Trogloditas machistas brasileiros na copa. 

Não sou hipócrita.
Quando eu viajei para a Alemanha para fazer um intercâmbio de estudo de língua estrangeira, fiquei hospedada no alojamento do Instituto Goethe com jovens de todos os lugares do mundo: russos, gregos, mexicanos, chineses, árabes e por aí vai.
Todos jovens curiosos, cheios de energia, reunidos em um país estrangeiro, sem supervisão, por conta própria, em alguns casos, pela primeira vez na vida, dominados por um grande desejo de aproveitar a vida e fazer muita sacanagem.
Você acha que não me pediram para sambar? Que não pediram para o rapaz indiano falar sobre sexo e o kama sutra? Que não perguntaram para a menina chinesa como se falava todo tipo de indecência em chinês? Óbvio que todas essas coisas aconteceram.
O que se passou com a menina russa e os trogloditas machistas brasileiros não foi isso. Não eram jovens curiosos aproveitando a vida e a própria sexualidade com uma misteriosa estrangeira. Eram idiotas gravando um vídeo com um tom humilhante de uma menina que parecia não saber muito bem o que estava acontecendo.
Sinceramente, quando ouvi falar sobre o conteúdo do vídeo, fiquei na dúvida se era de fato um caso de machismo ou não. O que me contaram foi: “rapazes brasileiros fizeram a menina russa repetir palavrões em português”. Eu pensei: “bom, quando eu viajei para a Alemanha fiz à beça e não teve nada de mais, pelo contrário, pedi que me ensinassem essas indecências. Foi engraçado”.
Foi apenas quando eu vi o vídeo que eu entendi o caso e o porquê da situação ser absurda.
O vídeo tem, de fato, um tom de exposição e humilhação da garota, além do fato dela parecer não entender a dimensão do que está acontecendo. No vídeo, eles dão a entender que estão fazendo um comentário sobre as partes íntimas daquela mulher especificamente; sugerindo que tinham tido algum tipo de contato sexual com ela, e estão dizendo para o mundo “peguei! Essa eu comi”. Coisa que, independentemente de ser verdade (acredito que não era), não seria motivo de vanglória para os babacas. A mulher não tem ali protagonismo nenhum da sua (suposta) experiência sexual com os caras. Ela é um troféu que, assim que é conquistado, perde seu valor. E, sinceramente, não tendo acontecido o ato sexual, eles não estão nem mesmo lidando igual babacas com algo que efetivamente aconteceu, eles estão simplesmente alardeando uma visão machista que tem o único e exclusivo propósito de rebaixar a mulher. Sim. Esse é o ponto principal. O efeito do machismo é que a mulher vale menos em situações de conotação sexual. O homem, na mesmo posição, tende a ser exaltado, a mulher é humilhada.
Ainda digo mais! Esses caras estão mais preocupados em humilhar a garota e fingirem que pegaram, do que em efetivamente desenrolar com ela e buscar a relação e o prazer sexual. Para eles é mais prazeroso e vale a pena se esforçar por uma oportunidade de aparecer para o mundo tratando-a como objeto do que transar com a menina. Isso é pura misoginia.
E fica a lição: meramente sugerir que a mulher teve algum tipo de contato sexual, na sociedade patriarcal, é diminuí-la. Esse episódio reforça essa visão.

Eu não preciso e eu não quero.

Em homenagem a uma propaganda que assisti hoje na televisão, que resolveu se pronunciar a respeito do desejo que a população feminina tem de usar maquiagem, resolvi publicar em três partes um trabalho que escrevi para uma disciplina do doutorado no final do ano passado. Simplesmente porque essa farsa de “reconexão” com a própria beleza através do entupimento da pele com maquiagem é apenas uma maneira de refinar o velho mandamento da beleza e submissão femininas. Se vocês não repararam, continuam sem ter voz nem espaço na mídia as mulheres que realmente não usam maquiagem. 

O título do trabalho é:

A abordagem das capacidades e as práticas de beleza feminina. 

 

O que é a abordagem das capacidades de Sen?

A abordagem das capacidades de Sen (2009) é um quadro teórico – framework – que nos proporciona um outro olhar sobre a forma de avaliar a justiça e a injustiça social, bem como as vantagens e desvantagens pessoais dos indivíduos. A abordagem das capacidades foca nas capacidades que as pessoas possuem de realizar a vida que elas têm razões para valorizar.

