, Hegésias, Diógenes e Epicuro; suicídio por amor de Panteu, Hero e Safo (Minois, 1998, p.61). (É muito pobre geralmente a pesquisa de um trabalho monográfico. Não por desinteresse do aluno, mas porque o aluno é extremamente limitado no que ele pode dizer em uma monografia. Ele ainda não é o produtor do conhecimento, ele é o reprodutor do mesmo. Na monografia, a tarefa do aluno é basicamente a de mostrar que ele é capaz de ler e compreender um determinado número de escritos consagrados de diversos autores e reproduzir o conhecimento que ele adquiriu nas próprias palavras. Esse é um trabalho que me parece um bocado vazio de significado. Para que serve esse resumam feito pelo aluno ao final de uma graduação? Mais uma rebuscada prova de que ele absorveu conteúdo da maneira tradicional. Pior ainda é o destino do trabalho monográfico no mundo acadêmico. As monografias não são bem vistas como referências bibliográficas nem mesmo de outras monografias. No mínimo, para você citar em um trabalho acadêmico ou em um artigo, você pega uma dissertação de mestrado. E olhe lá! Não é das referências tidas como mais confiáveis ou “nobres”. Bom, tendo em vista esse estado de coisas, nos limitamos a repetir o que os autores consagrados disseram. Messes espírito, eu repeti os exemplos citados por Minois na minha monografia. Eu pesquisei sobre cada um dele para saber o que tinha acontecido, pois o autor não entra em detalhes, mas mesmo assim eu não deixo de sentir um certo incômodo, sabe? Foi ele que fez a pesquisa e não eu. Eu imaginava que pesquisar, academicamente falando, era ir até a biblioteca e desenterrar coisas desconhecidas. Essa foi uma expectativa frustrada…)

Entre os pré-socráticos não são encontradas muitas menções ao tema, exceção feita aos pitagóricos. Opondo-se radicalmente ao suicídio, argumentam que, por ser esta uma morte violenta, ela desequilibra as relações matemáticas que ligam a alma ao corpo. (Eu me lembro de ter achado a maior loucura essa coisa de que as relações que ligam a alma ao corpo são da ordem de equações matemáticas! Muita viagem! Dava para escrever uma ficção científica em cima dessa ideia. Eu procurei pela equação na época e não consegui achar nada. Agora, relendo a monografia, bate novamente a curiosidade: será que os caras chegaram a escrever essa equação? Esta aí uma coisa que eu gostaria de ver). Ademais, haveria, nesta vida, um propósito a ser cumprido do qual não se deve evadir, pensamento que explicita a importância dada pelos pitagóricos às questões espirituais, em consonância com sua herança órfica (Oliva e Guerreiro, 2000). (Essa herança órfica eu me lembro de ter dado um trabalho para entender na época. Difícil encontrar informação de fontes utilizáveis na monografia, sobre o tema. Iria dar muito trabalho. Como todo aluno sensato, eu só mencionei com a referência de onde o leitor poderia encontrar mais sobre o tema e deixei para que quem tivesse interesse corresse atrás do que se tratava. Na verdade, se eu não me engano, tratava-se da influência, na filosofia, das ideias do poeta místico Orfeu. Se você tiver curiosidade, não é difícil encontrar informações sobre ele na internet).

