Prólogo do filme “O Anticristo”.

Uma criança caía da janela no momento em que sua mãe atingia o orgasmo. O menino estava encantado com a neve lá fora. Ele subiu no parapeito e sacudiu as mãozinhas no ar agitando os flocos. Confundia-os com brinquedos.

O menino havia passado pelo quarto dos pais a caminho da janela. Ele olhou a figura emaranhada que se contorcia em cima da cama. O mesmo olhar sereno que olhava para ursinhos de pelúcia que flutuavam pelo quarto. Os pais, que já estavam prestes a gozar, não ouviam nada, nem mesmo crianças vagando pela casa.

O menino deveria estar no berço. Mas a barulheira que os pais ignoravam o acordou e instigou; o som da água do chuveiro, da máquina de lavar roupas, o barulho de garrafas sendo derrubadas e líquidos derramados.

O casal havia colocado o bebê para dormir e a roupa suja na máquina de lavar. Homem e mulher foram tomar banho e acabaram trocando olhares apaixonados.

As gotas de água do chuveiro, todo o líquido derramado e a neve que entrou pela janela não chagaram a constituir o volume de uma só das lágrimas da mulher.

Zelofilia. 

Estava hoje no ponto com meu namorado praguejando contra o ônibus que não passava nunca. Uma menina perguntou se também estávamos esperando o ônibus tal, nós respondemos afirmativamente e mencionamos que já estávamos no ponto há quase dez minutos. Meu namorado perguntou para onde ela estava indo. Para a universidade. Assim como eu e meu namorado, que continuou puxando assunto com ela. Acaba que a menina já tinha ido para Cuba turistar. Ela começou a contar o que era mito e o que era verdade sobre a vida em Cuba, mas já era tarde demais para mim. Eu estava perdida da conversa. Já mergulhara em uma profunda e familiar angústia. Eu comecei a me sentir extremamente desconfortável e, agora que eu já tenho a prática adquirida com anos de sofrimento, consigo identificar prontamente o sentimento de ciúmes tomando conta de mim.
Na minha cabeça meu namorado já estava de pau duro e ela lambia os beiços para ele. Imaginei-a usando um baton vermelho bem brilhoso que não ia sair quando ela o chupasse.
Quando eu sinto ciúmes, começo a vasculhar o corpo da outra mulher para me sentir no controle do que meu namorado está vendo. Imaginei que ele devia estar se perguntando se a garota usava calcinha debaixo do short ou não, pois o short lhe marcava bem o meio da bunda. Acho que ele preferiria acreditar que não. Olhei para ele e vi que esfregava uma mão na outra. Ele deve estar se imaginando esfregando a buceta dela, óbvio. No mundo ideal da cabeça dele, ele provavelmente se aproximaria dela, que fala agora alguma coisa sobre os livros didáticos cubanos e comenta que eles não possuem imagens. Nem mesmo os livros de história. Eu tento me desvencilhar do sentimento mutilador para entender o motivo de tanta aridez nos livros infantis, mas quando percebo o modo como ele olha para a garota e comparo com aqueles olhares de soslaio que ele direcionava a mim desde que se iniciara a conversa com a outra eu fui relançada à imaginação. Pois bem, ele dá o primeiro passo em direção a ela. A aproximação a princípio não é total, de modo que as superfícies de seus corpos apenas roçam uma na outra. Antes de beija-lo, ela tira a camisa e expõe seios firmes e fartos. Ele enfia uma mão na própria calça para puxar o pau para fora, já ereto, largo, comprido, rosado, roliço; a outra mão agarra o peito direito da menina. Antes de beijar-lhe a boca, beija-lhe o peito esquerdo. Nesta cena os peitos da meninas estão puxados em direções opostas. Um mamilo aponta na minha direção. O outro só Deus sabe para onde no interior do meu namorado ele apontava. Meu namorado se afasta para tirar o short da menina. Sem calcinha. Meu namorado é delicado e ela desfruta de cada um dos passos das preliminares apesar da urgência do tesão. Ele desliza junto com o short dela até o chão. Beija sua barriga, seu púbis, a lateral da coxa, a parte de cima do pé. Ela levanta uma das pernas e a apoia no assento. Nessa hora eu já nos imagino dentro do ônibus. Os peitos da menina sacodem livremente a cada solavanco em sintonia harmoniosa com o movimento relativamente restrito do pênis ereto, que também balança no ar, antes de se iniciar a penetração, que virá logo em seguida. Aqui já nos encaminhamos para o final da trepada. Há movimentos de repetição, que alternam rapidez, lentidão e algumas penetradas profundas toda vez que o ônibus passava em algum buraco ou quebra-mola. Ela goza, ele goza e a merda é que eu gozo junto.
Quando cheguei em casa fui perguntar ao Google o que estava acontecendo comigo. Estava confusa e desorientada. Ainda bem que o Google tinha um nome para o que eu estava sentindo: zelofilia. Significa a excitação sexual provinda do ciúme.
Acalmei-me imediatamente ao ler a palavra e sua definição. Estranha essa capacidade das palavras de nos confortar e de fazer com que não nos sintamos mais tão sozinhos no mundo. Senti-me abraçada e consolada pela palavra, unida a milhares de zelofilílicos espalhados pelo mundo, senti que minha experiência havia sido importante a ponto de ser categorizada pela ciência sexual. E ainda tem gente que me pergunta por que eu escrevo. Simples: escrevo porque sofro por motivos de ciúme ao passo que gozo pelo mesmo motivo e é só nas palavras que encontro aceitação positiva incondicional.

