Do Renascimento ao Século XVII d.C. Parte I

Capítulo V

 

(Como este capítulo ficou grande, vou dividi-lo em duas partes. Na verdade, ele não ficou grande. Este foi o único capítulo que saiu com o tamanho padrão de uma monografia. As monografias geralmente são compostas por três capítulos, cada um com dez páginas. Eu acabei fazendo vários microcapítulos, o quinto foi o maior e ficou com onze páginas). Por volta do século XV d.C., alguns eventos se destacam e assumem considerável relevância no que diz respeito ao presente tema. Tanto na defesa do direito à morte voluntária, pelo questionamento da moral religiosa vigente, operada pelos humanistas, quanto na oposição à mesma, operada agora tanto pelo cristianismo quanto pelas religiões filhas da Reforma. (Período difícil de estudar assim, com uma varredura teórica sobre um tema específico, pois são muitas vozes diferentes em conflito. O que fizemos foi pegar um autor de referência e correr atrás dos autores que ele menciona).

Os primeiros humanistas redescobrem toda a riqueza moral do pensamento pagão e o retomam, o que impulsiona uma busca pela grandeza que pode estar por trás do ato de matar a si mesmo. Essa retomada se torna mais marcante e relevante, sobretudo, no âmbito da arte, da literatura e das peças teatrais (Minois, 1998). As duas últimas, no que diz respeito ao questionamento da visão comum sobre o suicídio, se tornam especialmente importantes. A literatura, graças a uma série de avanços tecnológicos do período, como, por exemplo, o surgimento da imprensa, passa a ter um alcance muito maior, difundindo mais rápida e facilmente as ideias da elite intelectual. Já as peças teatrais as difundiam inclusive no meio das grandes massas.

Por outro lado, as religiões emergentes da Reforma – luteranos, calvinistas e, mais tarde, anglicanos – apesar de trazerem consigo intensos questionamentos da Igreja católica, possuem uma visão sobre o suicídio que não se mostrará tão diferente e, sem dúvida, não será menos rigorosamente depreciativa. Para aqueles o suicídio seria um ato cometido pelo próprio demônio, sendo, deste modo, o suicida um possuído que passaria a ser exorcizado caso sobrevivesse a uma tentativa de suicídio. A redução do número de casos de suicídio no seio da própria comunidade se torna extremamente importante para cada uma dessas religiões na medida em que a estatística do suicídio traduz um índice de “satanização” da mesma. (A religião parece começar a adotar aqui essa postura mais paternalista, pensar no fiel como um reflexo do que prega a religião e do que prega a própria igreja. Antes isso não importava tanto. Esse negócio do exemplo do “bom cristão” não valia para o povão”).

Dentre as mudanças operadas pelos questionamentos dos protestantes, no entanto, podem ser citadas algumas bem relevantes. É realizada a primeira tradução da Bíblia, o que faz com que sejam dispensáveis para a sua leitura a missa ou grandes encontros, nos quais a presença das autoridades eclesiásticas era necessária. (O que foi um avanço, convenhamos). A prática religiosa acaba por se tornar algo muito mais particular, passando a valorizar a livre interpretação das Escrituras pelo indivíduo. A relação do fiel pode agora se estabelecer diretamente com Deus, sem a necessidade da mediação da Igreja. Estas novas práticas religiosas acabam dando lugar a um individualismo que se apresentará de maneira crescente na Europa. E para isso irá corroborar também a mudança da organização econômica dos Estados. O mercantilismo e a ascensão da burguesia trarão consigo um individualismo creditário de novas formas de competitividade, de organização do trabalho e da produção, além de novos valores e metas econômicas e políticas. Em decorrência desses fatores, o que se observa é o aumento da lista de razões que levavam ao suicídio, na qual se incluem agora os suicídios por falência, desemprego, alcoolismo e outros fatores ligados às condições econômicas. (Eu também sempre tive um pé atrás nessa coisa de “um aumento no número de razões” para se matar. Certa vez, numa aula de história da psicologia na faculdade, estávamos discutindo produção de subjetividade. Um garoto levantou a mão e disse: “Mas então quer dizer que na Grécia não tinha tanta produção de subjetividade, pois lá não tinha moda, shopping, televisão, ou seja, existiam menos fatores que se entrecruzavam, dando origem ao que chamamos de subjetividade. Não! Os gregos tinham “tanta subjetividade” quanto nós, mas suas experiências eram bastante diversas. Eu penso mais ou menos assim, eles deveriam ter tantos motivos para tirar a própria vida quanto nós, mas eram motivos absolutamente diferentes. Se no século XVII surgia o problema do desemprego, talvez na Grécia uma pessoa se matasse pensando que Zeus estavam descontente com ela. Não se trata de um maior ou menor número de motivos, mas de experiências diversas).

Mas, ainda com relação aos posicionamentos religiosos, não se pode deixar de observar a contra-investida católica, que não será de afrouxamento da condenação, mas de promoção de certos modos de espiritualidade que pregam o completo desprezo por si mesmo, o próprio corpo e suas necessidades, e pelo mundo. Dentre essas práticas se destacam a “espiritualidade do aniquilamento” ou a “abnegação de si”. Cabe observar que, na realidade, esta emerge com Mestre Eckhart no século XIII. Segundo seus ensinamentos há um caminho a ser percorrido pelo homem que se inicia no recolhimento daquelas energias que são dispensadas as coisas, retirando delas a importância que possuíam; essa é a abnegação do mundo. A seguir, esse homem deve desprender-se de si mesmo, encontrando aí a paz e a serenidade. A abnegação, deste modo, quer chegar ao nada de modo que “entre a perfeita abnegação e o nada não pode haver coisa alguma” (Weischedel, 2006, p.116). A essência autêntica do homem se realizaria precisamente aí, no alcance desse nada que é o fundamento de sua alma, no qual se estabelece uma relação direta com Deus. Pode-se concluir daí que “toda nossa essência não reside em nada mais que um aniquilar-se” (ibidem). Essa forma de espiritualidade se apresentaria como uma segunda opção ao suicídio físico e restaria às almas melancólicas, obrigadas a recusar o mundo ainda que condenadas a suportar a existência. (Ainda hoje em dia eu reparo experiências que se assemelham a esta filosofia em certo sentido. Existem pessoas que, em momentos de melancolia perdem a fome, a vontade de realizar qualquer tipo de atividade, perdem o sono, o prazer. Parece que começam a viver em um estado de abnegação de si e do mundo). Seria uma espécie de suicídio espiritual, um aniquilamento simbólico que teria como repercussão prática um afastamento do mundo. Nas palavras de Minois:

 

Recusa do mundo, recusa da vida pessoal, recusa da consciência individual, vontade de se fundir no grande todo a que uns chamarão nada e outros Deus, deixar de ser eu mesmo, apagar-me inteiramente: eis outras tantas características comuns com o suicídio físico. (1998, p. 207)

 

De um modo geral, essas duas formas de relação com o próprio corpo e com o mundo negarão ao indivíduo o prazer mundano e o interesse por si próprio, estabelecendo uma preocupação única, que seria a negação de tudo aquilo que pode desviar a alma do caminho árduo da salvação. A grande ambiguidade dessa prescrição é o fato de que esse afastamento completo ainda mantém interdito o suicídio, a alma deve padecer de todo esse sacrifício, nunca o abandonar em prol da salvação sob a ameaça de afastar-se dela no momento em que, segundo considera, a ela se entrega. (Loucura, não é? Realmente a religião costuma ter uma postura de desprezo em relação ao corpo e a esta vida mundana. Você não pode se entregar aos prazeres, tem de viver sempre em contrição, mas se ausentar da vida você não pode de jeito nenhum. Ela, ainda assim, tem um propósito que deve ser cumprido).  Os relatos de morte por inanição dos adeptos deste tipo de vida são inúmeros, ocorrendo, principalmente, entre os eclesiásticos.