Um exemplo mais rico será encontrado com a polêmica condenação de Sócrates, que suscita a hipótese de suicídio e provoca debates a respeito do pensador tê-lo aceitado, à medida que recusou chances de minimizar sua pena. Havia sido acusado pelas autoridades atenienses de professar contra os deuses e corromper a juventude, pondo em risco a ordem da cidade. Sócrates entendia que o cumprimento de qualquer penalidade seria o reconhecimento de culpa e traição aos seus ensinamentos proferidos até então. Ao longo de seu julgamento desafia seus juízes e comprova a inconsistência das acusações, além de rejeitar penas alternativas propostas por seus concidadãos ou o pagamento de fiança por seus alunos. No diálogo Fédon, os acontecimentos demonstravam que as atitudes de Sócrates sugeriam resignação diante da morte. No entanto, em seus últimos momentos, quando indagado sobre essa conduta, ensina a seus discípulos que “os homens estão em uma espécie de prisão e que não devem nem se liberar nem se evadir da mesma” (Fédon, 62-b). Os homens pertencem aos deuses e, por conseguinte, só poderiam matar-se ao receberem um sinal, uma forma de autorização dos mesmos, como era o seu caso. Certos trechos do diálogo Fédon apresentam ensinamentos sobre a alma segundo os quais aquele que se dedica à filosofia estaria se dedicando a um exercício de saber morrer. Para o filósofo, a alma se tornaria cada vez mais elevada através da filosofia, mas só podendo encontrar a verdade e a sabedoria absoluta – a contemplação das essências – na morte. Portanto, a mesma não deveria ser temida, sendo, com efeito, a própria musa da filosofia. (Um parágrafo da monografia sobre o Fédon… Mas como deu trabalho escrever esse parágrafo. Ler o diálogo, ler sobre o diálogo, resumir as partes mais importantes. É muito insano esse trabalho. Tem coisa até que rende mesmo. Você lê um parágrafo e escreve uma página. Aqui, eu li mais de cem páginas e escrevi um parágrafo. Que tristeza).

Nas Leis, ao definir condenações para os delitos, Platão estabelece que aqueles que matam a si, privam-se do seu destino e cabe aos mesmos serem enterrados “sem glória” e sem lápides, em regiões anônimas. São levantadas três ressalvas para tal condenação que tornam confusos os limites dessa interdição, como em caso de ordenação pela justiça da cidade, acometimento do indivíduo por grande dor, ou ainda se o mesmo é investido de intensa vergonha “contrária à vida”. Afora essas exceções, a morte de si é tida como indefensável, covarde e indolente (Platão apud Puentes, 2008, p.61).

A filosofia aristotélica aproxima-se de Platão apenas por reputar ao homem sua função social acima de interesses pessoais. Aristóteles apresenta sua posição de maneira mais incisiva, negando qualquer exceção a favor da morte de si mesmo e introduzindo um novo argumento contrário a ela. Em sua obra A Ética a Nicômaco, o filósofo afirma que os cidadãos têm obrigações para com sua comunidade, tirar a própria vida representaria uma injustiça contra a Cidade. Afirma que esse caso específico de proibição do suicídio não se encontra nas leis, mas o que ela não ordena, proíbe (Aristóteles, 1973: v 15, 1138 a, 6-7).

Em 323 a.C., a morte de Alexandre e a tomada das cidades gregas pela Macedônia tiveram por efeito drásticas rupturas no pensamento clássico. Subjugado pelo domínio estrangeiro, o homem grego, cidadão e animal político, que antes exercia sua liberdade nos espaços públicos da cidade, agora passa a confinar sua busca por autarquia através de recursos espirituais, num processo intimista de adaptação às transformações sociais. Sendo assim, a filosofia desse período está marcada por um forte caráter ético, que se mostra na busca individual pela felicidade, uma espécie de “salvação interior” (Châtelet, 1981, p.168) independente das circunstâncias. Esse pensamento diz respeito a uma prescrição do bem viver que caracteriza a filosofia em seu sentido popular, a “filosofia de vida”.

Cabe aqui uma digressão teórica. Em seus estudos sobre a sexualidade na Antiguidade, Foucault ressalta as formas de relação consigo mesmo exercidas através de práticas cotidianas pelos indivíduos, as quais permitem o entendimento de si enquanto sujeito.  Essa experiência de si respeita a um projeto estético da existência, no qual tais sujeitos constituem um estilo de viver próprio. Os modos individuais de relação com os saberes (jogos de verdade e discursos) e práticas de temperança, de técnicas racionais – estratégias de poder – que lhes permitem se reconhecer e estabelecer verdades sobre si, conferindo sentido, dentre tantas outras, às condutas diante da morte (Foucault, 1984, p.15). (Parece deslocado esse paragrafo ou é impressão minha? Mas tem a ver. Por conta dessa ideia da “filosofia de vida”. Fala do modo como as pessoas se relacionam consigo mesmas. E disso o Foucault sabia falar, ainda que, não abro mão de dizer, suas interpretações da filosofia do mundo antigo sejam questionáveis).

