Esfaquearam o Bolsonaro.
O país está realmente insano. Eu nem entrei no Facebook ainda para ver o que a galera está dizendo. E aí é complicado, porque eu tenho nojo do cara, mas tem que defendê-lo dessa tentativa de assassinato. Não tem jeito. O cara não tem que ser assassinado.
Eu nem sei o que pensar, o que dizer…
Atentado da esquerda? Para quê? Perder popularidade e tornar o cara um mártir?
Um maluco aleatório? Duvido.
Teoria da conspiração: foi a globo que ordenou? Ou qualquer outra organização liberal? Eu não duvido mais de nada.
Foi ele mesmo que orquestrou o atentado não letal que sofreu? Absurda essa hipótese.
Você tem alguma explicação?
Eu não acho que estamos vivendo um momento histórico sem precedentes. Que fique claro. É tudo absurdo sim, mas conspirações e atentados sempre existiram. Essa parte não é novidade. Mas, sim, assusta tomar contato com esses acontecimentos macabros do nosso tempo.
Quando eu gosto do um escritor, filósofo, psicólogo,cientista etc., eu procuro informações sobre a vida dele e o tempo em que ele viveu. Isso porque eu gosto de imaginar como era o contato dessas mentes brilhantes com os acontecimentos macabros de seus tempos. E que belas obras de arte e grandes descobertas científicas nasceram daí!
Não que esses eventos não afetem a vida de todas as pessoas, mas algumas destas trabalham exatamente para extrair saber desses acontecimentos, poetisá-los, ou eternizá-los de alguma forma e esse trabalho é muito importante. É um trabalho principalmente voltado para as futuras gerações. Para que a gente possa fazer alguma coisa com esse passado.
Mas eu ainda não tenho a resposta para a pergunta: o que devemos fazer? O que devemos fazer para melhorar o rumo de nossas vidas e de nosso país? Está aberto o campo para a reflexão. Espero, sinceramente, que esse caminho não seja interditado por este tipo de violência.
Categoria: Política
Adeus ao Museu Nacional.
O museu queimou de verdade. As primeiras noticias que eu vi, eu não acreditei. Pensei: é aquele amigo bobo postando fake news de novo. Mas aí começaram a pipocar as reportagens, apareceram os testemunhos e as notícias no rádio e na TV e, ainda assim, a ficha demorou a cair.
Eu vou abrir meu coração e dizer para você que eu já sofro com os objetos históricos não encontrados ou já há muito tempo perdidos. Explico. Eu me pego pensando, de vez em quando, se não existem objetos valiosos soterrados, por exemplo, debaixo das grandes cidades. De baixo do concreto, do asfalto e dos prédios do Centro da Cidade. Às vezes eu me pergunto: será que antes de construírem alguma coisa, eles reviram o solo e se certificam de que não há nada de valioso enterrado ali?
Lá na Gamboa, vale a pena conhecer, existe o Memorial aos Pretos Novos. Quando era feita a travessia dos negro escravizados pelo Atlântico para o Brasil, muitos sucumbiam às doenças e aos maus tratos. Quando chegavam aqui, seus corpos eram jogados em covas coletivas e a localidade era conhecida como cemitério dos pretos novos. Os historiadores sabiam da existência desse cemitério, ma sua localização era completamente desconhecida até 1996, quando foi feita uma obra na fundação de uma casa localizada na Gamboa. Com as primeiras escavações da obra, foram encontradas ossadas humanas pertencentes aos negro mortos. Eu chorei e fiquei arrepiada da primeira vez que ouvi essa história.
Deve ter muita coisa enterrada por aí que a gente não conhece.
Outra questão que me traz muita reflexão e pesar, é a curiosidade e o pesar por artefatos há muito perdidos. Como é o caso da Biblioteca de Alexandria. Eu já investi algum tempo de vida imaginando o que havia lá.
Então imagina a situação quando eu realmente me dei conta do que havia acontecido com o nosso museu. É realmente difícil de acreditar. Extremamente lamentável.
O conhecimento é o que nos faz andar para frente e o que dá o fôlego da luta de quem não quer repetir as atrocidades do passado. Conhecimento é o poder de construir um mundo melhor. A ausência dele significa atraso, doença, desigualdade, injustiça, terror.
No fundo, no fundo, eu não choro nem pelas peças que estavam lá (espero que tenham registro de tudo), o que é verdadeiramente assustador é o que esse descaso representa e o futuro que ele anuncia. Junte isso com a situação da educação e se pergunte o que dá para esperar do futuro deste país.