Seria importante ressaltar então a obra de John Donne, o Biathanatos escrito em torno de 1610, como uma obra filosófica importante deste período que avança, se não no sentido da afirmação do direito ao suicídio, pelo menos na imposição de inúmeras ressalvas àqueles que o condenam. A grande ousadia de sua defesa é o fato de ela se fazer inteiramente dentro da teologia cristã. Donne não recorre, como os outros filósofos, aos exemplos gregos e romanos que embasam as posições favoráveis ao mesmo, mas àqueles argumentos que a própria moral cristã disponibiliza. Seu livro é organizado em três partes, as quais correspondem a três questionamentos: seria o suicídio contrário à Lei da Natureza?; à Lei da Razão?; ou à Lei de Deus? Ele chega à conclusão de que não se dispõe de argumentos que permitam afirmar que “algo é tão mal que não possa nunca ser bom”. (Wow! Eu penso no que isso significa até hoje). Não se encontra univocidade nas exposições de exemplos históricos, leis, ou textos que permita seguir em um sentido contrário a essa afirmação.

O autor, não só aí, mas também em muitos de seus escritos literários, tematizou a morte e o suicídio, como se pode verificar no trecho a seguir de uma de suas poesias: (Fantástico esse poema. Eu conheci esse autor na nas pesquisas para a monografia e depois me apaixonei pelos poemas).

 

Morte, não te orgulhes, embora alguns te provem

Poderosa, temível, pois não és assim.

Pobre morte: não poderás matar-me a mim,

E os que presumes que derrubaste, não morrem.

Se tuas imagens, sono e repouso, nos podem

Dar prazer, quem sabe mais nos darás? Enfim,

Descansar corpos, liberar almas, é ruim?

Por isso, cedo os melhores homens te escolhem.

És escrava do fado, de reis, do suicida;

Com guerras, veneno, doença hás de conviver;

Ópios e mágicas também têm teu poder

De fazer dormir. E te inflas envaidecida?

Após curto sono, acorda eterno o que jaz,

E a morte já não é; morte, tu morrerás.

 

A esse exemplo se segue o de Jean Duvergier de Hauranne, um eclesiasta que afirma que em certos casos não é apenas lícito, como constitui uma obrigação entregar a própria vida. É o exemplo do sacrifício feito em prol da vida do rei. De qualquer modo ele coloca a seguinte questão: “dado que existem tantas exceções para o homicídio, porque não as aceitar em relação ao suicídio?” (op. cit., p. 124). (Excelente pergunta. Vemos que é esta pergunta, exatamente a mesma, que inquieta autoridades há séculos).

Em contrapartida, os teólogos e moralistas empreendem uma oposição cada vez mais rigorosa. De qualquer forma, as dificuldades que encontraram foram inúmeras, assim a ambiguidade de seus posicionamentos se torna mais demarcada. O exemplo dos casuístas ilustra muito bem esse aspecto.

A casuística era um método que consistia em comparar cada caso particular com um caso paradigmático, para que então se estabelecesse um juízo. (A gente usa muito isso no senso comum até hoje)! Ao aplicar tal método à reflexão sobre o suicídio, na tentativa de passar em revista todas aquelas situações que podem levar um indivíduo a cometê-lo, os casuístas se deparam com casos extremamente delicados, na medida em que se impõem ao questionamento não só os casos de suicídio direto, mas também aqueles nos quais o indivíduo se expõe voluntariamente a alguma situação que pode colocar em risco a sua vida. Por exemplo: deveria ser condenada a mulher que se dedica ao cuidado do marido vítima de uma doença mortal e contagiosa? Ou então: é negada, àquele que pula de um prédio em chamas, sabendo que pode não resistir à queda, a salvação? No primeiro caso é lícito o cuidado da esposa; já a situação contrária, o marido que cuida da mulher doente, constituiria um pecado (op. cit., p.152). (Sério isso?! Mas a nossa discussão atual não é sobre machismo, certo?).  No segundo caso, a atitude é ilícita, pois não é permitido cometer pecado algum para salvar a própria vida (op. cit., p.154). O embaraço dos casuístas ao responderem a esse tipo de questão gera a ambiguidade anteriormente mencionada. Mas, embora sua oposição não se destaque em termos de consistência, este episódio não deixa de colaborar marcadamente para o debate da época. (Compreensível. Os caras se perdiam debatendo um trilhão de caso contingentes. Você não tira nenhuma regra universal daí, mas eles eram como que gurus da sabedoria, pois sabiam falar de muita coisa e certamente sabiam argumentar).

Cabe observar que a estes três fatores, quais sejam, os questionamentos humanistas, as intolerâncias moralistas e religiosas e as consequências das relações econômicas, somam-se as novas e cada vez mais fortes influências dos estudos médicos, psicopatológicos, psicológicos, sociológicos, dos posicionamentos filosóficos em geral e as novas influências da medicina no direito[1]. Em torno dessas referências se desenvolvem as discussões acerca do suicídio a partir do século XVII. Observa-se também que algumas dessas influências se dão de maneira crescente enquanto outras de maneira decrescente. As explicações emergentes então se tornam cada vez mais determinantes das visões acerca do tema, ao passo que as religiosas e moralistas o são cada vez menos. (E eu vou cortar aqui o capítulo, porque agora vamos mudar um pouco o escopo da discussão).

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1]Minois faz a distinção desses campos de saber a propósito dos temas aos quais marcadamente se referem, não considerando uma possível constituição formal destes na época.

Desespero e Pecado na Idade Média.

Capítulo IV

O início da Idade Média é marcado pela repressão ao suicídio e a crescente influência do cristianismo no regimento do território e das almas. Dante narra em seus infernos, sétimo círculo, II parte, que os culpados por praticarem violência contra suas vidas, privando-se do mundo terreno, estão condenados a transformar-se em árvores que “as negras harpias dilaceram”, causando “intensa dor que rompe em voz plangente”. (Um dos meus maiores orgulhos bestas durante a adolescência era o fato de ter lido A Divina Comédia no primeiro ano do ensino médio. Não entendi ab-so-lu-ta-men-te na-da do livro. Eu fui lendo pela sonoridade das palavras e pelas figuras maneiras. Eu ia para a biblioteca com uma amiga no recreio para lê-lo. Eu não entendia porque era difícil mesmo de acompanhar a narrativa em certo sentido – um sinal disso é que a edição que eu comprei da obra, anos depois, tinha mais notas explicativas do que texto mesmo, a edição da biblioteca era velha e não tinha nota nenhuma. Foi meio nostálgico voltar a esse livro na confecção do trabalho monográfico. Eu queria ter colocado as ilustrações aqui na mono. Na verdade, eu pesquisei muito os trabalhos artísticos do fim da Idade Média, passando pelo renascimento e chegando ao romantismo que tratavam do tema do suicídio e da morte de um modo geral. Não sou entendida no assunto, mas fui seguindo o raciocínio de alguns autores. Nas apresentações que eu fiz em congressos desse tema do suicídio, eu sempre incluía uma parte com essas imagens. Nem sei se eu as tenha mais no computador atualmente…).

O homem medieval não questiona a bondade da sua existência, uma graça divina. O suicídio é facilmente assumido como resultante de uma tentação diabólica pelo desespero ou como um ato de desrazão. Para o primeiro caso começam a se estabelecer gradativamente diversas penalidades que variavam de acordo com o local e a época na qual o suicídio era cometido, como arrastar o corpo do suicida pela praça ou pelas estradas e depois pendurá-lo, deixando-o apodrecer sem sepultura e sem nenhum ritual póstumo em sua homenagem. A prática da confiscação dos bens também se verifica.