Se o período clássico de Platão e Aristóteles é marcado pela censura do suicídio em suas nuanças, nas correntes helenísticas, a morte de si, enquanto atitude racional, torna-se a expressão máxima da liberdade pessoal e livramento de uma vida de injúrias. (Olha aí aquilo que a gente falou lá na introdução de que não existe uma essência do ato, uma única maneira de pensa-lo. Várias visões contraditórias convivem e entram em conflito o tempo todo. O tempo vai selecionando o que chega para nós como vertente principal, mas é só cavucar um pouco que essa imagem se desconstrói). Dentre as escolas filosóficas mais expressivas que se pronunciam a respeito do tema encontramos os cirenaicos, cínicos, epicuristas e estoicos. Os dois primeiros se mostram um tanto pessimistas com relação à existência, afirmando que a vida é certamente mais desprazerosa do que prazerosa, tendo-se, por conseguinte, a morte como alternativa preferível à vida. Nas palavras de Diôgenes Laêrtios, para os cirenaicos a felicidade é “totalmente impossível, pois o corpo é afetado por muitos sofrimentos, e a alma padece juntamente com o corpo e se perturba com ele, a sorte impede a concretização de muitas esperanças; consequentemente a felicidade é inatingível.” (Povo macabro). Um de seus principais representantes, Hegésias, chega a ser chamado de peisithánatos, que significaria “aquele que persuade a morrer” (Diôgenes Laêrtios, 1988, p.68). Para os cínicos, a morte se constituía enquanto alternativa que de pronto se apresenta àquele que não vive arrazoadamente sua vida. Já a concepção hedonista de Epicuro alerta que o homem livre não deve almejar nem temer a morte. Segundo o filósofo, a morte refletida evidencia a transposição de equívocos supersticiosos e a filosofia se apresentaria como instrumento de libertação do homem e de acesso à verdadeira felicidade. Pois a alma não necessariamente padece junto ao corpo dos males que se lhe abatem. Ele também alerta para o risco da sociedade produzir nos homens a insensatez do gosto pelo luxo, pelo não necessário e sugere: “É um mal viver sob o jugo das necessidades, mas não é necessário viver sob a necessidade” (Epicuro apud Sêneca, 2008). (Na boa, eu citei o Epicuro a partir do texto do Sêneca, mas eu mesma não confio. Fiz isso pela dificuldade em acessar material do primeiro. Pois o Sêneca é um filósofo por si só. Sem comprometimento com as regras e os apreços atuais da academia, que tem a própria fama para proteger. Não duvido nada que ele possa ter distorcido a citação do Epicuro a seu favor).

Os estoicos inauguram uma perspectiva de indiferença sobre a vida e a morte, a exemplo de Zenão seu reconhecido fundador, que se matou por desprezo à vida. Afirmavam que o homem sábio haveria de preferir um modo de vida racional voltado para a contemplação e ação lógicas, em busca da retidão das vontades. Cumpre ao homem extirpar suas paixões e opiniões e cultivar suas virtudes, independente das circunstâncias de sua existência. Não teriam relevância a morte, a pobreza e a escravidão. Todavia, o desprezo pela vida somente seria legítimo por “motivos razoáveis”, quais sejam: em defesa de amigos e da pátria ou em casos de doenças incuráveis, dores insuportáveis e mutilações (Diôgenes Laêrtios, 1988, p.130). A recusa de uma vida limitada, de enfermidade, aproxima-se menos da destruição de si do que de uma apropriação ou apego a si (Gazzola, 1990, p.102).