Link do Memorial dos Pretos Novos: http://www.museusdorio.com.br/joomla/index.php?option=com_k2&view=item&id=83:memorial-dos-pretos-novos#sobre_o_museu.
Que invisibilidade é essa?
No banheiro do shopping vazio, de noite, perto da hora de fechar, uma mulher cumprimenta a faxineira:
– Opa! Nem tinha visto você aí. Estava escondidinha.
– A gente fica invisível mesmo.
A mulher que cumprimentou já entrou no banheiro, mas a moça lá fora continua falando:
– Eu até gosto de ser invisível.
Eu também gosto de ser invisível para as outras pessoas em diversas ocasiões. Mas por algum motivo aquela cena me partiu o coração.
Não sei se você pode chamar isso de preconceito da minha parte. Porque eu ouvi como algo triste a moça negra da faxina do shopping da Barra dizer que preferia ser invisível. E, para completar, eu fiquei sem saber o que fazer. Se saía do box onde eu estava e ia lá puxar assunto com ela, arrancá-la de seu esconderijo escancarado, ou se ficava calada e ia embora. Qual era o verdadeiro desejo daquela mulher? Ser notada e tratada direito por aquele povo? Ou simplesmente trabalhar em paz sem ter que ficar dando um bom dia, boa tarde, boa noite sorridente para todo mundo o tempo todo?
Eu não cheguei a decidir. Quando eu saí, ela já não estava mais lá. Me pergunto se ela finalmente tinha ido ser visível em sua vizinhança ou se tinha verdadeiramente se mesclado com as paredes.
Trogloditas machistas brasileiros na copa.
Não sou hipócrita.
Quando eu viajei para a Alemanha para fazer um intercâmbio de estudo de língua estrangeira, fiquei hospedada no alojamento do Instituto Goethe com jovens de todos os lugares do mundo: russos, gregos, mexicanos, chineses, árabes e por aí vai.
Todos jovens curiosos, cheios de energia, reunidos em um país estrangeiro, sem supervisão, por conta própria, em alguns casos, pela primeira vez na vida, dominados por um grande desejo de aproveitar a vida e fazer muita sacanagem.
Você acha que não me pediram para sambar? Que não pediram para o rapaz indiano falar sobre sexo e o kama sutra? Que não perguntaram para a menina chinesa como se falava todo tipo de indecência em chinês? Óbvio que todas essas coisas aconteceram.
O que se passou com a menina russa e os trogloditas machistas brasileiros não foi isso. Não eram jovens curiosos aproveitando a vida e a própria sexualidade com uma misteriosa estrangeira. Eram idiotas gravando um vídeo com um tom humilhante de uma menina que parecia não saber muito bem o que estava acontecendo.
Sinceramente, quando ouvi falar sobre o conteúdo do vídeo, fiquei na dúvida se era de fato um caso de machismo ou não. O que me contaram foi: “rapazes brasileiros fizeram a menina russa repetir palavrões em português”. Eu pensei: “bom, quando eu viajei para a Alemanha fiz à beça e não teve nada de mais, pelo contrário, pedi que me ensinassem essas indecências. Foi engraçado”.
Foi apenas quando eu vi o vídeo que eu entendi o caso e o porquê da situação ser absurda.
O vídeo tem, de fato, um tom de exposição e humilhação da garota, além do fato dela parecer não entender a dimensão do que está acontecendo. No vídeo, eles dão a entender que estão fazendo um comentário sobre as partes íntimas daquela mulher especificamente; sugerindo que tinham tido algum tipo de contato sexual com ela, e estão dizendo para o mundo “peguei! Essa eu comi”. Coisa que, independentemente de ser verdade (acredito que não era), não seria motivo de vanglória para os babacas. A mulher não tem ali protagonismo nenhum da sua (suposta) experiência sexual com os caras. Ela é um troféu que, assim que é conquistado, perde seu valor. E, sinceramente, não tendo acontecido o ato sexual, eles não estão nem mesmo lidando igual babacas com algo que efetivamente aconteceu, eles estão simplesmente alardeando uma visão machista que tem o único e exclusivo propósito de rebaixar a mulher. Sim. Esse é o ponto principal. O efeito do machismo é que a mulher vale menos em situações de conotação sexual. O homem, na mesmo posição, tende a ser exaltado, a mulher é humilhada.
Ainda digo mais! Esses caras estão mais preocupados em humilhar a garota e fingirem que pegaram, do que em efetivamente desenrolar com ela e buscar a relação e o prazer sexual. Para eles é mais prazeroso e vale a pena se esforçar por uma oportunidade de aparecer para o mundo tratando-a como objeto do que transar com a menina. Isso é pura misoginia.