Na análise de tais punições, que poderiam sob uma visão apressada ser consideradas despropositadas, cabe uma reflexão um tanto mais cuidadosa, a começar pelas relações entre alma e corpo entendidas na época. A relação estreita entre ambos atribuía uma grande significação a tais práticas, na medida em que elas visavam à humilhação e à incapacitação do corpo do suicida para que o espírito deste não pudesse encarná-lo novamente para importunar os vivos. A prática da condenação do corpo possui, como já mencionado, origem nos costumes de caráter supersticioso que, em sua maior parte, derivam daqueles praticados na Antiguidade pagã. (Naaaaaaaãoooo… O cristianismo se apoderando e resinificando práticas pagãs?! Quem diria! O que aconteceu aqui, foi que meros costumes supersticiosos se tornaram punições oficiais. Eu achei esse movimento extremamente interessante. Ainda me fascinam esses desenvolvimentos históricos). Além disso, algumas punições impostas ao cadáver do suicida podem mesmo impedir um indivíduo de cometê-lo, como se observou no caso das jovens de Mileto. (Bizarro esse caso). Tomadas por uma intensa fúria, várias jovens teriam cometido suicídio por enforcamento até que fosse declarado que a próxima que o fizesse seria carregada inteiramente nua pela cidade, tendo seu corpo exposto por dois dias. Imediatamente cessa a onda suicidária, conforme narra Plutarco (Cassorla, 1981, p. 5). (Essa era uma das grandes tristezas de tentar ser uma pesquisadora numa universidade brasileira com poucos recursos. Como eu queria ter tido acesso a alguns dos textos que nós mencionamos aqui no original, poderia ser traduzido para o português, mas eu queria ter lido esse relato diretamente dos escritos do Plutarco. Mas não tivemos acesso a esse material. Você pode reparar que o autor que eu referencio é o Cassorla, A impressão que fica é que não poderia ter existido um Foucault brasileiro. Que fica na biblioteca da própria universidade “descobrindo” vários textos fodas, pouquíssimo conhecidos ou estudados para trabalhar. No lugar disso, aqui no Brasil, nós estudamos o Foucault. Nós não temos incentivo para fazer coisas inteiramente novas, somos encorajados a repetir as coisas que os grandes autores estrangeiros disseram, a compreender o que eles pensavam, no ligar de imitarmos suas ações e sua metodologia inovadora de pesquisa e produção, replicamos seus achados e seus textos).

Já quando era atestada a loucura, o cadáver recebia indulgência. Cabe deter-se um instante na análise destes casos. Em primeiro lugar deve-se salientar o fato de que, não raramente, o suicídio dos nobres, na intenção de ser preservada a honra da família, era escondido por um atestado de loucura. Em segundo lugar, apesar da legislação se mostrar extremamente rigorosa com relação à condenação do suicídio, na prática, não se verificava tamanha rigidez.

O julgamento das autoridades, na maior parte das vezes, era bastante indulgente, de modo que qualquer sinal que pudesse apontar para a loucura era comumente aceito como prova da mesma. Qualquer sinal de grade irritação, fúria ou agitação, relatos de que o suicida estava tendo delírios ou alucinações era usado como prova daquilo que se conhecia como frenesi. (O controle das populações, como o próprio Foucault coloca, não era característico desse período. Aqui importava mais o governo do território do que das pessoas e dos grupos. É isso mesmo? Ainda lembro bem? Portanto a lei não intervinha singularmente em cada caso, esse não era o principal interesse). Em terceiro lugar, aquele suicídio conhecido na Antiguidade como suicídio filosófico ou suicídio por taedium vitae tem simplesmente seu sentido reflexivo desconsiderado e passa a ser entendido como um tipo de loucura, não mais como um estado de espírito, mas um estado físico causado pela melancolia. Este termo deriva do grego e significando “humor negro” designa uma bílis negra que, quando em excesso, escurece o cérebro causando pensamentos sombrios. (Outro ponto que me causa extrema fascinação. Vou tentar explicar. O objetivo desse trabalho era mostrar que não existe uma essência do suicídio. Eu acho que esse ponto é um dos mais poderosos nesse sentido. Pois todo um campo da vivência emocional das pessoas foi sumariamente desconsiderado nesse período histórico. O suicídio por desprezo da vida, aquele que seria levado a cabo pela reflexão de que a vida não vale apena ser vivida, desapareceu. Aquele suicídio verdadeiramente deixou de existir. As pessoas não mais reconheciam, ou não sabiam nomear, essa experiência de desvalor da vida. Pelo contrário, com o sentimento de que a vida é uma dádiva divina, aqueles que sentiam algo como desprezo pela vida tinham uma experiência completamente diferente da dos antigos. Aqui a gente vê que não tem nada de essencial em jogo aí. Só o que sobrou foi o ato bruto de tirar a própria vida – nem o nome suicídio existia ainda –, mas a experiência do ato de se matar, foi completamente ressignificado).

Durante a Idade Média, em contraste com a Antiguidade, quase não se observam suicídios de grandes nomes. Para isso podem-se apresentar alguns prováveis motivos. O principal seria a ocorrência de muitos suicídios indiretos. Estes não seriam propriamente suicídios, mas a exposição voluntária a situações que pusessem em risco a vida do indivíduo. (Esse assunto: suicídio, para-suicídio, comportamento de risco, é um ao qual eu gostaria de dedicar um texto a parte). A aristocracia medieval, e principalmente ela em comparação com a nobreza de outros períodos, se valeria então de uma série de dispositivos que serviram como “substitutos” para o suicídio. Seriam estes: a caça, as guerras, as Cruzadas, a rendição ao inimigo em combates, os suicídios lúdicos – como era o caso das mortes em duelos – e outros. (Ou seja, o povo era criativo em se tratando de achar jeito de morrer). Que seja observado que estes tipos de “suicídio” são considerados nobres e louváveis. O que também prova que, além da indulgência comum dos julgamentos, também havia uma falta de linearidade por parte do clero e da aristocracia entre as ideias que professavam e o modo como agiam. (Pois é, não é. Se está messe trabalho aqui é porque algum autor fez essa análise. Eu não me arriscava a tirar muita coisa da minha própria cabeça desse período. Agora que eu estou me autorgando o direito de fazer isso, eu diria que tenho um pé atrás com esta avaliação. Trata-se justamente de saber se podemos chamar esta exposição ao perigo como suicídio. Algumas dessas formas de exposição nem voluntárias são. Ir para a guerra, por exemplo. O que acontecei quando o cara desertava? Não era de boa. Como você vai colocar o exemplo do cara que morre na guerra como um suicídio em alguma escala, memso que seja uma to heroico, individual de bravura, no qual uma pessoa, ou uma tropa, “se martirizaria” em prol do cumprimento de uma estratégia de batalha? É uma questão de não ter muita opção. A caçada. Se você é convidado para uma caçada e se recusa? O que acontece? Sei lá. Mas enfim, eu também não tinha tempo na época para procurar bibliografia e discutir esses argumentos. Na verdade, esse não é muito o objetivo de uma monografia Noramalmente, nas monografias que tratam de tema teóricos nas humanas, você não coloca dois autores para conversar. Isso já é algo mais da ordem de um mestrado. Na monografia você escolhe um tema ou um autor e tenta entender um pouquinho daquilo ali.). E a estes tipos de suicídio se opõe o da população em geral, geralmente executado por afogamento ou enforcamento. O que irá caracterizar então um suicídio como direto, covarde e egoísta ou como indireto, nobre e altruísta são os meios e os motivos pelos quais ele se realiza. E é a moral dominante, marcada por um ideal cavaleiresco e a busca pelo sacrifício cristão, que sanciona esta diferença.

Quanto ao suicídio dos eclesiásticos, estes recebem um julgamento especial, que não era realizado pela justiça civil. O corpo de um eclesiasta suicida devia ser entregue ao membro da igreja responsável que executaria os devidos rituais de acordo com a lei da Igreja. Mas deve-se ressaltar que mesmo o suicida sendo um civil ou um membro do clero, muitas vezes há brigas entre a justiça civil e a eclesiástica, principalmente no que diz respeito à confiscação dos bens do suicida. (Claro. Dinheiro todo mundo quer. Eu tive um professor de história no ensino médio, que dizia que a parte mais sensível do corpo humano é o bolso)!

Duas últimas categorias de suicídios medievais seriam as dos suicídios heréticos ou judaicos. Os primeiros devidos a perseguições religiosas ou disputas territoriais. Os hereges, ao se verem ameaçados pela cobiça lançada sobre suas terras, para escapar a morte pelas mãos de seus inimigos, matam-se pelas próprias; por outro lado, ao serem colocados perante a escolha de abjurar sua fé ou morrer, eles “avançavam alegres e decididamente para a fogueira” (Minois, 1998, p. 26). Não devemos deixar de observar que enquanto os martírios voluntários dos cristãos constituíam um mérito, pois estes eram inspirados pelo amor a Deus, os suicídios dos hereges eram inspirados pelo diabo e não eram dignos de nenhum valor ou admiração (o que não impediu que alguns eclesiásticos os admirassem apesar das condenações oficiais). (Eu queria ter colocado as citações aqui! Vários textos da galera do clero relatando viagens das cruzadas, falando desses suicídios heréticos com a maior admiração! O pensamento da Igreja em inúmeros momentos não era o pensamento dos homens que compunham a instituição. Isso é uma condição geral em se tratando do Estado, das religiões etc., mas é interessante ver exemplos pontuais de como essas coisas acontecem e tentar entender como surge a visão da coletividade uma vez que há tanta discordância entre as partes. É o movimento dialético vivo no seio da história. Demais). Os suicídios judaicos, por sua vez, foram devidos, principalmente, às perseguições religiosas e cometidos em grandes números (muitas vezes por terem sido cometidos em massa) durante as cruzadas.