O contato de Roma com a cultura grega leva todo seu império a entrar na “órbita do helenismo”, redimensionando seus saberes. A proposta estoica de austeridade física e moral, baseada na resistência ante o sofrimento, bem como a participação do homem na vida pública, coincidiram com o modo de vida romano e sua dedicação ao Estado. O contágio pelo estoicismo, como a doutrina que privilegiava a autodisciplina, a sujeição à ordem natural e o cumprimento dos deveres atendia aos hábitos romanos e suas incumbências cívicas (Pirateli e Melo, 2003, p.64). O prosaísmo romano se distanciava da riqueza das abstrações gregas, no entanto, foi de fundamental importância para materializá-la em seus quadros cívicos e jurídicos.

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

Medo da chuva. 

O medo de estar fora de casa em um dia de chuva. 
Outra quarta feira.
Depois de ver o meu bairro alagado, um pingo de chuva já me faz antever uma noite de desgraça, molhada, presa na rua da amargura até altas horas da madrugada.
Ah! Praça da Bandeira! Não alague! Me deixe retornar!
O bom do post de hoje é que tem um pouco mais para você ler aí preso no engarrafamento.

História do Suicídio. Introdução.

INTRODUÇÃO

 

No presente trabalho pretende-se realizar uma discussão acerca de argumentos filosóficos, médicos e teológicos que influenciaram fortemente a noção de suicídio através do período compreendido entre os séculos IV a.C. e XVIII d.C., pondo em questão a própria definição do suicídio e tomando-o como base para reflexão sobre temas pertinentes a esses momentos históricos. (Este trabalho foi várias vezes apresentado na Jornada de Iniciações Científica da UFRJ. Ele sempre passava para a segunda fase, quando geralmente caía em uma mesa na qual os professores moderadores eram historiadores e eles sempre, sempre, sempre, implicavam com a abrangência histórica do trabalho). Dessa forma é preciso alcançar suas diversas áreas de constituição e validade, compreendendo seus modos de uso e a multiplicidade dos campos teóricos dos quais partem. Não se trata de uma história da interdição ou liberação da morte auto-infligida e sim da investigação de como esta insurge enquanto problema para o pensamento, regida por uma intensa relação de forças que em nada se aproxima da totalização e naturalização de fatos necessários que se organizem rumo a um sentido final. Também não se trata de buscar a proveniência do suicídio, sua essência, de forma exata, inabalável pela exterioridade e acaso. Entendem-se as definições a serem discutidas como redes de singularidades entrecruzadas de começos inumeráveis que demarcam aspectos inéditos sobre o tema, captando acontecimentos que compõem seu caráter dispersivo e heterogêneo.

Sob a perspectiva das indicações historiográficas de Michel Foucault, referimo-nos ao surgimento histórico, ou emergência de nosso objeto, como o ponto onde forças discursivas entram em conflito fazendo aflorar acontecimentos. (Portanto, fica claro que o nosso não era um trabalho de historiografia tradicional. Em parte, isso já justificava a abrangência do nosso recorte temporal).

Em diferentes períodos históricos, certas posições acerca do tema do suicídio despontaram dessas batalhas conceituais e se tornaram emblemáticas de seu tempo por constituírem campos de saberes dominantes. Tais posições acerca da prática da morte de si foram tomadas como marcos de reconhecidos momentos históricos, como discutiremos a seguir, a título de limitação metodológica. Todavia, a diversidade da rede de discursos minoritários, ou murmúrios, que perpassam a constituição dos grandes campos de saber desestabilizam a tentativa de estabelecer uma ideia original ou universal do suicídio. (Essa ideia de murmúrios é muito interessante. É como se, do debate teórico, sempre despontasse uma voz dominante, aquele que grita mais alto do que os outros, enquanto todos os outros estudiosos, e, principalmente, as estudiosas, ficam ali murmurando ao redor, baixo demais para que possamos ouvi-los. Precisamos de muita atenção para poder distingui-los. Vale ressaltar que se destaca quem grita mais alto mesmo, no sentido de quem ganha o jogo de poder, e não necessariamente aquele que está mais correto). Por essa razão, são levantadas algumas problematizações, antes de tudo para demonstrar a luta entre diferentes perspectivas, que não constituem uma ideia simples e totalizante, produto de aprimoramento progressivo, mas sim um objeto que traz consigo descontinuidades, rupturas, convergências e subversões de si mesmo. (Essa é a tentativa de ouvir os murmúrios). A demonstração da pluralidade na dimensão das práticas, dos saberes e dos jogos de poder tem por efeito dispersar o “gradiente de abstração” responsável pela conservação da ideia pura de suicídio, que resiste aos acontecimentos sob diferentes máscaras através dos tempos. (Esse conceito “gradiente de abstração”, poderia estar mais bem explicado. Foucault fala sobre isso em seu livro Arqueologia do Saber. Onde ele afirma que “a história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua elaboração” (p. 5). Entende-se que um conceito é algo abstrato. Essa característica garante que ele não seja influenciado pelas contingências, aquilo que acontece na realidade não tem efeito sobre os conceitos. Isso faz com uma determinada ideia permaneça aparentemente inalterada através dos séculos, que ela pareça eterna e imutável. Na verdade, há os tais jogos de poder por detrás da aparente univocidade dos conceitos. Quando ouvimos os murmúrios, o conceito de suicídio, por exemplo, se racha em mil pedacinhos).