E fica a lição: meramente sugerir que a mulher teve algum tipo de contato sexual, na sociedade patriarcal, é diminuí-la. Esse episódio reforça essa visão.
Varrer a casa emagrece?
Ontem eu peguei a vassoura e perguntei ao meu marido:
Você acha que varrer a casa emagrece?
Ele respondeu:
Sei lá. É um movimento. Queima mais calorias do que ficar parado. Mas eu não acho que é significativo. Que emagrece mesmo. Por quê?
Aqui você (se for mulher) deve estar pensando:
Sim. Emagrece. Todo serviço de casa emagrece. Você deixa a casa limpa e ainda economiza na academia.
Eu me lembro de um programa de televisão que assisti há muitos anos atrás, que era exatamente isso; apresentava dicas de como usar as tarefas de casa para emagrecer.
Eu nem questiono se emagrece mesmo ou não. Meu ponto não é esse. Meu ponto é que os homens não sabem disso. O programa de televisão que deu essas dicas falava especificamente para as mulheres e não para os homens. O programa tampouco não estava preocupado com a saúde da mulher. Estava preocupado em contribuir para educá-las a não só fazer o serviço doméstico como também a gostar disso. E talvez importunar menos o marido para ajudar, já que essa mulher também vê todo dia na TV que ela tem que ser magra, já que fazer faxina e cuidar da casa emagrece, ela que aproveite esses benefícios e deixe o marido em paz.
Eu não preciso e eu não quero. Parte III.
As práticas de beleza e a abordagem das capacidades
(…) In most parts of the world there is a shared tendency
not to notice the systematic deprivation of females vis-à-vis males
in one field or another.
Amartya Sen, 2009.
Levando em consideração a abordagem das capacidades quando estamos pensando as práticas ocidentais de beleza impostas às mulheres, duas questões devem ser colocadas: 1- De onde vem o desejo das mulheres de submeterem seus corpos às práticas de beleza?; e 2- O que acontece com as mulheres que escolhem não se submeter a esses padrões? Como elas passam a ser vistas e tratadas pela sociedade?
Já ficou clara, a esta altura, que a abordagem das capacidades leva em consideração a capacidade que as pessoas possuem de viver a vida que elas têm razões para valorizar. “Sen stresses the importance of ‘reason to value’, because he argues that we need to scrutinize motivations to value specific lifestyles, and not simply value a certain life without reflecting upon it” (ROBEYNS, 2002, p. 3). O que devemos questionar, em resposta à primeira questão é? As mulheres têm, de fato, razões para valorizar o engajamento em práticas de beleza? Essas razões são verdadeiramente independentes de influência políticas e culturais?
Certamente o fato de que um número significativo de mulheres, quase metade da população do planeta, decida adotar tais práticas e supostamente tenha razões para valorizá-las. Essa estranheza decorre de
an application of Anne Phillips’ (1999, 2002) more general claim that, for group inequalities, equality of opportunities and equality of outcomes converge, as the default assumption should be that the distribution of preferences between groups such as those based on gender or race are identical. The burden of proof should fall on those who claim that women would, in a systematic way, intrinsically prefer different options than men, if they had the same real opportunities. (…) the group inequality in achieved functionings could be taken to mirror the inequality of capabilities (ROBEYNS, 2002, p. 23, destaque feito pela autora).
Não parece correto que as mulheres, naturalmente, escolheriam recorrer a tais práticas enquanto a maior parte da população masculina mundial permanece imune a elas.
Vamos analisar esta questão das razões para desejar um determinado funcionamento a partir de um exemplo inspirado em Sen (2009)[1].
Vamos imaginar que Maria decidiu ficar em casa no sábado à noite no lugar de ir para a balada. Este é o cenário A. Neste cenário, Maria exerceu a sua liberdade e decidiu o que queria fazer, além de ter tido condições de efetivamente fazer o que havia decidido. Também estava preservado o seu direito de mudar de ideia. Caso ela desejasse sair, ela seria livre para isso.
Agora vamos pensar no cenário B. Maria havia acabado de tomar a mesma decisão de não sair no sábado à noite, quando alguns bandidos invadiram sua casa para se esconder da polícia. Eles disseram para Maria que ela estava proibida de sair de casa enquanto eles estivessem lá sob a pena de sofrer pesadas punições.
No cenário B, Maria acaba fazendo o que ela havia resolvido fazer de qualquer maneira, mas podemos dizer que ela foi realmente livre nesta situação? A resposta é não.