Qualquer teoria da justiça vai, necessariamente, ter um foco informacional, ou seja, certas informações-chave ou aspectos da sociedade ou das vidas dos indivíduos em questão que servirão de base para que possamos julgar se tal sociedade é justa ou injusta e se os indivíduos estão em vantagem ou desvantagem uns em relação aos outros. Nesse sentido, as diferentes teorias a respeito da justiça social nos apresentam diferentes aspectos que deverão ser levados em consideração neste julgamento.

Poderíamos citar como exemplo as abordagens utilitaristas e as abordagens baseadas em recursos. O utilitarismo se concentra na quantidade de felicidade ou prazer alcançado por uma pessoa para avaliar suas vantagens ou desvantagens em relação às outras pessoas da comunidade. Está em posição de vantagem aquela pessoa que obtém mais prazer quando comparada com as demais; aquelas pessoas que obtêm menos prazer, estão em posição de desvantagem. As abordagens baseadas em recursos, por outro lado, vão se concentrar nos recursos que as pessoas possuem. Recursos frequentemente levados em consideração são renda e riqueza. Quanto mais rico é um país, maiores as suas vantagens em relação aos outros países. É importante deixar claro que estas duas abordagens podem ser utilizadas para avaliar tanto a condição dos indivíduos, como também de comunidades e países.

Na abordagem das capacidades, as vantagens ou desvantagens pessoais são julgadas a partir da capacidade das pessoas de viver a vida que ela tem razões para valorizar. As vantagens de uma pessoa na abordagem das capacidades são maiores do que as de outra se a primeira possui mais oportunidades reais de alcançar as coisas que ela tem razões para valorizar. As capacidades são as possibilidades reais que uma pessoa possui de ser livre para ser ou para fazer aquilo que ela tem razões para desejar ser ou fazer. Este aspecto é relevante para a discussão que pretendemos desenvolver no presente trabalho.

Em inglês, Sen (2009) se refere aos beings and doings que uma pessoa possui oportunidades reais de alcançar. Os beings and doings são chamados por Sen (2009) de funcionamentos.

 

The difference between a functioning and a capability is like the one between an achievement and the freedom to achieve something, and between an outcome and an opportunity. All capabilities together correspond to the overall freedom to lead the life that a person has reason to value. (ROBEYNS, 2002, p. 3).

 

Ao falarmos em funcionamentos nos referimos aos resultados que uma pessoa é capaz de alcançar por meio de suas capacidades, portanto, enquanto as abordagens utilitaristas e as abordagens baseadas em recursos focam nos meios, a abordagem das capacidades foca nos fins. O foco nos fins é importante, pois os meios de uma boa vida não são necessariamente, eles mesmos, os fatores que compõem uma boa vida. Sen (2009) demonstra esse fato importante quando nos chama atenção, por exemplo, para o caso hipotético de uma pessoa que possui muito dinheiro, mas que também possui uma grave deficiência física. Essa pessoa certamente terá dificuldade em transformar os recursos que possui na vida que ela tem razões para valorizar. A sua deficiência física pode torná-la incapaz de experimentar uma série de experiências que ela valoriza, como, por exemplo, dançar ou jogar bola. Por mais rica que essa pessoa seja, ela não vai conseguir transformar seus recursos financeiros nos funcionamentos que ela deseja alcançar (ou, pelo menos, encontrará muitos obstáculos para tanto).

 

Sen argues, we should focus on the real freedoms that people have to lead a valuable life, i.e. on their capabilities to undertake activities, such as reading, working or being politically active, or to enjoy positive states of being, such as being healthy or literate. This line of Sen’s work, known as the capability approach, postulates that when making normative evaluations, the focus should be on what people are able to be and to do, and not on what they can consume or their income. The later are only the means of well-being, whereas evaluations and judgments should focus on those things that mater intrinsically, i.e. a person’s capabilities (ROBEYNS, 2002, p. 2).

 

Sen (2009) chama de “variações nas oportunidades de conversão” (p. 261), os aspectos que podem influenciar a capacidade de uma pessoa de transformar seus recursos em uma boa vida. Esses fatores podem ser pessoais (deficiências físicas ou mentais etc.), sociais (tradição cultural, normas sociais, regras legais, infraestrutura social etc.) ou ambientais (clima, disponibilidade de recursos naturais etc.).