A luz dessa referência metodológica, utilizamos como principal fonte pesquisa e ponto de partida para demais investigações o livro de Georges Minois (1998): História do Suicídio. Este estudo apresenta a problemática do suicídio, não como demográfica, mas religiosa, moral, cultural e filosófica que pode revelar modos segundo os quais os indivíduos vivem, se relacionam e auto-representam característicos de uma sociedade. (O recorte histórico que seguimos, foi o recorte feito por este autor).

Uma análise da morte voluntária implica, portanto, em restituir sua dimensão acidental e principalmente por em discussão suas noções parciais ou discursos de diferentes ordens. Os saberes a respeito desse tipo de morte colocam-se em relação de complementaridade com suas práticas e produzem verdades a respeito das mesmas. Nesse sentido, qualquer conhecimento produzido sobre a morte auto-infligida e seus modos de execução dizem respeito ao seu comprometimento político, histórico e social.

A exemplo da parcialidade dos discursos, podemos refletir sobre a significação da própria palavra suicídio.

O termo suicídio indica uma conotação claramente política e um compromisso moral de desprestigiar o ato associando-o ao homicídio, em razão de seu contexto histórico. A palavra suicidium, formada pelo prefixo ‘sui’, pronome possessivo e ‘caedere’, ato de matar, não foi usada antes do século XII por razões léxicas e gramaticais, pois a língua romana recusava compostos com prefixo pronominal. O termo foi forjado pelo teólogo Gauter S. Vitor, na obra Contra Quator Labyrinthos Fraciae, e claramente carregava o propósito moral supracitado, tal como foi proposto por Santo Agostinho. (Pois foi Agostinho que aproximou o ato do suicídio daquele do assassinato). O termo foi abandonado durante séculos por tais razões linguísticas e por volta do século XVII retoma importância, sendo difundido através da língua inglesa, que nessa época admitia barbarismos e neologismos, antes rejeitados pela língua escrita (Góes, 2004). (Por essa anomalia gramatical é que o certo em português é falar: “Fulano suicidou” e não “Fulano se suicidou”. Mas soa estranho sem o se mesmo).

Apresentaremos agora uma breve análise ressaltando alguns períodos históricos que remontam a diferentes usos da morte voluntária e inúmeros argumentos que a atravessam a fim de demonstrar a diversidade e riqueza de seus saberes e práticas.

 

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

“Carbono Alterado”. Resenha.

A nudez empoderadora dos vários de corpos nus daquelas mulheres mortas.

Um depois do outro, os corpos já saem estragados de suas capsulas. Sujos de sangue e danificados. Provavelmente ninguém aceitaria usá-los naquelas condições. Prefeririam corpos novos e frescos, sem imperfeições.

Muitos homens olham, muitas mulheres olham. Na verdade, está ali para o olhar de todos.

Nudez frontal completa.

Proibida.

Quanto paus você já viu pendurados em filmes por aí?

Mesmo em filme pornô, se for heterossexual, aposto que não terão sido lá tantos assim.

