CONFISSÃO

Toda sexta-feira de madrugada, depois de uma noite de bebedeira aos pés dos Arcos da Lapa, eu tinha pesadelos com a Catedral de São Sebastião do Rio de Janeiro. Ela descia sobre mim como um imenso disco voador. Eu sonhei com isso tantas vezes que acabei ficando curiosa, achei que era um sinal, e resolvi visitar o monumento.

Tendo sido criada em família católica devota e atuante eu sabia como aproveitar uma visita dessas. Resolvi ter a experiência completa. Iria no domingo pela manhã, doaria dinheiro na hora do ofertório, apertaria a mão das pessoas ao meu redor na hora da Paz de Cristo, comungaria etc. Conheço bem a missa, os fiéis, o funcionamento da igreja, apesar de não ser lá tão católica. Batismo e primeira comunhão, sim, mas fé verdadeira, não.

Fiquei um pouco receosa no dia programado para a visita, pois os pesadelos eram sempre apavorantes. Relutei em sair de casa e acabei chegando atrasada à igreja. A missa já havia começado.

A Catedral não é bonita por dentro. Aquela estrutura não combina com a de uma igreja. Disco voador sim, com certeza; mas casa de Deus nem tanto. Eu sempre imagino igrejas em geral e, em especial, igrejas turísticas como grandes catedrais góticas de estilo europeu. Para quem espera esse tipo de coisa, a Catedral do Rio de Janeiro é uma grande decepção. Pouco patriótico, eu sei, mas, ainda assim, o sentimento foi inevitável. A decepção me causou uma secura na boca – perda de tempo ir ali – e uma careta de desagrado.

Para ser justa, devo dizer que a catedral tem seus méritos. Para começar, o óbvio, ela tem o formato de um cone, justamente a qualidade que me atraiu desde o início. Além disso, em seu interior existem quatro grandes vitrais que se estendem quase desde o chão até o teto. A Catedral é muita alta. E o teto, no local onde os vitrais se encontram formando o desenho de uma cruz, é vazado, de modo que a claridade do céu penetra por ali. A luz do dia mais ensolarado não seria suficiente para iluminar a igreja. Nenhuma luz é suficiente para iluminá-la. A catedral está sempre parcialmente na penumbra. Os vitrais são magníficos, gigantescos, multicoloridos, cheios de figuras feitas para inspirar admiração e os mais altos sentimentos. Mas se deslizarmos os olhos um pouquinho para o lado ficamos cara a cara com uma parede de concreto bruto, frio, repetitivo, um acinzentado que não tem mais fim. A junção do humano, imperfeito, ranhoso com o divino cristalino e colorido.

Já havia pessoas estranhando o tempo que fiquei parada na entrada da igreja tentando entender seu interior.

Os bancos eram arrumados de modo a formar um semicírculo ao redor do altar, postados um ao lado do outro e em fileiras até o fundo. A missa estava cheia, mas ainda havia alguns bancos vazios. Sentei-me na última fileira, perto de uma das saídas laterais. Ouvi o padre proferir algumas palavras antes que todos os fiéis começassem a cantar. O canto de tanta gente junto dava arrepios. Se alguém me perguntasse como é ter fé, eu diria que era sentir a reverberação de tantas vozes na pele. Eu sentia uma mistura de assombro com euforia.

Me balançando de um lado para o outro junto com a canção esbarrei em algo e reparei com sobressalto que havia uma pessoa encolhida em cima do banco logo ao meu lado. Senti seu cheiro. Eu não havia reparado antes. Embaçado, encardido e esfarrapado, estava lá adormecido, um mendigo. Para me refazer do susto virei para o altar e voltei a cantar.

Fui interrompida novamente. Novo susto. Um barulho surdo. Virei subitamente a cabeça para o lado. O mendigo havia sido puxado para fora do banco com violência. Três homens ergueram o corpo magro que resistia. Eu não entendia o que estava acontecendo. Meu corpo começou a latejar e todos os sons a minha volta se tornaram ensurdecedores.