No cenário B, a despeito do resultado final da ação ter sido o mesmo, Maria não era verdadeiramente livre. Ela não poderia ter mudado de ideia. Ela não poderia ter escolhido fazer outra coisa. E ainda, uma severa restrição havia sido adicionada à sua decisão inicial de não sair de casa, de modo que não há mais como afirmar se Maria não sai de casa porque ela manteve a sua decisão inicial de não sair e ela não muda de ideia até os bandidos irem embora ou se ela apenas estava evitando ser severamente punida pela desobediência às condições que lhe foram impostas.
No que diz respeito aos cuidados com o corpo de uma mulher a situação é comparável com a do cenário B. Substitua Maria por uma mulher X e os bandidos pela estrutura patriarcal da sociedade e o machismo dela decorrente que impõe padrões de beleza ao corpo dessa mulher. Esta estrutura opera de tal forma que, no que diz respeito à decisão de se engajar em práticas que reforcem a dominação masculina, não é possível dizer com certeza se as razões que a mulher possui para se engajar nestas práticas seriam ainda levadas em consideração caso a sociedade fosse estruturada fora dos moldes patriarcais.
A crítica das feministas liberais consiste em indagar que, com este tipo de raciocínio, o feminismo radical afirma as mulheres não sabem verdadeiramente, de maneira livre de interferências, o que querem do próprio corpo. Esta crítica ignora o fato de que há uma força estrutural que demanda certas coisas do corpo feminino que causa sofrimento, insatisfação constante e gera punições por desobediência. O fato é que, para que a mulher possa se ver livre destas amarras, é necessário que se reconheça a opressão que ela vivencia. É apenas a partir do reconhecimento da opressão que a mulher pode efetivamente combater o domínio masculino e se ver verdadeiramente livre para viver a vida que ela valoriza.
Essas forças funcionam em larga escala sob a superfície dos desejos e dos atos. Temos que retirar uma camada, olhar por debaixo dos nossos comportamentos e pensamentos para perceber sua influência.
É o que fica claro no cenário B. Essa força do machismo só fica evidente quando há desvio e sofrimento. Se você olha apenas para o fato de que Maria ficou em casa no sábado à noite, você não é capaz de ver o bandido atrás da porta apontando o revólver para ela.
Este raciocínio fica ainda mais claro quando recorreremos a uma distinção feita por Sen (2009) entre o que ele denomina resultado culminante e resultado compreensivo. O resultado culminante é meramente o resultado final de uma ação. No caso do cenário B, o resultado culminante é exatamente o mesmo no do cenário A: Maria acaba ficando em casa. Já o resultado compreensivo leva em consideração também “the way the person reaches the culmination situation (for example, whether through his own choice or through the dictates of others)” (SEN, 2009, p. 230). No cenário B Maria fica em casa como havia decidido antes da chagada dos bandidos, no entanto fica claro que já não podemos mais afirmar que, neste cenário, Maria é efetivamente livre, pois ela já não pode mais escolher qualquer outra coisa que não o que os bandidos a obrigam a fazer.
É no cenário hipotético C, no qual Maria resolve desobedecer aos bandidos e sair de casa a despeito de suas ordens, que nós observamos as consequências da desobediência de Maria e passamos a não ter mais dúvidas de que ela não era efetivamente livre para escolher. No cenário C, no qual Maria resolve fugir, desrespeitando o comando que lhe foi dado, ela é baleada. É apenas neste momento, no momento da desobediência, que podemos perceber, sem sombra de dúvidas, que Maria estava sob uma forte restrição da qual ela não podia simplesmente escolher se livrar.
Em termos de abandono de práticas de beleza e de punições sociais podemos citar: O fato de que os patrões ainda exigem de suas empregadas negras, por exemplo, que alisem seus cabelos[2] sob a pena de não cumprirem os requisitas adequados para ocupar uma determinada vaga de trabalho, podemos citar o fato de que fotos de mulheres que não depilam as axilas viralizam nas redes sociais com comentários maldosos[3].
Nesse ponto, defendemos que liberdade não é meramente ter a sorte de querer o mesmo que o seu agressor te obriga a querer para não sofrer as represálias.
Acompanhe-nos ainda no cenário D, no qual Maira está em casa obedecendo ao comando dos seus sequestradores, mas estes, em algum momento, dominados pelo medo, imaginam ter visto em uma dobra do vestido de Maria um aparelho celular e supõem que ela tentou ligar para a polícia. Tomados pela raiva do que imaginam ter acontecido, eles acabam atirando em Maria e fugindo.