A partir do século XIII d.C. começa a ocorrer um retorno ao direito romano[1]. Deste modo, no que diz respeito à legislação, principalmente a partir do século XV d.C., com a intensificação dessa retomada e os novos questionamentos que emergiram influenciados pelo redescobrimento, operado pelos humanistas, da moral pagã, começa a aparecer alguns sinais oficiais de indulgência. (Eu não gostei desse capítulo. Mas foi um capítulo difícil de fazer. A gente se perdeu na leitura de várias coisas sem noção de teologia e de direito medieval que não tinha como aproveitar – e muitas vezes não dava para compreender muito bem. Faltava base para fazer essa parte da pesquisa. Pensando em trabalhar esse texto para uma possível publicação, eu não sei se daria para aproveitar este capítulo).

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1] Ocorrem uma série de transformações na arte, economia e política. Maurice Gandillac denomina esse episódio como “prelúdio do renascimento dos séculos XV e XVI, onde há coesão relativa de expressão estética e atividade cultural”. Refere-se ao progresso do comércio, decadência da nobreza feudal, o primeiro esboço das monarquias nacionais, impulso da ciência médica, reformas monásticas e mudanças nas línguas. (1995, p.40)

 

A Interdição do Suicídio.

Capítulo III    

A partir do século II d.C., Roma começa a se deparar com as tentativas de invasões bárbaras que ameaçam um império sub-povoado atingido pela fome e a peste. Sob a constante ameaça de dispersão do domínio territorial, ganha força a pregação cristã e novas noções de responsabilidade afloram no homem pecador decaído, divido entre a fé e o compromisso ético-político na “comunidade de fato” da ordem temporal. Declina o estoicismo e, com ele, o direito do cidadão de dispor da própria vida. A conduta refletida e racional é substituída pela doutrina da dignidade, de aceitação do destino (Chatelêt, 2000, p.26).

O império, em intensa crise econômica necessita cada vez mais de gente para defender o Estado e para sustentá-lo economicamente. A legislação prevê, então, novas sanções a determinados tipos de suicídio. Antes dessa crise, caso uma pessoa levada a julgamento fosse considerada culpada, além de morrer sob tortura tinha a família prejudicada pela confiscação de seus bens. No entanto, se houvesse um suicídio antes do julgamento, este ficava impedido. Depois do enrijecimento das leis aqueles suicidas não escapam mais à punição, mas sua ação é tomada como confissão de seu crime, portanto são imediatamente considerados culpados e se prosseguem as demais sanções. Endurecem também as penas contra escravos e soldados que atentam contra a própria vida. Isto para que, a partir do século IV d.C., passassem a ser condenados todos os tipos de suicídio e a punição designada a tal ato recaía tanto sobre os familiares quanto sobre o cadáver. Os rituais supersticiosos se estabelecem como pena assim como a confiscação dos bens. (Esse enrijecimento das leis que regiam a conduta foi aplicado a diversas esferas da vida privada. Ou seja, uma série de medidas de controle e organização sociais para tentar fazer com que o império superasse o período das invasões. O que não aconteceu. O grande império romano foi destruído. Eu destaquei aqui, por conta do interesse do trabalho, o endurecimento das penas contra o suicídio, mas o que estava em jogo era um conjunto de ações. Esse conjunto de ações teve como efeito uma outra maneira de olhar para a morte voluntária. Começou a ser criado um estigma em torno da ideia do suicídio que, principalmente no auge do império romano, não era verificado. A gente vai ver no que que isso deu mais adiante).

A doutrina cristã, então já dominante e, conforme declina o império Romano, cada vez mais influente na organização política, ainda que por razões diversas daquelas das do imperador, também demonstra seu repúdio ao suicídio e promove ampla campanha de moralização dos costumes (Góes, 2004, p.172). As atitudes tomadas pela igreja nesse sentido são: o esforço pela revalorização do casamento (e da virgindade), condenação aos desvios sexuais (sexo oral, masturbação), proibição do aborto como método contraceptivo (Áries e Duby, 2006) e a recusa de sepultura cristã para os suicidas. A necessidade dessa oposição seria a princípio devida às atitudes dos cristãos devotos que se entregavam com plena disposição ao martírio[1]. (A própria doutrina cristã estava ameaçada na época por conta do desprendimento da vida dos devotos do cristianismo que chegavam a praticar ações terroristas naqueles primeiros anos. Portanto, houve também, nesse período, a luta pelo estabelecimento da religião católica oficial e de seu código de conduta. Impressionante isso, não é? A luta pelo estabelecimento dos princípios da religião católica na verdade foi uma luta mesmo. Uma batalha de corpos e de ideias, de homens poderes, de riquezas. Não foi o caminho pacífico da iluminação).

As bases para a condenação do suicídio, contudo, não estão expressas nos Textos Sagrados, sendo assim houve dificuldade para a Igreja em assumir uma posição definitiva e coerente perante o ato, que só virá a se firmar por volta do século XI d.C., mesmo assim devido ao contexto histórico e não pela força de seus argumentos. As Escrituras Sagradas não traziam julgamentos do ato, mas, pelo contrário, uma série de exemplos louváveis do mesmo. Razis, cognominado pai dos Judeus, “preferiu morrer nobremente antes de cair nas mãos dos ímpios”, transpassou-as com sua espada, lançou-se animosamente da torre onde se encontrava na multidão de soldados que forçavam sua porta.

Todavia, ainda respirando, cheio de ardor, ergueu-se e, embora o sangue lhe jorrasse como uma fonte de suas horríveis feridas, atravessou a multidão numa carreira; em seguida, de pé sobre uma rocha escarpada e já inteiramente exangue, arrancou com as próprias mãos as entranhas que saíam, e lançou-as sobre os inimigos (Macabeus II, 14, 45-46).

(Essa foi outra parte insana do trabalho: percorrer a bíblia atrás dessas citações. Mas o legal da pesquisa é justamente isso. Não era só aprender sobre o suicídio em si, o que por si só era muito interessante, sem dúvida, mas eu sempre gostei também de aprender sobre outros períodos históricos, de saber como as coisas eram no passado. É meio isso mesmo, você começa a perceber que tudo foi construído pelos seres humanos e que as coisas nem sempre foram do jeito que são hoje, portanto, elas podem mudar. Tendo sido criada em uma família católica, também foi particularmente interessante para mim ver como a bíblia trazia ensinamentos diferentes daqueles que eram passados na igreja e pelos que professam essa fé. Foi ficando cada vez mais clara para mim aquela ideia de que a religião é construída por pessoas. Isso faz com que você comece a perceber que a sua religião e a do amiguinho são iguais e as duas merecem respeito. Uma não é melhor do que a outra. Todas são sistematizações da fé que o ser humano é capaz de expressar, são feitas por homens – literalmente falando – na maioria das vezes, e atendem a determinados interesses).

Eleazar, numa façanha arriscada, “projetou então salvar todo o povo e conquistar um nome eterno” atirando-se debaixo do elefante do rei para matá-lo e morreu junto com ele (Macabeus I, 6, 43-46). Sansão, aprisionado e cego pelos filisteus, evoca o nome de Deus rogando-lhe força para se vingar: “Morra eu com os filisteus! Dizendo isso, sacudiu com toda a força o edifício, que ruiu sobre os príncipes e sobre todo o povo (…) Matou pela sua própria morte” (Juízes, 16, 30). Abimelec, gravemente ferido, pede a seu escudeiro que lhe desfira um golpe de espada para que não digam que foi morto por uma mulher (Juízes, 9, 54). (Ok, esse é o exemplo mais idiota). E Saul, derrotado em uma batalha lançou-se sobre a própria espada e seu escudeiro morreu do mesmo modo (Samuel II, 31, 4-5).