Conforme afirmamos no início deste tópico, a abordagem das capacidades é, na verdade, uma ferramenta de avaliação. Contudo, diferentemente das abordagens utilitaristas e das abordagens baseadas em recursos, Sen (2009) não nos fornece nenhum tipo de informação específica que devemos quantificar e medir na tentativa de determinar se uma sociedade é justa ou não. Ou seja, a abordagem das capacidades não propõe nenhum conjunto de capacidades determinadas que devem ser analisadas ou mensuradas que serviriam de base para tal julgamento. O que ele propõe é um método que nos permite realizar comparações entre as diferentes capacidades e funcionamentos. Não poderia resultar daí uma forma de medida homogênea justamente pelo fato de que funcionamentos e capacidades englobam aspectos bastante variados, que podem ser comparados, mas não redutíveis uns aos outros.

Sen (2009) admite que isso pode causar um pouco de receio naqueles que estão acostumados a medir coisas brutas em números bem específicos – com a renda de uma pessoa ou o PIB de um país. De fato, Sen (2009) afirma que as capacidades não são mensuráveis da mesma maneira o que não quer dizer, contudo, que elas são mais fáceis ou mais difíceis de serem medidas.

Sen (2009) nos dá um exemplo: imagine uma pessoa que deve escolher entre realizar um determinado procedimento cirúrgico ou uma viagem a prazer. Dependendo da condição de saúde desta pessoa, ela não terá dificuldades para decidir[1].

Dizer que a abordagem das capacidades gera uma comparação que não é mensurável, não significa dizer que a decisão se torna mais difícil, quer dizer apenas que não se trata mais de uma decisão trivial como a de avaliar qual é o maior número em uma escala. Portanto, fica claro que a abordagem das capacidades trata de julgamentos comparativos que não são, de modo algum, triviais, mas não por isso são particularmente difíceis de serem realizados.

 

[1] Conferir página 241.

 

Referências bibliográficas

DWORKIN, Andrea. Woman Hating. Nova Iorque: Plume, 1974.

 

JEFFREYS, Sheila. Beauty and Misogyny. Harmful cultural practices in the West. Londres e Nova Iorque: Editora Routledge, 2005.

 

OKIN, Susan, M. Gênero, o Público e o Privado. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 16(2): 440, maio-agosto (2008).

 

ROBEYNS, Ingrid. Sen’s Capability Approach and Gender Inequality. (2002) Disponível em: <file:///C:/Users/melen/Desktop/trabalho%20de%20conclusão%20da%20MARINA%20segundo%20semestre/desigualdade%20de%20genero.pdf>. Acessado em: 31/12/2017.

 

SEM, Amartya. The Idea of Justice. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.

UM PONTO FORA DA CURVA  

O post de hoje é o relato político, parindo do corpo e da alma de uma mulher que nos fala de experiências e violências muito séries sofrida por milhões de mulheres na atualidade.

Texto extremamente necessário. Que ele nos ajude a refletir e lutar pelas liberdades de todas!

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“Sempre quando questionada, eu digo que não posso comparar minha vivência com a da maioria das mulheres trans no país pois – devido ao meu processo de transição física de gênero ser tardio (iniciado aos 40 anos), pude ter um convívio familiar, concluir o ensino fundamental e médio, estudar e me graduar em uma das melhores Universidades do país, pós graduar em instituição privada reconhecida e me inserir no mercado de trabalho formal, sendo hoje uma profissional bem sucedida.


De acordo com a Ong Transgender Europe, o Brasil é o país onde mais se mata pessoas trans no mundo, no qual aproximadamente 90% das mulheres trans vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica e estão jogadas na prostituição, quase sempre único recurso para poderem sobreviver, pois o mercado de trabalho formal – via de regra, lhes fecha as portas e quem deveria acolher e proteger – a família, costuma ser o primeiro lugar onde as violências se iniciam e, em boa parte das vezes, culmina com expulsão de casa. Sem suporte familiar, a mulher trans dificilmente terá condições de estudar (ambiente escolar é muito hostil), tampouco chegar à Universidade (ambiente não muito amistoso também). Abandonada pela família, sem estudos nem formação acadêmica e levando muita porta na cara do mercado de trabalho, só lhes resta a prostituição, onde são alvo de vários tipos de violências, desde agressões e escárnios verbais até assassinato.