Mas mesmo uma pessoa que nunca assistiu a um filme pornô já viu muita mulher pelada nessa vida.

Já me falaram “é característica sexual secundária, não pode mostrar o pau do homem porque é primária”.

O biólogo entendido querendo me falar de moral e opressão. Ou melhor, o biólogo nem acha que opressão existe mais. Vocês já estão libertas. Agora ficou o seu ciúme, a sua inveja, a sua histeria.

E eu vejo aquela mulher nua, ensanguentada.

Eu não vejo poder.

E, como se não bastasse, mais uma e mais uma e mais uma. Caindo mortas. Os crânios abertos, os mamilos duros, a buceta à mostra, a bunda para o alto. E lá vem outra também caída, morta.

Mas o problema não é que a cena seja violenta.

O problema não é que tenha nudez.

O problema é que essa nudez violenta é entretenimento na tela do Netflix, mas é real dentro das casas durante a noite, ou quando não tem ninguém por perto, ou quando só as crianças estão por perto.

E se você perguntar para uma mulher, nua, agredida “você se sente empoderada”? Ela vai te responder que não.

Será que o marido dessa mulher nua que apanha e sangra depois de assistir Carbono Alterado vai ter sua consciência aliviada? A mulher dele ali jogada no chão com a marca da botina no estomago perfeitamente

Empoderada.

Poderia estar na tela da TV como símbolo do empoderamento.

Ops. Desculpe. Está sim.

Por que agora eu tenho que engolir que corpos mortos, nus, esparramados pelo chão, de mulheres assassinadas são uma forma poderosa do empoderamento feminino.

Mas eu já estou acostumada. Tentaram me convencer dessa mesma patifaria na humilhação da Cersei Lannister.

Uma mulher nua, em quem bateram, cuspiram, jogaram fezes, gozaram. Essa, me disseram também, era uma mulher empoderada. Foda. Que aturou tudo e ia dar a volta por cima.

Grandes merda, seus babacas.

Empoderamento de merda esse que querem me enfiar goela abaixo. Esse empoderamento serve para colocar as mulheres em cenas extremamente depravadas, degradantes, violentas, apontar o dedo e dizer “Tudo isso que ela aguenta é sinal de poder e não tem nenhum homem gozando com isso. Tudo isso ela faz por que quer”.

Melhor já ir logo dizendo: não rasguem as minhas roupas, não joguem merda em mim quando eu passar pela rua, não gozem na minha cara, não me assassinem. Esse não é o empoderamento que eu quero para mim.  

 

 

Divulgação Científica.

Os trabalhos acadêmicos geralmente são engavetados depois de entregues (trabalhos de conclusão de disciplina, monografias, dissertações e teses) e grande parte deles jamais torna a ver a luz do dia.

Nós, os autores, ficamos nos prometendo que voltaremos a eles algum dia porque “ainda dá para tirar um artigo dali”. Mas dificilmente voltamos.

Resolvi aproveitar o projeto do blog para finalmente colocar em prática a proposta de retomar os trabalhos acadêmicos que já produzi. Despretensiosamente. Para me refamiliarizar com os estudos do passado e avaliar se algum é, de fato, promissor.

Aos poucos vou postando os trabalhos que já produzi (divididos em partes conforme eu os for relendo), fazendo comentários ou aprimoramentos nos mesmos, como um primeiro passo para recauchutá-los e, quem sabe, vir a publicá-los. Vou tentar me lembrar de sempre destacar os acréscimos ou correções sublinhando-as.

E ainda, é claro, um objetivo não menos importante, quero dar uma arejada nesses textos. Deixá-los mais disponíveis, acessíveis para além da comunidade acadêmica.

Farei isso sem pressa. Aos poucos e no ritmo que o meu coração ditar.

A começar pela minha monografia. A minha monografia teve origem no trabalho final da matéria Tópicos Especiais em Psicologia Social K, da qual fui monitora. A disciplina era sobre o tema do suicídio. O trabalho foi, em grande parte, feito em dupla, com Mhyrna Boechat.

 

REFERÊNCIA DO TRABALHO:

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.