A própria morte de Cristo, ato fundador do cristianismo, não teria sido por uma entrega voluntária? Cristo se entrega à própria morte, sem tentar em momento algum dela se evadir. Esta questão ocupa teólogos medievais de maneira mais demarcada até aproximadamente o século V. (A morte de Cristo era muito comparada com a morte de Sócrates pelos teóricos que eu estudei. Os dois teriam tido oportunidade de fugir de seu destino, mas seus ensinamentos não teriam sido levados a cabo se eles tivessem escapado da morte).

De um modo geral, a negação da vida terrena e a aspiração à morte para se aproximar de Deus e da eternidade abrem espaço para predisposição ao suicídio. O bom cristão, a exemplo de seu mestre, é induzido ao sacrifício da própria vida. Conforme os ensinamentos bíblicos “Quem quiser a sua vida perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por minha causa encontrá-la-á” (Evangelho São Mateus 16, 25). No século II, Tertuliano, hostil à latinidade pagã, admite a ideia de uma penitência da alma após a morte, da qual somente os mártires escapariam. Todos os outros teriam um tempo de espera até ao juízo final. (O martírio é caracterizado por uma entrega voluntária à própria morte. Você concorda que essa atitude é abarcada pelo conceito de suicídio? Há muito debate em torno dessas ideias. Mas, geralmente, entende-se que esta é sim uma forma de suicídio. Por isso todo o embaraço dos teólogos perante a necessidade de encontrar bases bíblicas para a condenação do ato).

As bases para a condenação do ato são, então, buscadas primeiramente na doutrina platônica, tal como interpretada pelas autoridades eclesiásticas. Santo Agostinho emerge aqui como seu principal representante, utilizando-se também do “não matarás”, que segundo ele interditaria tanto a morte auto-infligida quanto o homicídio. Esta é a primeira aproximação destas duas ações: a de matar a si mesmo e a de matar ao próximo. O suicida é um homicida de si mesmo. O quinto mandamento, no entanto, está longe de ser absoluto, pois é permitido matar os condenados, e os inimigos, tanto da Igreja quanto do Estado. (Olha como as coisas não são assim, preto no branco. Essa discussão é feita em diversos tons de cinza. Como a igreja condenaria de maneira absoluta o assassinato, mesmo que seja o assassinato de si mesmo? Tudo bem que tem um mandamento que proíbe matar, mas a igreja tinha que abrir certas exceções. É aí que você vê a questão dos interesses dos quais eu falei. A igreja tem interesses aliados com os interesses do Estado, especialmente em se tratando de Estados que não eram laicos, a igreja tem interesses econômicos. E, não se engane, nem mesmo os mandamentos são maiores do que esses interesses. Por que motivo você acha que a igreja não está travando uma guerra com o governo dos Estados Unidos atualmente para lutar contra a pena de morte? Pelo contrário, o padre vai lá na cadeia confessar os condenados? Pois essa não é uma briga que interessa para a igreja comprar agora. Assim, como a igreja já precisou fazer muitas guerras para proteger seus interesses, ela não poderia condenar completamente o assassinato e o suicídio, como consequencia). Além disso, a própria doutrina cristã se apresenta como uma dificuldade, por pregar o desprezo a esta vida mundana e enaltecer a vida eterna[2]. As considerações de Santo Agostinho sobre o suicídio estão expostas em A cidade de Deus e se constituem como a primeira demonstração bem articulada que se conhece no Ocidente sobre o tema.  Durante toda a Idade Média, notadamente no período patrístico, sua leitura constituía importância fundamental na formação dos doutores da Igreja, tal como a Bíblia. Em função das controvérsias entre Império e Igreja, era lida a partir de uma perspectiva política. Pois, pretendia indicar as forças malignas que atuavam por meio da luta política, na Terra, através da sede de poder e de glória, sem afirmar, contudo, que o Império estaria destinado à danação. Ele reconhece que na cidade terrena encontram-se vivendo juntos tanto os que pertencem à cidade celeste quanto os que pertencem à cidade da Terra. Em A cidade de Deus, o tema do suicídio, avaliado do ponto de vista da desobediência divina, é tratado a partir de dois ângulos.

No primeiro, prevalece a condenação do suicídio no que concerne à valorização da vida e à consideração desta como dádiva divina. A morte de si poderia ser interpretada como meio para alcançar a dimensão supratemporal da vida eterna que a tudo se sobrepõe. Por essa razão, o filósofo desenvolve argumentos em resposta aos discursos que justificavam a morte voluntária. Seguindo sua argumentação, nenhum cristão teria o direito de causar a própria morte, mesmo que tal iniciativa tivesse como pretexto: evitar cometer mais pecados futuros, preservar a pureza; expurgar pecados passados, buscando uma vida melhor após a morte; martirizar-se para redimir os pecados do mundo. Segundo Santo Agostinho, o suicídio torna impuro aquele que atenta contra si; a vida torna-se necessária para penitência e reparo de pecados passados; o julgamento divino após a morte não concederá uma vida melhor a um pecador e contrai-se um pecado próprio gravíssimo ao matar-se pelo pecado alheio.

No segundo, o filósofo absolve personagens bíblicos e as mulheres santas cristãs que praticaram tal ato, em respeito à Tradição e à autoridade das Escrituras. Diferencia sua argumentação quando são avaliados casos pagãos. Ressalvas ao suicídio só são admitidas em se tratando de valores aplicados àqueles que assumem o cristianismo. Aos pagãos, é previamente estabelecido o rigor do julgamento condenatório. Todavia, não é possível inferir a aprovação à prática de suicídio religioso equivalente ao martírio. Finalmente, porque um juízo de condenação universal poderia pô-lo em contradição com a veneração da Igreja, o filósofo deixa em aberto os casos marcados pela certeza absoluta de uma permissão divina. (Ou seja, pode se matar em alguns casos, algumas vezes o suicídio é mesmo louvável, mas em outros não, sendo o ato considerado extremamente reprovável).

Com Santo Agostinho, houve uma tendência à “unificação doutrinal” que permitiu reunir a pluralidade do pensamento grego, constituindo um conjunto teórico capaz de nortear as condições de acesso à verdade sob um mesmo solo.  Essa unificação se estende à prática quando prescreve condutas mediadas por procedimentos de purificação e “combate à concupiscência” (Foucault, 1984, p. 221).

Por volta do século XI d.C., uma nova medida é adotada pela Igreja para tentar impedir o suicídio: a confissão passa a ser obrigatória para todos os fiéis pela sua sacramentalização. Por essa medida, pretendia-se aliviar a consciência dos fiéis pelo recebimento imediato do perdão divino de seus pecados, graças ao poder intercessor da Igreja. Deste modo esperava-se aplacar o desespero do suicida diante da grandiosidade de suas faltas e a incerteza da misericórdia divina.

Já ao longo da primeira metade do século XIII, São Tomás de Aquino, diretamente influenciado por Aristóteles, representa o apogeu da escolástica medieval quando aproxima a fé da razão e a filosofia da teologia. Dilui oposições entre as verdades da razão natural e as verdades divinas reveladas, esclarecendo que a razão divina seria a expressão plena da razão humana. Para tal projeto, lança mão do método escolástico da disputa para analisar se matar a si mesmo seria lícito ou não. Este método consistia em apresentar argumentos retirados de fontes reconhecidas pela Igreja contra e a favor de algo para que, em decorrência da quantidade ou do peso dos argumentos, se chegasse a um veredicto quanto ao assunto. Primeiramente, São Tomás de Aquino apresenta cinco argumentos segundo os quais seria lícito se matar para em seguida apresentar três argumentos segundo os quais seria ilícito se matar: o suicídio seria contra a natureza, pois toda coisa amaria a si mesma, logo destruir-se seria contra uma inclinação natural. Em segundo lugar, ele seria contra a sociedade, na qual cada um teria um papel a desempenhar. Por último, seria um pecado contra Deus que, tendo-nos dado a vida, seria o único que possuiria o direito de dispor da mesma. Contudo, pela necessidade de justificarem os suicídios cometidos por figuras caras à Igreja, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino admitem que, por um apelo divino, o suicídio poderia ser com glória executado. (Nossa, cada volume da Suma Teológica é um livrão, não é. Eu ficava com dor nas costas de carregar aquele negócio para cima e para baixo na hora de estudar esses argumentos).