No cenário D, ainda que Maria não estivesse em conflito com a obrigação específica de ter de ficar em casa no sábado à noite e a despeito do fato de ter obedecido ao comando dos sequestradores, vemos que a suposta liberdade da vítima era falsa, pois ela acabou sendo baleada de qualquer modo. No cenário D, percebemos que, na verdade, Maria estava à mercê da vontade dos bandidos ainda que seus interesses não estivessem momentaneamente em conflito. Mesmo sem o conflito, a dominação existe, ela pode ser apenas mais difícil de ser percebida, mas não permanece oculta a uma avaliação atenta e pode ter consequências devastadoras.
Sen (2009) afirma que nós valorizamos a liberdade por, pelo menos, duas razões diferentes:
First, more freedom gives us more opportunity to pursue our objectives – those things that we value. It helps, for example, in our ability to decide to live as we would like and to promote the ends that we may want to advance. This aspect of freedom is concerned with our ability to achieve what we value, no matter what the process is through which that achievement comes about. Second, we may attach importance to the process of choice itself. We may, for example, want to make sure that we are not being forced into some state because of constraints imposed by others (SEN, 2009, p. 228).
Para Maria, nos cenários citados, à exceção do cenário A, ambos os aspectos estão prejudicados. O aspecto da oportunidade está prejudicado porque, a partir do momento em que os bandidos entram na casa, Maria já não pode mais decidir por nada que vá de encontro ao que os bandidos a obrigarão a fazer. Por outro lado, o aspecto da escolha também está prejudicado, pois não temos como ter certeza de que o fato de Maria ficar em casa é devido à presença dos bandidos em sua moradia ou a um desejo legítimo seu.
Vimos inclusive o complexo mecanismo psicológico da síndrome social de Estocolmo, que opera como um mecanismo de defesa contra esta forma de opressão e que ajuda a mascarar ainda mais o real desejo feminino. Os funcionamentos que seriam perseguidos caso não houvesse nenhum tipo de mecanismo social de educação dos desejos da mulher desde a sua primeira infância, que é reforçado por sofisticadas formas de punição social por desobediência.
[1] Conferir páginas 229 e 230.
[2] Conferir reportagem: Estagiária negra é forçada a alisar cabelo para preservar ‘boa aparência’. Disponível em: < https://www.pragmatismopolitico.com.br/2011/12/estagiaria-negra-e-forcada-alisar.html>. Acessado em: 31/12/2017.
[3] Conferir reportagem: Jovem insultada por não depilar as axilas responde: ‘consequências de sair das normas’. Disponível em: < https://extra.globo.com/mulher/jovem-insultada-por-nao-depilar-as-axilas-responde-consequencias-de-sair-das-normas-20082094.html>. Acessado em: 31/12/2017.
Eu não preciso e eu não quero.
Em homenagem a uma propaganda que assisti hoje na televisão, que resolveu se pronunciar a respeito do desejo que a população feminina tem de usar maquiagem, resolvi publicar em três partes um trabalho que escrevi para uma disciplina do doutorado no final do ano passado. Simplesmente porque essa farsa de “reconexão” com a própria beleza através do entupimento da pele com maquiagem é apenas uma maneira de refinar o velho mandamento da beleza e submissão femininas. Se vocês não repararam, continuam sem ter voz nem espaço na mídia as mulheres que realmente não usam maquiagem.
O título do trabalho é:
A abordagem das capacidades e as práticas de beleza feminina.
O que é a abordagem das capacidades de Sen?
A abordagem das capacidades de Sen (2009) é um quadro teórico – framework – que nos proporciona um outro olhar sobre a forma de avaliar a justiça e a injustiça social, bem como as vantagens e desvantagens pessoais dos indivíduos. A abordagem das capacidades foca nas capacidades que as pessoas possuem de realizar a vida que elas têm razões para valorizar.
Qualquer teoria da justiça vai, necessariamente, ter um foco informacional, ou seja, certas informações-chave ou aspectos da sociedade ou das vidas dos indivíduos em questão que servirão de base para que possamos julgar se tal sociedade é justa ou injusta e se os indivíduos estão em vantagem ou desvantagem uns em relação aos outros. Nesse sentido, as diferentes teorias a respeito da justiça social nos apresentam diferentes aspectos que deverão ser levados em consideração neste julgamento.