Por ter formação acadêmica e ser uma profissional bem sucedida, sou considerada uma exceção. Claro que não estou imune à tratamento transfóbico, porém – esse tratamento sempre vem de pessoas de meus círculos sociais; até o momento, não tenho registro de transfobia pesada partindo de desconhecidos, salvo um ou outro deboche quando estou de cabelo curto, ocorrência inclusive relatada por amigas e conhecidas mulheres cisgêneras”.
Alexia é graduada em Biblioteconomia pela Universidade Estadual Paulista – Unesp, campus de Marília, Pós-Graduada em Gestão de Marketing pelo Senac-SP, atualmente Bibliotecária Chefe de um Centro Educacional Tecnológico Federal no estado do Rio de Janeiro e transexual.

Outras violências.

Ainda no pescoço! Direto no pescoço. Era sempre onde você me atacava. Mas agora tem gente para ver e essas pessoas, essas testemunhas não vão permitir que você me convença, como você fazia quando éramos só você e eu, de que os enforcamentos, os chutes nas costas, os roxos no braço, não eram sinais de violência e agressão física. Você fez muito bem mesmo. Nunca me deu um tapa na cara e por isso conseguiu me fazer acreditar por muito tempo que eu não sofria de violência doméstica. Você se recusou a acreditar. Lá no fundo, eu sempre desconfiei. Você fingia que não existia essa minha desconfiança. Como é para você? Saber que, no fim das contas, você foi traído? Que eu te enganei e te enganei bonito? Que eu aprendi a jogar tão bem o seu jogo que eu pude me mover por entre o pântano que você criou ao meu redor e escapar e esconder um amante bem debaixo do seu nariz? Eu aposto que você se sente completamente estúpido agora. Como é para você saber que eu sou mais inteligente? Que eu tenho mais desejo? Que eu estou mais viva do que você? E, quando por tristeza eu minguava, você adorava. Adorava que eu fosse preguiçosa, adorava que eu estivesse semidesfalecida, jogada na cama enquanto você cuidava da sua vida. Você adorava ter que cuidar de mim, tão fraca, para poder reclamar depois, me punir e se sentir superior. Mas mesmo com a sua presença nociva, seus comentários devastadores, mesmo com o meu mal-estar e seu narcisismo, eu consigo ver agora que você era fraco desde o início. Tão fraco. Fraco, sozinho e amedrontado. A única força que você tinha mesmo era a força bruta dos membros masculinos. Nas pernas e nos braços, no caso, em outros departamentos você tinha a maciez de um marshmallow.

“Carbono Alterado”. Resenha.

A nudez empoderadora dos vários de corpos nus daquelas mulheres mortas.

Um depois do outro, os corpos já saem estragados de suas capsulas. Sujos de sangue e danificados. Provavelmente ninguém aceitaria usá-los naquelas condições. Prefeririam corpos novos e frescos, sem imperfeições.

Muitos homens olham, muitas mulheres olham. Na verdade, está ali para o olhar de todos.

Nudez frontal completa.

Proibida.

Quanto paus você já viu pendurados em filmes por aí?

Mesmo em filme pornô, se for heterossexual, aposto que não terão sido lá tantos assim.

Mas mesmo uma pessoa que nunca assistiu a um filme pornô já viu muita mulher pelada nessa vida.

Já me falaram “é característica sexual secundária, não pode mostrar o pau do homem porque é primária”.

O biólogo entendido querendo me falar de moral e opressão. Ou melhor, o biólogo nem acha que opressão existe mais. Vocês já estão libertas. Agora ficou o seu ciúme, a sua inveja, a sua histeria.

E eu vejo aquela mulher nua, ensanguentada.

Eu não vejo poder.

E, como se não bastasse, mais uma e mais uma e mais uma. Caindo mortas. Os crânios abertos, os mamilos duros, a buceta à mostra, a bunda para o alto. E lá vem outra também caída, morta.

Mas o problema não é que a cena seja violenta.

O problema não é que tenha nudez.

O problema é que essa nudez violenta é entretenimento na tela do Netflix, mas é real dentro das casas durante a noite, ou quando não tem ninguém por perto, ou quando só as crianças estão por perto.