Por fim, o que se percebe de uma maneira geral é que, na medida em que o Império Romano decai e a Igreja católica se torna extremamente influente no governo, se alinham as forças do Estado e da Igreja contra a morte de si mesmo. Observa-se então que, neste momento, as necessidades sociopolíticas e econômicas se aliam à moral.

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1]A exemplo do movimento donatista, grupo religioso extremista de dissidentes da Igreja oficial e do Império, em geral de classes desfavorecidas que praticavam atos de terrorismo espalhando horror e derramando sangue em Roma. Era costume entre os membros do grupo tirar a própria vida arrogando para si a glória do martírio, seja entregando-se aos soldados do império, constrangendo pessoas a matá-los  sob ameaças de matá-las ou jogando-se do alto de rochedos. Esse ímpeto donatista surge como fruto da crise econômica e política. Sua violência e extravagância poderiam ser interpretadas por uma ânsia de participação social (Góes, 2004).

[2]Segundo as Sagradas Escrituras “Se alguém vem ter comigo e não me prefere ao seu pai, mãe, esposa, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida não pode ser meu discípulo” (Evangelho de São Lucas 14, 26.)

Conversão.

Roberto recebeu o sagrado corpo de Cristo das mãos do padre. Voltou em silencio até o banco onde estava sentado. A hóstia colada no céu da boca começava a se desmanchar, aos poucos, soltava pedacinho por pedacinho. Fazia cócegas na garganta, pensou, mas se conteve, imaginando que deveria ser pecado pensar uma coisa dessas. O resto da missa correu como sempre, demorada. Roberto foi embora depois da bênção final que ouviu já da porta da igreja, empurrando outros fiéis que disputavam o lugar mais abaixo no início da escada, mas também não tão baixo a ponto da bênção não o alcançar.

Enquanto isso, Jesus Cristo começava a penetrar lentamente em sua carne, a ser absorvido pelo seu corpo. Pele dura, pouco porosa, mas o santo homem persevera.

Jesus Cristo foi direto ao coração de Roberto.

E lá o encontrou assistindo Game of Thrones.

O coração das pessoas, sob o olhar do filho de Deus, não bate nem está cheio de sangue. Quando Jesus entra nos corações ele vê o dono da casa, que geralmente é pego de surpresa, fazendo o que mais aprecia fazer. Um pouco mais adianta de onde se encontra o anfitrião, estende-se um grande corredor, tanto maior quanto aspectos significativos possui o anfitrião em sua vida. Todas as paredes são vermelhas, essa é a única semelhança com o coração tal como nós o conhecemos.

Roberto, como era de se esperar, levou um susto quando viu o visitante e desligou imediatamente a televisão. Lembrava-se que o padre de sua igreja o havia aconselhado a parar de ver a série, por ser pecaminosa; desde então, Roberto passou a se confessar em uma igreja um pouco mais distante, mas para o padre de lá, nunca havia confessado assistir a série. Acreditava que isso minimizava o peso do pecado. Sentia culpa, mas sentia mais desejo.

Jesus vai andando, passa por Roberto, e chega a primeira porta à direita no corredor. Roberto apenas o observa. A presença mágica do filho de Deus o paralisa.

Jesus abriu todas as seis portas, uma a uma, demorou-se, olhou, olhou… em alguma ele chegou a entrar por alguns instantes. Roberto acreditava ver um certo ar de desapontamento na face do mestre. Nas duas faces. Quem me dera fosse numa só! Recriminou-se pela piada, puro efeito do nervosismo.

Roberto ouviu ao longe a voz de Jesus cumprimentado Natália. Na outra porta estava Carolina. E a voz de Jesus ressoa novamente. Olá, Carolina. Havia sido muito difícil para Roberto traçar a linha divisória entre as duas. Antes elas ficavam na mesma porta. Mas com os anos pegou prática.

Estavam acabando as portas.

Jesus não demorou muito mais para voltar ao pequeno hall onde Roberto se encontrava. Se olhássemos toda essa estrutura de cima, identificaríamos uma forma parecida com o buraco das fechaduras onde enfiamos as chaves, desenhado caricaturalmente.

Jesus voltava segurando um pequeno pé de abacate. O que é isso, Jesus? Roberto ficou curioso. Isto é o único fruto bom das suas últimas ações. Este brotinho aqui nasceu do abacate que você comprou e levou junto com algumas outras compras para a casa de sua mãe. O caroço foi plantado no quintal dela.

É Jesus, é assim mesmo. A vida está difícil. Muito trabalho, todo mundo perdendo o emprego, está tudo caro… E, com todo respeito, senhor, o senhor não tem ajudado muito, não é?! Jesus conteve o desapontamento. Do que você está falando, meu filho? Estou falando, Jesus, de todas as orações que eu tenho feito ultimamente. Roberto, eu não ouvi oração nenhuma sua! Faça agora o seu pedido que eu te atenderei. É meu filho, senhor. Que tem ele? Jesus, é claro, já sabia como aquela história acabaria. Mas se deleitava com a vivência de suas predições. O que te preocupa é a solidão que seu filho está sentindo, Roberto? Não é exatamente isso, Jesus. O senhor sabe que estou muito desapontado com ele. É bom que ele pense nas escolhas que ele está fazendo. O que eu queria era que não houvesse necessidade para nada disso, entende? Roberto, isso que você pediu não é oração que se faça! Ignorei, solenemente. Roberto… Não, Jesus, não diga mais nada. Vou resolver as coisas do meu jeito então. Ah…! Isso você não vai! Disse Jesus em toda a sua tirania de Deus do antigo testamento. Empurrou Roberto com tanta força, que ele cruzou a parede do coração, desceu pelo finalzinho do esôfago até o estômago, passou aos intestinos, uma parte sua saio nas fezes, o que ainda dava para aproveitar deu uma circulada pelo corpo e saiu depois pela urina.

Só Jesus restou no corpo do pecador.

Roberto estava terminando de almoçar a essa altura. Dalí em diante ele mudou. Radicalmente. Obra do demônio aos olhas de sua família e sua comunidade.

Roberto virou militante comunista, feminista, LGBT e do movimento negro. E passou a defender o uso da violência contra a repressão das forças do Estado.

 

Confissão (primeira versão).

Ontem eu publiquei o texto “Confissão” em sua versão mais recente.

Esse texto, contudo, já havia saído em um pequeno livro de contos que eu publiquei independentemente no ano passado.

Acontece que entre o texto publicado e a versão que eu postei ontem no blog existem algumas diferenças. Eu fiz um trabalho de voltar ao texto e trabalha-lo um pouco mais. Um texto nunca está pronto e acabado. Chega um momento em que o autor decide parar de mexer nele, mas é isso. Não quer dizer que o texto chegou à perfeição. Isso existe? Enfim…

Hoje o que vou fazer é postar a primeira versão desse mesmo texto, para que vocês possam avaliar: se melhorou… se piorou… Além de poderem acompanhar um pouquinho do meu processo de escrita.

Como foi para mim este processo? É um ato de coragem mexer em um texto “pronto” e publicado. E, acima de tudo, um ótimo exercício. Mas eu confesso que tenho sentimentos ambivalentes ainda em relação a esta prática ainda que a considere boa do ponto de vista racional. Algumas vezes eu acho que mexo e o texto piora. (Tipo mexer na merda e fazer ela feder mais do que antes). A minha autoestima vai para o fundo do poço quando isso acontece. Outras vezes, eu mexo no texto e acho que ele melhora muito. Aí o meu ego infla e eu assumo empreendimentos loucos como postar um texto por dia no blog (mas depois eu desabafo sobre isso).

Não mexo em todos os textos, mas naqueles que eu ainda não decidi declarar como encerrados e, como já disse, acho que o processo vale a pena sim, apesar dos pesares! Mesmo que, em algumas vezes, a gente precise meter vários ctrl Z e desfazer todas as alterações.

Acho que isso vale para tudo na vida. A gente tem que tentar mexer para melhorar mesmo. Se não der certo, esquece e parte para outra!

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Confissão (primeira versão).