Poderíamos citar como exemplo as abordagens utilitaristas e as abordagens baseadas em recursos. O utilitarismo se concentra na quantidade de felicidade ou prazer alcançado por uma pessoa para avaliar suas vantagens ou desvantagens em relação às outras pessoas da comunidade. Está em posição de vantagem aquela pessoa que obtém mais prazer quando comparada com as demais; aquelas pessoas que obtêm menos prazer, estão em posição de desvantagem. As abordagens baseadas em recursos, por outro lado, vão se concentrar nos recursos que as pessoas possuem. Recursos frequentemente levados em consideração são renda e riqueza. Quanto mais rico é um país, maiores as suas vantagens em relação aos outros países. É importante deixar claro que estas duas abordagens podem ser utilizadas para avaliar tanto a condição dos indivíduos, como também de comunidades e países.
Na abordagem das capacidades, as vantagens ou desvantagens pessoais são julgadas a partir da capacidade das pessoas de viver a vida que ela tem razões para valorizar. As vantagens de uma pessoa na abordagem das capacidades são maiores do que as de outra se a primeira possui mais oportunidades reais de alcançar as coisas que ela tem razões para valorizar. As capacidades são as possibilidades reais que uma pessoa possui de ser livre para ser ou para fazer aquilo que ela tem razões para desejar ser ou fazer. Este aspecto é relevante para a discussão que pretendemos desenvolver no presente trabalho.
Em inglês, Sen (2009) se refere aos beings and doings que uma pessoa possui oportunidades reais de alcançar. Os beings and doings são chamados por Sen (2009) de funcionamentos.
The difference between a functioning and a capability is like the one between an achievement and the freedom to achieve something, and between an outcome and an opportunity. All capabilities together correspond to the overall freedom to lead the life that a person has reason to value. (ROBEYNS, 2002, p. 3).
Ao falarmos em funcionamentos nos referimos aos resultados que uma pessoa é capaz de alcançar por meio de suas capacidades, portanto, enquanto as abordagens utilitaristas e as abordagens baseadas em recursos focam nos meios, a abordagem das capacidades foca nos fins. O foco nos fins é importante, pois os meios de uma boa vida não são necessariamente, eles mesmos, os fatores que compõem uma boa vida. Sen (2009) demonstra esse fato importante quando nos chama atenção, por exemplo, para o caso hipotético de uma pessoa que possui muito dinheiro, mas que também possui uma grave deficiência física. Essa pessoa certamente terá dificuldade em transformar os recursos que possui na vida que ela tem razões para valorizar. A sua deficiência física pode torná-la incapaz de experimentar uma série de experiências que ela valoriza, como, por exemplo, dançar ou jogar bola. Por mais rica que essa pessoa seja, ela não vai conseguir transformar seus recursos financeiros nos funcionamentos que ela deseja alcançar (ou, pelo menos, encontrará muitos obstáculos para tanto).
Sen argues, we should focus on the real freedoms that people have to lead a valuable life, i.e. on their capabilities to undertake activities, such as reading, working or being politically active, or to enjoy positive states of being, such as being healthy or literate. This line of Sen’s work, known as the capability approach, postulates that when making normative evaluations, the focus should be on what people are able to be and to do, and not on what they can consume or their income. The later are only the means of well-being, whereas evaluations and judgments should focus on those things that mater intrinsically, i.e. a person’s capabilities (ROBEYNS, 2002, p. 2).
Sen (2009) chama de “variações nas oportunidades de conversão” (p. 261), os aspectos que podem influenciar a capacidade de uma pessoa de transformar seus recursos em uma boa vida. Esses fatores podem ser pessoais (deficiências físicas ou mentais etc.), sociais (tradição cultural, normas sociais, regras legais, infraestrutura social etc.) ou ambientais (clima, disponibilidade de recursos naturais etc.).
Conforme afirmamos no início deste tópico, a abordagem das capacidades é, na verdade, uma ferramenta de avaliação. Contudo, diferentemente das abordagens utilitaristas e das abordagens baseadas em recursos, Sen (2009) não nos fornece nenhum tipo de informação específica que devemos quantificar e medir na tentativa de determinar se uma sociedade é justa ou não. Ou seja, a abordagem das capacidades não propõe nenhum conjunto de capacidades determinadas que devem ser analisadas ou mensuradas que serviriam de base para tal julgamento. O que ele propõe é um método que nos permite realizar comparações entre as diferentes capacidades e funcionamentos. Não poderia resultar daí uma forma de medida homogênea justamente pelo fato de que funcionamentos e capacidades englobam aspectos bastante variados, que podem ser comparados, mas não redutíveis uns aos outros.
Sen (2009) admite que isso pode causar um pouco de receio naqueles que estão acostumados a medir coisas brutas em números bem específicos – com a renda de uma pessoa ou o PIB de um país. De fato, Sen (2009) afirma que as capacidades não são mensuráveis da mesma maneira o que não quer dizer, contudo, que elas são mais fáceis ou mais difíceis de serem medidas.