 

Um coração para amar, pra

Perdoar e sentir

 

            Soa a voz dos homens pela primeira vez.

– Vamos, cara. Você tem que sair.

 

Um coração pra sonhar, inquieto e

            sempre a bater

 

            – Vamos, cara!

E cochicharam entre si.

 

Ansioso por entender as coisas

            que tu disseste

 

            Começaram a arrastar o homem.

Minha boca se mexia, mas eu não cantava.

 

            Eis o que eu venho te dar – continuava a música –

Eis o que eu ponho no altar – e que não vale de nada, pensei – Toma, Senhor que ele é teu

            Meu coração não é meu

 

O mandigo fincou os pés no chão e ainda resistiu.

 

Quero que o meu coração seja tão

            cheio de paz

 

Ergueram-no e ele agora não reagiu.

 

Que não se sinta capaz de sentir

ódio ou rancor

 

            Olhei enquanto ele era carregado pelos fundos da igreja até a saída, acima dela, um dos imensos vitrais coloridos, abaixo, o frio e desumano concreto.

Os três homens voltaram cantando.

 

Quero que a minha oração possa me

            amadurecer

 

O horror me fechou os lábios.

 

Leve-me a compreender as

            consequência do amor

 

Nos meus pesadelos a nave abduzia, mas esta nave espacial, enviada por Deus expulsa.

Levantei-me num salto e cruzei com os três no meu caminho em direção à saída para onde levaram o mendigo. Ele estava de pé logo ao lado da porta, braços e pernas abertos, a cabeça pendia para um lado, seminu, indecentes costelas aparecendo.

Além do mendigo havia crianças correndo, alguns adultos falando ao celular, vendedores ambulantes. Senti uma raiva incandescente emanando da minha indignação. Meus braços e pernas começaram a tremer. Não só haviam expulsado um mendigo que para estar morto só faltava esfriar de tão quieto que estava, como eu também não fui capaz de mover um dedo para ajudá-lo. Queria ir lá pedir ao mendigo que entrasse comigo de novo na igreja e se deitasse novamente no banco onde estava.

Me aproximei dele com passos firmes. Ele não me olhou. Expliquei o meu plano com animação e o grande significado que aquela atitude teria. Seria um símbolo de resistência e de luta contra a opressão. Falei que poderíamos gritar se aqueles homens viessem novamente e que eu não o abandonaria. Acrescentei que se isso acontecesse, o padre provavelmente seria obrigado a interromper a missa e que nós apareceríamos até nos jornais da televisão. Ele não emitiu nenhum som. Nem se moveu. Minha cabeça começou a rodar. Enquanto eu pensava uma série de absurdos para arrancar uma reação potente daquele homem, uma mulher chegou. Ela aproximou um terço da testa dele como quem dá a bênção. Em uma de suas mãos abertas ela colocou uma moeda e na outra o resto de um pacote de biscoito. Como estava ele ficou. Catatônico.

Ele parado, eu imobilizada.

A missa acabou. Os fiéis começaram a sair. Eu me distraí com o movimento por um instante e o mendigo desapareceu. Meu Deus! Esqueci a bolsa dentro da igreja! Voltei correndo até o lugar onde eu estava sentada. Nada. Comecei a andar em círculos procurando e nada da bolsa. Chorei de raiva. Muita raiva.

Desisti de procurar pela bolsa e comecei a caminhar em direção à saída. Passei perto da caixinha de oferendas. Reparei que a ponta de uma nota de dez reais estava para o lado de fora. Me aproximei.

A indignação pulsava em ondas dentro de mim agora misturada com adrenalina. Puxei a nota e coloquei no bolso. Fugi correndo pelas escadas que davam para a rua. Parei num bar ali perto, comprei uma cerveja e um maço de cigarros. Sentei na calçada, fumei, bebi, olhei a cidade e as pessoas que passavam.

 

 

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