Apesar de nascida e criada no Rio de Janeiro eu, assim como muitos outros cariocas, não conheço alguns dos pontos turísticos mais importantes da cidade.

Fui recentemente ao Pão de Açúcar e ao Cristo Redentor. Na verdade, ao Cristo eu cheguei a ir duas vezes no último mês. Na primeira ocorreu um imprevisto; o dia estava extremamente nublado. Não se podia ver nem a cabeça do Senhor, nem a cidade abaixo. Estávamos, aparentemente, entre duas camadas de nuvens. O pico do morro estava acima das nuvens, de modo que tínhamos a impressão de que se nós nos jogássemos lá de cima nada terrível aconteceria. Apenas cairíamos nas nuvens macias logo abaixo. Na minha opinião a textura das nuvens parecia densa e consistente, apesar de macia, como a de um elástico. Por outro lado, as nuvens acima de nós pareciam mais frágeis e delicadas. Esfumaçantes.

Quando fomos ao Cristo pela segunda vez o dia estava totalmente claro. Não havia uma nuvem do céu. Eu, sinceramente, preferi a primeira visita. Mas nada disso vem ao caso.

A visita sobre a qual lhe escrevo é a visita que fiz à Catedral no centro da cidade. Resolvi ter a experiência completa. Iria no domingo pela manhã, doaria dinheiro na hora do ofertório, apertaria a mão das pessoas ao meu redor na hora da Paz de Cristo, comungaria etc.

Pois bem, cheguei à igreja atrasada. Cheguei tarde mesmo e ainda fiquei por algum tempo observando os turistas do lado de fora. Os turistas reais. Vindos de outros países. Tiravam fotos e sorriam e falavam alto. Achei aquilo tudo um pouco desrespeitoso e acredito que tenha entrado na igreja mais católica do que cheguei ao local.

A catedral não me pareceu tão bonita assim por dentro. Aquela estrutura não combina com a de uma igreja. Sempre imaginei igrejas turísticas como grandes catedrais góticas de estilo europeu. Para quem espera esse tipo de coisa, a Catedral de São Sebastião do Rio de Janeiro é uma grande decepção. Pouco patriótico, eu sei, mas, ainda assim, o sentimento foi inevitável. Para ser justa, devo dizer que a catedral tem seus méritos. Para começar ela tem um formato coneidal, isso era novidade. Em seu interior vemos quatro grandes vitrais que se estendem quase desde o chão da catedral até o teto, lá eles se encontram formando uma cruz. Já ouvi dizer, não lembro quando nem quem disse, que cada um dos vitrais representa uma das características da igreja. O vitral que se encontra bem à frente de quem entra pela porta principal simboliza a unidade da igreja. Das figuras que parecem no vitral, eu consegui distinguir a Bíblia e o Cálice da Salvação. O vitral que fica às nossas costas representa as pessoas que são chamadas a compor o rebanho do Senhor. Simboliza a catolicidade da igreja. Há alguns homens pintados nela, apesar desse vitral supostamente indicar a universalidade da igreja. À esquerda de quem entra, estende-se o vitral que representa a santissidade da igreja e os dons do Espírito Santo. Nele fui capaz de distinguir as figuras de maria e José. Por fim, a direita, o vitral que simboliza o fato da igreja ser apostólica. A imagem de São Pedro aparece nesse vitral.

Se me permite uma análise que está certamente fora de minhas capacidades, eu digo que o simbolismo mais interessante de todos era não o dos vitrais em si, mas o que surge da união dos vitrais trabalhados e as paredes de concreto bruto da catedral. A junção do humano, imperfeito, ranhoso com o divino cristalino e colorido.

Os bancos, por sua vez, eram arrumados para formar um semicírculo ao redor do altar, postados um ao lado do outro e em fileiras até o fundo. Sentei-me no último banco da última fila. Passado pouco tempo comecei a reparar que havia uma criança inquieta perambulando ao meu redor. Logo veio a mãe e o repreendeu, arrastando-o de volta a um banco mais adiante. Ri sozinha. Crianças são estranhas demais. Logo me preocupei, contudo. Será que era alguma coisa comigo que a fazia rir? Ajeitei o cabelo, passei a mão pelas roupas. Nada de errado. Comecei a olhar em volta procurando o motivo da diversão. Reparei quase com o sobressalto que havia uma figura encolhida em cima do banco logo ao lado do meu. Ao vê-la, senti seu cheiro. Como eu não havia reparado antes? Embaçado, encardido e esfarrapado, estava lá adormecido, um mendigo. Me refiz do susto virei-me para o altar e voltei a cantar.

Logo fui interrompida novamente. Novo susto. Um barulho surdo ao meu lado virou violentamente minha cabeça para o lado, o banco com o mendigo havia sido arrastado por três homens. Todos os barulhos a minha volta se tornaram ensurdecedores.

 

Um coração para amar, pra

Perdoar e sentir

 

            Soa a voz dos homens pela primeira vez.

– Levanta, cara. Você tem que sair.

 

Um coração pra sonhar, inquieto e

            sempre a bater

 

            – Vamos, cara!

E cochicharam entre si.

 

Ansioso por entender as coisas

            que tu disseste

 

            Puxaram o braço do homem pobre.

E eu não entendia o que estava acontecendo. Não sei se eu cantava ainda.

 

            Eis o que eu venho te dar – continuava a música –

Eis o que eu ponho no altar – e que não vale de nada, pensei – Toma, Senhor que ele é teu

            Meu coração não é meu

 

O mandigo puxou o braço de volta e grunhiu.

 

Quero que o meu coração seja tão

            cheio de paz

 

Ergueram o mendigo que agora não reagiu.

 

Que não se sinta capaz de sentir

ódio ou rancor

 

            Olhei enquanto carregavam o homem pelos fundos da igreja até uma das portas laterais, acima dela se estendia o vitral com a imagem de São Pedro.

Eles voltaram cantando.

 

Quero que a minha oração possa me

            amadurecer

 

E eu também voltei a cantar.

 

Leve-me a compreender as

            consequência do amor

 

Me levantei num salto e cruzei com os três no meu caminho em direção à porta lateral.

Saí por ela sentindo medo. Imaginando que haviam lançado o mendigo escada abaixo. Mas ele estava logo ao lado da porta, braços e pernas abertos. Eu não vi os homens colocando-o lá, mas tenho a impressão de que, na posição que foi colocado, ele ficou. Além do mendigo do lado de fora da igreja haviam algumas crianças correndo, alguns adultos falando ao celular e vendedores ambulantes. Sentei-me na escada e senti uma raiva incandescente emanando da indignação que senti. Não só havia expulsado um mendigo que para estar morto só faltava esfriar de tão quieto que estava, como eu também não havia sido capaz de mover um dedo para ajudá-lo! Pensei em ir lá pedir ao mendigo que entrasse comigo de novo na igreja e se deitasse novamente no banco onde estava.

Me aproximei dele e o cumprimentei. Ele não me respondeu. Expliquei o meu plano com animação e o grande significado que aquela atitude teria. Seria um símbolo de resistência e de luta contra a opressão! Falei que poderíamos gritar se aqueles homens viessem novamente e que eu não o abandonaria. Acrescentei que se isso acontecesse, o padre provavelmente seria obrigado a interromper a missa e que nós apareceríamos até nos jornais da TV. Ele não emitiu nenhum som. Nem se moveu. Uma mulher se aproximou enquanto eu pensava como reformular meu discurso a ponto de motivá-lo. Ela colocou um terço na testa dele, uma nota de cinco reais em sua mão aberta e um pacote de biscoito aberto do lado de sua boca. E ele não se moveu.

Me afastei e fiquei sem ação até depois do fim da missa. Até que a certa altura bateu um vento um pouco mais forte, provavelmente de dentro da igreja que agora já não tinha mais tantas pessoas que o opunham resistência, e a nota de cindo reais voou das mãos do mendigo. Como estava, ele ficou. Parado, displicente, um indigente perfeitamente indiferente às condições da existência, ou assim eu presumi.

Levantei-me para ir embora ainda indignada com os falsos ideais. Entrei novamente na igreja, precisava ir ao banheiro antes de ir embora. Vi uma mulher num canto mais adiante assim que voltei para dentro da igreja. Ela colocava dinheiro em uma caixa de oferenda. O banheiro era na mesma direção. Quando passei perto da caixinha reparei que a ponta de uma nota de dez reais estava para o lado de fora. Me aproximei decidida, apesar de apavorada.