E se você perguntar para uma mulher, nua, agredida “você se sente empoderada”? Ela vai te responder que não.

Será que o marido dessa mulher nua que apanha e sangra depois de assistir Carbono Alterado vai ter sua consciência aliviada? A mulher dele ali jogada no chão com a marca da botina no estomago perfeitamente

Empoderada.

Poderia estar na tela da TV como símbolo do empoderamento.

Ops. Desculpe. Está sim.

Por que agora eu tenho que engolir que corpos mortos, nus, esparramados pelo chão, de mulheres assassinadas são uma forma poderosa do empoderamento feminino.

Mas eu já estou acostumada. Tentaram me convencer dessa mesma patifaria na humilhação da Cersei Lannister.

Uma mulher nua, em quem bateram, cuspiram, jogaram fezes, gozaram. Essa, me disseram também, era uma mulher empoderada. Foda. Que aturou tudo e ia dar a volta por cima.

Grandes merda, seus babacas.

Empoderamento de merda esse que querem me enfiar goela abaixo. Esse empoderamento serve para colocar as mulheres em cenas extremamente depravadas, degradantes, violentas, apontar o dedo e dizer “Tudo isso que ela aguenta é sinal de poder e não tem nenhum homem gozando com isso. Tudo isso ela faz por que quer”.

Melhor já ir logo dizendo: não rasguem as minhas roupas, não joguem merda em mim quando eu passar pela rua, não gozem na minha cara, não me assassinem. Esse não é o empoderamento que eu quero para mim.  

 

 

A imagem nua e crua do assédio sexual.

David Schwimmer, o ator que interpretou Ross na série “Friends”, junto com o diretor Sigal Avin, criou uma série de seis episódios que retratam cenas de assédio sexual baseados em fatos reais.
A série se chama #thatsharassment e o os episódio estam disponíveis na página do Facebook com o mesmo nome.
Os episódios são impactantes e têm o objetivo de mostrar o que é o assédio sexual e como ele acontece.

Estamos todos falando de mulheres.

Eu acompanho, em termos de redes sociais, apenas o Facebook e o Instagram. E bom, é carnaval.
O que eu mais tenho visto esses dias? Peito e bunda de mulher.
O assunto está em alta. Os peitos da Bruna Marquezine, a bunda da Viviane Araújo e ainda os caracteres sexuais secundários de muitas outras musas.
Tem homens criticando, homens elogiando, mulheres defendendo as musas daqueles que querem encontrar defeitos nelas.
Sinto muito por duvidar, mas nessas horas eu me pergunto se o nosso feminismo está indo para o lugar certo.
Ainda sinto que as discussões têm sido dominadas por homens e estão sempre a serviço do prazer deles.
Mesmo as mulheres que estão defendendo o poder das musas são excludentes em seus discursos. A defesa das musa por muitas mulheres, passa por atacar as mulheres machistas (que existem sim, não discordo), atacando aquelas que fazem alguma alteração cirúrgica em seus corpos.

As mulheres que se submeteram a plásticas e procedimentos de beleza de qualquer ordem ainda são muitas e merecem mais nossa solidariedade do que nossos ataques. 
Muito superficialmente nos contrapomos ao discurso masculino e continuamos atacando umas às outras. Sim, concordamos que existem mulheres machistas, mas usar esse argumento na discussão pública contra homens machistas não é uma boa estratégia. A gente mira no homem e acerta outras companheiras.
Parece que mesmo na hora de atacá-los temos que alfinetar a nós mesmas.
E estamos todos presos na imagem do corpo da mulher. O assunto ainda é o mesmo. As fotos são as mesmas. Muitas mulheres a minha volta ainda estão infelizes com seus corpos, ainda sentem ciúmes de seus namorados e ainda recorrem a procedimentos de beleza de todos os tipos, minhas amigas continuam sofrendo com os babacas do Tinder, continuam querendo um relacionamento e continuam infelizes quando estão solteiras. Mesmo que já saibam que está tudo bem ter celulite.
Parece que racionalmente já sabemos muitas coisas a respeito da libertação feminina, mas ainda não conseguimos agir de acordo, os sentimentos não acompanham os avanços no discurso.
E ainda, parece que se multiplicaram as discordâncias entre as próprias mulheres.
Estou um pouco confusa com o rumo das coisas, sabe?
Parece que nossos esforços não são de união, mas de ataques pontuais a críticas masculinas em relação ao nosso corpo, nosso comportamento sexual. Até onde conseguiremos chegar com essas estratégias. Não estou dizendo que não são estratégias válidas estas, mas elas me parecem muito insuficientes.
O carnaval é um indício de que o capitalismo e o machismo estão conseguindo resistir sem grandes problemas a estes ataques.