Sen (2009) nos dá um exemplo: imagine uma pessoa que deve escolher entre realizar um determinado procedimento cirúrgico ou uma viagem a prazer. Dependendo da condição de saúde desta pessoa, ela não terá dificuldades para decidir[1].
Dizer que a abordagem das capacidades gera uma comparação que não é mensurável, não significa dizer que a decisão se torna mais difícil, quer dizer apenas que não se trata mais de uma decisão trivial como a de avaliar qual é o maior número em uma escala. Portanto, fica claro que a abordagem das capacidades trata de julgamentos comparativos que não são, de modo algum, triviais, mas não por isso são particularmente difíceis de serem realizados.
[1] Conferir página 241.
Referências bibliográficas
DWORKIN, Andrea. Woman Hating. Nova Iorque: Plume, 1974.
JEFFREYS, Sheila. Beauty and Misogyny. Harmful cultural practices in the West. Londres e Nova Iorque: Editora Routledge, 2005.
OKIN, Susan, M. Gênero, o Público e o Privado. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 16(2): 440, maio-agosto (2008).
ROBEYNS, Ingrid. Sen’s Capability Approach and Gender Inequality. (2002) Disponível em: <file:///C:/Users/melen/Desktop/trabalho%20de%20conclusão%20da%20MARINA%20segundo%20semestre/desigualdade%20de%20genero.pdf>. Acessado em: 31/12/2017.
SEM, Amartya. The Idea of Justice. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.
Relato de uma Trans fora da marginalidade
Hoje eu tenho o prazer de apresentar mais um texto maravilhoso, forte e sensível ao mesmo tempo, da querida amiga Alexia. Que a luta dela possa ajudar e inspirar a todos!!!
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Em meu entendimento, a transexualidade pode ser conceituada como a condição na qual a pessoa não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer por conta de seu sexo biológico, o qual determina em nossa sociedade papeis de fêmea e macho e, por isso, sente necessidade de fazer a transição para o gênero ao qual ela se identifica.
Apesar de me ver como uma garota desde que me entendo por gente – tenho memórias desde os 3 anos de idade, meu processo de transição foi bem tardio, pois – além de ter que vencer a resistência de família e sociedade, fugi dessa verdade a vida inteira – até mesmo por uma série de preconceitos que me foram plantados e enraizados ao longo da vida.
Antes de iniciar a transição, pesquisei e estudei a temática por 2 anos aproximadamente (tenho que dar o exemplo, afinal sou profissional da informação), onde aprendi que gênero e sexualidade são coisas distintas (gênero é o que somos e sexualidade por quem sentimos atração), tomei conhecimento de termos como cisgênero (quem se identifica com o gênero atribuído ao nascer) e transgênero (quem não se identifica com o gênero atribuído ao nascer) e outros. Esse período foi essencial para que eu me despisse dos preconceitos internos, vencesse o acovardamento perante família e sociedade que eu tinha forte e me libertasse.
Quando consegui entender o que eu sou – uma garota sim mas, por ter nascido em corpo classificado como masculino, sou considerada Transgênera, dei início a terapia hormonal, com acompanhamento de endocrinologista e psicóloga. Mas acredito que, mesmo percebendo transfobia, que antes era velada e agora anda um tanto mais evidente no local de trabalho, iniciar a transição tardiamente (março de 2018 completei 2 anos e meio) me possibilitou ser a profissional bem sucedida que sou hoje.
De qualquer forma, vejo-me como privilegiada por ainda não ter sofrido violências por parte de pessoas desconhecidas (mesmo assim, ando sempre em estado de alerta em espaços públicos, principalmente quando estou sozinha); a transfobia que recebo costuma partir justamente de pessoas de meu círculo familiar, social e profissional.
O Conselho Regional de Biblioteconomia, região 7 – CRB-7 (Rio de Janeiro) emitiu uma nota recentemente informando que foi o primeiro Conselho Regional de Biblioteconomia do Brasil a possuir uma bibliotecária transexual registrada a fazer uso de nome social, no caso eu. E agora estou, junto com o CRB-7, pioneira novamente na profissão, por ser também a primeira bibliotecária transexual com retificação de nome e sexo na documentação civil e, por consequência, no registro CRB.
Muito da falta de conhecimento das pessoas, no geral, é atrelada ao preconceito internalizado da sociedade pois, mesmo o assunto sendo veiculado constantemente em vários canais e mídias, há uma resistência forte de uma grande parcela da população em querer compreender a questão, pois falta de informação e de acesso não é. É algo como “não sei, não quero saber, o que importa é o que eu acho” (sempre fundamentado em falsa moral). E – na boa, não vou pautar minha vida, minha existência, de acordo com crenças e visão de mundo de gente que é ignorante porque assim o quer permanecer.