A indignação pulsava em ondas dentro de mim agora misturada com adrenalina. Puxei a nota de dez reais e enfie-a no bolso. Me virei e saí com passos largos pela porta da frente. Parei num bar ali perto, comprei uma cerveja e um maço de cigarros e voltei para casa satisfeita.

 

CONFISSÃO

Toda sexta-feira de madrugada, depois de uma noite de bebedeira aos pés dos Arcos da Lapa, eu tinha pesadelos com a Catedral de São Sebastião do Rio de Janeiro. Ela descia sobre mim como um imenso disco voador. Eu sonhei com isso tantas vezes que acabei ficando curiosa, achei que era um sinal, e resolvi visitar o monumento.

Tendo sido criada em família católica devota e atuante eu sabia como aproveitar uma visita dessas. Resolvi ter a experiência completa. Iria no domingo pela manhã, doaria dinheiro na hora do ofertório, apertaria a mão das pessoas ao meu redor na hora da Paz de Cristo, comungaria etc. Conheço bem a missa, os fiéis, o funcionamento da igreja, apesar de não ser lá tão católica. Batismo e primeira comunhão, sim, mas fé verdadeira, não.

Fiquei um pouco receosa no dia programado para a visita, pois os pesadelos eram sempre apavorantes. Relutei em sair de casa e acabei chegando atrasada à igreja. A missa já havia começado.

A Catedral não é bonita por dentro. Aquela estrutura não combina com a de uma igreja. Disco voador sim, com certeza; mas casa de Deus nem tanto. Eu sempre imagino igrejas em geral e, em especial, igrejas turísticas como grandes catedrais góticas de estilo europeu. Para quem espera esse tipo de coisa, a Catedral do Rio de Janeiro é uma grande decepção. Pouco patriótico, eu sei, mas, ainda assim, o sentimento foi inevitável. A decepção me causou uma secura na boca – perda de tempo ir ali – e uma careta de desagrado.

Para ser justa, devo dizer que a catedral tem seus méritos. Para começar, o óbvio, ela tem o formato de um cone, justamente a qualidade que me atraiu desde o início. Além disso, em seu interior existem quatro grandes vitrais que se estendem quase desde o chão até o teto. A Catedral é muita alta. E o teto, no local onde os vitrais se encontram formando o desenho de uma cruz, é vazado, de modo que a claridade do céu penetra por ali. A luz do dia mais ensolarado não seria suficiente para iluminar a igreja. Nenhuma luz é suficiente para iluminá-la. A catedral está sempre parcialmente na penumbra. Os vitrais são magníficos, gigantescos, multicoloridos, cheios de figuras feitas para inspirar admiração e os mais altos sentimentos. Mas se deslizarmos os olhos um pouquinho para o lado ficamos cara a cara com uma parede de concreto bruto, frio, repetitivo, um acinzentado que não tem mais fim. A junção do humano, imperfeito, ranhoso com o divino cristalino e colorido.

Já havia pessoas estranhando o tempo que fiquei parada na entrada da igreja tentando entender seu interior.

Os bancos eram arrumados de modo a formar um semicírculo ao redor do altar, postados um ao lado do outro e em fileiras até o fundo. A missa estava cheia, mas ainda havia alguns bancos vazios. Sentei-me na última fileira, perto de uma das saídas laterais. Ouvi o padre proferir algumas palavras antes que todos os fiéis começassem a cantar. O canto de tanta gente junto dava arrepios. Se alguém me perguntasse como é ter fé, eu diria que era sentir a reverberação de tantas vozes na pele. Eu sentia uma mistura de assombro com euforia.

Me balançando de um lado para o outro junto com a canção esbarrei em algo e reparei com sobressalto que havia uma pessoa encolhida em cima do banco logo ao meu lado. Senti seu cheiro. Eu não havia reparado antes. Embaçado, encardido e esfarrapado, estava lá adormecido, um mendigo. Para me refazer do susto virei para o altar e voltei a cantar.

Fui interrompida novamente. Novo susto. Um barulho surdo. Virei subitamente a cabeça para o lado. O mendigo havia sido puxado para fora do banco com violência. Três homens ergueram o corpo magro que resistia. Eu não entendia o que estava acontecendo. Meu corpo começou a latejar e todos os sons a minha volta se tornaram ensurdecedores.

 

Um coração para amar, pra

Perdoar e sentir

 

            Soa a voz dos homens pela primeira vez.

– Vamos, cara. Você tem que sair.

 

Um coração pra sonhar, inquieto e

            sempre a bater

 

            – Vamos, cara!

E cochicharam entre si.

 

Ansioso por entender as coisas

            que tu disseste

 

            Começaram a arrastar o homem.

Minha boca se mexia, mas eu não cantava.

 

            Eis o que eu venho te dar – continuava a música –

Eis o que eu ponho no altar – e que não vale de nada, pensei – Toma, Senhor que ele é teu

            Meu coração não é meu

 

O mandigo fincou os pés no chão e ainda resistiu.

 

Quero que o meu coração seja tão

            cheio de paz

 

Ergueram-no e ele agora não reagiu.

 

Que não se sinta capaz de sentir

ódio ou rancor

 

            Olhei enquanto ele era carregado pelos fundos da igreja até a saída, acima dela, um dos imensos vitrais coloridos, abaixo, o frio e desumano concreto.

Os três homens voltaram cantando.

 

Quero que a minha oração possa me

            amadurecer

 

O horror me fechou os lábios.

 

Leve-me a compreender as

            consequência do amor

 

Nos meus pesadelos a nave abduzia, mas esta nave espacial, enviada por Deus expulsa.

Levantei-me num salto e cruzei com os três no meu caminho em direção à saída para onde levaram o mendigo. Ele estava de pé logo ao lado da porta, braços e pernas abertos, a cabeça pendia para um lado, seminu, indecentes costelas aparecendo.

Além do mendigo havia crianças correndo, alguns adultos falando ao celular, vendedores ambulantes. Senti uma raiva incandescente emanando da minha indignação. Meus braços e pernas começaram a tremer. Não só haviam expulsado um mendigo que para estar morto só faltava esfriar de tão quieto que estava, como eu também não fui capaz de mover um dedo para ajudá-lo. Queria ir lá pedir ao mendigo que entrasse comigo de novo na igreja e se deitasse novamente no banco onde estava.

Me aproximei dele com passos firmes. Ele não me olhou. Expliquei o meu plano com animação e o grande significado que aquela atitude teria. Seria um símbolo de resistência e de luta contra a opressão. Falei que poderíamos gritar se aqueles homens viessem novamente e que eu não o abandonaria. Acrescentei que se isso acontecesse, o padre provavelmente seria obrigado a interromper a missa e que nós apareceríamos até nos jornais da televisão. Ele não emitiu nenhum som. Nem se moveu. Minha cabeça começou a rodar. Enquanto eu pensava uma série de absurdos para arrancar uma reação potente daquele homem, uma mulher chegou. Ela aproximou um terço da testa dele como quem dá a bênção. Em uma de suas mãos abertas ela colocou uma moeda e na outra o resto de um pacote de biscoito. Como estava ele ficou. Catatônico.

Ele parado, eu imobilizada.

A missa acabou. Os fiéis começaram a sair. Eu me distraí com o movimento por um instante e o mendigo desapareceu. Meu Deus! Esqueci a bolsa dentro da igreja! Voltei correndo até o lugar onde eu estava sentada. Nada. Comecei a andar em círculos procurando e nada da bolsa. Chorei de raiva. Muita raiva.

Desisti de procurar pela bolsa e comecei a caminhar em direção à saída. Passei perto da caixinha de oferendas. Reparei que a ponta de uma nota de dez reais estava para o lado de fora. Me aproximei.

A indignação pulsava em ondas dentro de mim agora misturada com adrenalina. Puxei a nota e coloquei no bolso. Fugi correndo pelas escadas que davam para a rua. Parei num bar ali perto, comprei uma cerveja e um maço de cigarros. Sentei na calçada, fumei, bebi, olhei a cidade e as pessoas que passavam.