As vítimas da minha dissertação. Parte II: saúde mental.

Na defesa eu vou arrumada, vou receber “críticas construtivas” que vão ser muita bem recebidas e consideradas. Virão de homens sábios e de barba, provavelmente. E o que eu tenho a ver com esses senhores, meu deus!? Porra nenhuma. Vê porque preciso pedi anteriormente desculpas pela grosseria? Um dos meus grandes problemas emocionais é depender da aprovação dos outros. Todo meu esforço de me desvencilhar disso vai por água abaixo toda vez que escrevo. E está piorando. Porque cada vez luto mais para me safar. Ou luto menos, sei lá. A angústia já não me abandona e estou chata. Muito chata. Completamente chata. Cativa, cheia de medo, encurralada e chata. Quando eu comecei a ler, quando era nova ainda, achei que eu ia crescer e ser uma pessoa triste. E a minha tristeza ia ser magnífica. Como a do Edgar Allan Poe.  Uma melancolia profunda, sábia, produtiva e admirável. Mas eu cresci, fiquei deprimida e impotente. Uma depressão clínica, psiquiátrica, sem cor e sem brilho. Daquelas para se calar com remédio, pois ninguém mais a minha volta atura. Esse estado mental, não o atingi sozinha. A dissertação me deu as mãos e me levou. Se eu tivesse enlouquecido ainda vá lá. Loucura é um sucesso literário. Mas eu fiquei com o clichê da mulher morta. Um corpo inerte e acessório na história de outra pessoa, ou, no meu caso, eu sou o corpo inerte que dá vida à dissertação.

As vítimas da minha dissertação. Parte I: pulmão e estômago.

Meu pulmão e meu estômago bem sabem como é difícil escrever. Venho me debatendo com minha dissertação há dois anos e meio agora. E ela não acaba. Sempre tem mais um problema, mais um livro para ler, mais uma página para escrever e mais um inferno vivido a cada momento. Mais um cigarro para fumar e mais uma cerveja para beber. Na defesa, ao ser requisitada a falar sobre a bendita, eu deveria dizer: Foi muito bem fumada, praguejada e depois, me embriaguei. Aplausos, por favor. Assim funciona a academia. Eu não consigo acreditar que isso seja um segredo. Ninguém diz, mas todo mundo sabe. Comi mais empanado de frango congelado e macarrão instantâneo do que admito para mim mesma. Eu penso: mas teve aquele dia que eu comi legumes… Já fumei a ponto de acordar com ressaca de cigarro. E ouso dizer que tudo isso ainda me dá um certo orgulho, além do asco e da raiva que aparecem em primeira instância. Desculpe leitor, mas eu estou nessa fase, tentando parar de temer você. Até eu virar o jogo serei grossa mesmo. Mas falaremos disso em outro momento. Só me desculpo adiantadamente porque ainda não completei o processo de desprendimento do que os outros vão pensar de mim. Ainda agora, por exemplo, antes de começar a escrever, fumei um cigarro. E a cerveja já já vou botar no freezer. Estou angustiada. Escrevo este desabafo, mas deveria estar escrevendo a dissertação; faço comida, mas deveria estar escrevendo a dissertação; transo, mas deveria estar escrevendo a dissertação; durmo, mas deveria estar escrevendo a dissertação. Deveria diminuir o número de cigarros e a bebida, mas tenho que escrever a merda da dissertação. E fica ecoando a pergunta: e ajuda isso? NÃO. Nada ajuda. Não há nada que se possa fazer. É bom saber disso. Nada adianta. O prejuízo é eterno e a dissertação vai pegar poeira na biblioteca da universidade. E se virar livro famoso também pouco me importa. Nada na vida vale esse tormento todo. Se fosse um namoro eu terminava. Mas é academia. Nobre e digna. Uma ova!

Vanessa não se cala e não quer mais saber de porra nenhuma.

Vanessa não vai. Não vai ser o que quer ser. Não vai fazer nada do que queria fazer. Senta-se na frente do computador, mas queria uma máquina de escrever para sentir a porrada das letras no papel. Em vez disso dá porradas nas teclas do computador. E elas quebram-se cada vez mais. Foda-se. O que queria mesmo era que a folha pudesse dar um soco na cara do leitor. Não é isso que se espera da literatura? Da próxima vez que eu for doar sangue no Hemorio, vou roubar a minha bolsa de sangue e mandar com uma cópia especial da primeira edição para minha mãe. Ainda assim não vai ser suficiente. Vontade de parar de escrever não falta. E ela mente. Não tem vontade nenhuma de parar de escrever. Se morde por dentro apenas, porque ninguém lê. E essa história de escrever para si mesmo é merda. Eu escrevo para ficar rica e ser idolatrada. Apesar de ser arrogante e chata. Só estou com raiva. Uma puta de uma raiva, que, quando passa, deixa um vazio no peito e uma enorme saudade. Agora eu quero ver. Esse conto não tem resolução, não narra porra nenhuma. Quero mesmo é que todo mundo se foda. Vão todos tomar no cú e passar bem.

Esse texto é pelo artista que o meu amigo é e pelo artista que o meu amigo não é.

Essa semana me contaram que um certo escritor, admirador de Cézanne, afirmou que o quadro do pintor que mais o interessava era um quadro que Cézanne nunca havia pintado. Diz-se que Cézanne, durante um período de sua vida, ia todo dia até uma caverna para ver a luz do sol poente refletida na parede. Parecia que um quadro estava para nascer, mas foi o caso de um aborto. A ideia foi concebida, mas o quadro nunca foi pintado. E era esse o quadro que mais interessava ao escritor sobre o qual me contaram.

Hoje saí para tomar cerveja com um amigo cuja arte está no estado do quadro que Cézanne nunca pintou. Existem esboços, ideias, sonhos e desejos. Mas falta tempo, faltou condição de seguir um caminho específico no passado. Vai faltar dinheiro para o café da manhã, o almoço e o jantar no futuro.

Sua produção artística não é nula. Assim como Cézanne, ele já pintou outros quadros, num sentido figurado claro, porque o que ele faz mesmo é escrever. Mas a analogia se sustenta.

Percebi hoje, contudo, ouvindo a história do seu desejo de ser artista, que eu não tenho interesse apenas pelas coisas que ele produz, aprecio também das coisas que ele não produz e que, provavelmente, nunca vai produzir. Das telas que ele pintou do seu passado que só quem está ali pertinho ouvindo pôde ver, do sentimento que essas imagens produziram em mim.