Pesquisa e ações voltadas aos estudos de gênero com foco na diversidade, sexualidade e identidades ainda são um tanto tímidas e o tema ainda é pouco discutido de forma ampla e séria pela sociedade brasileira, sendo mais desenvolvidas em países onde a pesquisa e tecnologia são levadas a sério por parte do Governo, tanto que existe um protocolo elaborado pela Universidade da Califórnia e outro na Europa com orientações sobre terapia hormonal e outros estudos sobre a parte psicológica e social da transexualidade.
A diversidade existe, as pessoas querendo ou não; gostando ou não e deve ser respeitada, pois o mundo é diverso e não há nada que fundamente nem justifique o ódio e a violência cometida contra quem é diferente.
Alexia de Oliveira é Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Pós-graduada em Gestão de Marketing pelo SENAC-SP e Bibliotecária-chefe de um Centro Tecnológico no estado do Rio de Janeiro.
Era uma vez… Só que não.
Era uma vez um rei muito rico, belo e poderoso. Seu reinado foi muito logo e próspero, mas seus súditos e os nobres da corte se preocupavam, pois o rei ainda não havia se casado e não tinha herdeiros.
O rei finalmente resolveu se casar com uma jovem princesa de um reinado além-mar.
No entanto, uma feiticeira maligna amaldiçoou a união e, toda vez que a princesa tentava embarcar para encontrar seu amor, uma tempestade terrível impedia sua viajem. Ele resolveu então viajar com seus homens mais valentes para resgatá-la.
Após duras penas, o rei e rainha sentaram-se em seus tronos.
Mas antes que pudessem viver felizes para sempre, o rei foi em busca da bruxa que havia ameaçado a vida de sua amada, para que jamais precisassem se preocupar novamente.
O rei, então, descobriu que cem bruxas malignas se reunião em suas terras para realizar rituais satânicos matando criancinhas e bebendo seu sangue, realizando estes rituais malignos para atrapalhar a felicidade de homens e mulheres tementes a Deus.
Com a ajuda dos anjos o corajoso rei matou noventa e nove bruxas de uma só vez. A centésima ele levou para o seu castelo para servir de exemplo. Lá, ele envios ferros em brasa em sua língua e depois queixou-a viva. E todos os bons cristãos viveram felizes para sempre.
Só que não.
Esse seria mais um conto de fadas bizarro se não fosse uma história real. A história do Rei Jaime IV da Escócia e I da Inglaterra.
Fiquei sabendo dessa história a partir do livro “O Lado Sombrio dos Contos de Fadas”, de Karin Hueck.
O livro é extremamente interessante, trazendo as versões originais de diversos contos e realizando uma análise de seus conteúdos a partir dos significados simbólicos e de possíveis relações com eventos históricos reais.
O fato real narrado no início deste texto, por exemplo, ilustrativa o modo como os contos de fadas passaram a ser povoados por tantas mulheres malvadas trabalhando sob a influência do demônio. As bruxas começam a se tornar uma ameaça real e constante na vida das pessoas a partir do século XVI, período do reinado de Jaiminho justiceiro.
Assustador.
Mas vale muito a pena a leitura.
Vamos falar sobre tristeza e solidão na pós-graduação.
Hoje eu pude conversar com os alunos da minha pós-graduação sobre tristeza, solidão e depressão nesse meio universitário.
Levei o assunto a uma reunião do corpo discente como proposta de pauta para a próxima reunião. Eu falei meio hesitante, achando que o assunto não ia ser bem recebido, que as pessoas iam se fechar, não iriam querer tocar nessa ferida ou acreditariam que esse não era um assunto assim tão importante.
Qual não foi a minha surpresa quando as pessoas não só se mostraram abertas para discutir o assunto, mas também super dispostas e interessadas em realizar algum tipo de ação para atacar esse problema. Na verdade, muitas pessoas admitiram passar por intenso sofrimento com o trabalho acadêmico. Não estamos sozinhos e todos os estudantes precisam saber disso!
Então, a boa notícia é que eu e os alunos interessados em participar do projeto (que podem ser de qualquer pós-graduação e universidade), iremos começar a trabalhar para promover um espaço aberto e seguro para que os estudantes falem sobre suas angústias! Se você quer participar ou conhece alguém que poderia estar interessado em participar da organização e planejamento desse projeto, peça para entrar em contato comigo!