Problemas Secundários Incapacitantes.

Estou no último período da faculdade e, a esta altura da vida, venho frequentando instituições de ensino há dezenove anos. Me pergunto em quantos dos dias que transcorreram ao longo destes dezenove anos eu acordei às 07h da manhã com vontade de estudar. Em muitos destes dias, muitos mesmo, eu acabei ficando em casa e não indo à escola ou à faculdade. Nunca repeti de ano, contudo. Nunca repeti uma matéria obrigatória na faculdade. Bendita culpa mortificadora que fazia com que eu me desesperasse ao final de cada ano ou semestre e tentasse recuperar o tempo perdido. Digamos que eu recuperava sempre cinquenta por cento do tempo perdido e passava no fim das contas. Já na faculdade, repeti algumas eletivas por abandono por conta da greve das universidades de 2012. Sinto dizer que minha vida seguiu normalmente depois desse tão temido fracasso. Conheci inúmeras pessoas, me envolvi romanticamente – ou nem tão romanticamente assim – com algumas muitas delas, fiz poucos amigos. E na soma de tudo parece que todas essas experiências vêm dar aqui neste momento nulificante quando sou obrigada a ouvir uma professora afirmar que “o insensato não deve ficar entregue a si mesmo, pois será imprudente”. Eu tenho novidades para você, mocinha. “O insensato” somos nós. Até aqui, em pleno último período da faculdade de psicologia, as pessoas estão me dizendo que a loucura está lá fora. Ainda bem que eu já sei que isso não é verdade. Eu fiz poucos amigos ao longo da vida e tive péssimos namoros provavelmente porque haviam me convencido de que a loucura estava, na verdade, lá fora. Pedi muitas desculpas, me culpei e me achei muito estranha por muito tempo. Sempre que eu batia a cabeça na parede em um momento de desespero eu pensava: “Puta que pariu!!! Eu tenho que ir pedir desculpes para ele AGORA!!! Louca desse jeito ninguém mais vai me querer mesmo…”.

E a voz da professora ressoa novamente proferindo mais uma pérola: “Na solidão, a própria pessoa pode se trair”. E eu pensei: “Para essa merda! Ela está lendo meus pensamentos!”. Sim, professora. Eu também cheguei a acreditar que a solidão era minha pior inimiga. E, graças a minha inacreditável capacidade intelectual, alguns livros sobre feminismo e outros tantos péssimos relacionamentos, hoje em dia eu sei que a loucura não está lá fora e que a solidão não é a minha pior inimiga. A despeito da sabedoria da doutora, eu afirmo que a solidão foi o primeiro estado de absoluta sinceridade do qual desfrutei. Foi o passo necessário para que eu pudesse depois me reaproximar de corpo e alma do mundo de um modo geral e das pessoas de um modo muito mais específico e particular do que eu jamais havia sido capaz antes de ser confrontada com a solidão da minha própria companhia.

Estas novas sabedorias, que ousei ao longo da vida, me são muito caras, pois as pequenas e inocentes sabedorias ultrapassadas de todos aqueles que nos ensinam o que é bom e correto, paralisaram minha vida por muito tempo. Estou feliz por finalmente ter chegado a hora da libertação. Eu acho que todo mundo sabe, na faculdade você pode sair da sala sem pedir permissão para ir ao banheiro ou beber água. Assim que eu terminar de escrever a última palavra deste texto vou me levantar da minha carteira sem fazer questão de ser discreta e vou sair da sala, passando pela frente da professora. Não vou passar olhando para o chão. Na verdade, acho que vou passar olhando para o teto. Quem sabe ela não se toca de que a insana solitária sou eu e do quão libertador será meu comportamento rebelde.