Tem muito mais em jogo nessa luta e não temos tempo de falar delas porque ainda continuamos focados naquilo em que sempre estivemos focados: o corpo da mulher.
Por outro lado, a família ainda não está em discussão. A religião não está em discussão. O cuidado das crianças e a maternidade não estão em discussão.
Principalmente, os esforços de união não estão presentes no meu dia a dia.
Recentemente eu me meti em uma briga de casal na rua. Uma cara estava agredindo uma menina. Depois da intromissão minha e do meu marido na briga a menina falou: “Obrigada. Eu sei que você quer ajudar (falando comigo), você deve ser feminista que nem eu, eu sei que o que ele está fazendo está errado, eu conheço a lei Maria da Penha, eu sei de tudo isso. Mas fui eu que fiz merda mesmo aqui, está bem. Fica tranquila”. Nessa hora não tinha mais nada que meu feminismo pudesse fazer e nem o dela fez muita coisa por ela naquele momento. Eu me consolei pelo fato dela já ter ouvido falar na luta, mas falta alguma coisa para o feminismo sair da mente e entrar nos corações.
Eu sei que esse não é o discurso de vitória que tem muita gente cantando por aí. Mas o meu momento é de desesperança.

“De que modo são as bruxas transportadas de um lugar a outro “.

Por que lembrar de eventos há tanto transcorridos?
Por que mergulhar no passado uma vez e outra ainda e mais outra?

“Eis, enfim, o seu método de transporte pelo ar. De posse da pomada voadora, que, como dissemos, tem sua fórmula definida pelas instruções do diabo e é feita dos membros das crianças, sobretudo daquelas mortas antes do batismo, ungem com ela uma cadeira ou um cabo de vassoura; depois do que são imediatamente elevadas aos ares, de dia ou de noite, na visibilidade ou, se desejarem, na invisibilidade (…); noutras ocasiões, mesmo sem qualquer auxílio exterior, elas são visivelmente transportadas exclusivamente pela força dos demônios” (p. 228).
“Contamos aqui o caso de um vôo invisível, feito à luz do dia. Na cidade de Waldshut, às margens do Reno, na diocese de Costance, havia uma certa bruxa tão detestada pelos habitantes da cidade que não a convidaram para a celebração de um casamento, ao qual, no entanto, esperava-se o comparecimento de todos os moradores da região. Indignada e desejosa de vingança, chamou a sua presença um demônio. Tendo lhe explicado o motivo de seu aborrecimento, pediu-lhe que desencadeasse uma tempestade de granizo para dispersar todos os convidados da festa; o demônio concordou e, elevando-a no ar, levou-a até uma colina, nas proximidades da cidade, à vista de alguns pastores. Pôis-se então a cavar um pequeno foço que deveria encher de água para poder desencadear a tempestade (pois que é esse o método que usam para provocar chuvas de pedra). Como ali não dispusesse de água, encheu o foço com a própria urina e começou a revouvê-la com o dedo – conforme manda o ritual –, com o demônio a pastos a observá-la. Então, repentinamente, o demônio fez todo o líquido subir pelos ares, desabando uma violenta chuva de pedras apenas sobre os convidados e os dançarinos da festa. Depois de terem se dispersado e ficarem a se perguntar qual teria sido a causa do temporal, viram que chegava a bruxa na cidade, o que levantou forte suspeita sobre ela. No entanto, depois que os pastores contaram o que viram, a sua suspeita transformou-se em certeza, pelo que a mulher foi presa. E confessou que assim procedera porque não fora convidada para o casamento. E, por esse motivo, e pelas muitas outras bruxarias que já perpetrara, acabou queimada na fogueira”.
“E como a história do vôo das bruxas é fato cada vez mais comentado e público, mesmo entre as pessoas comuns, é desnecessário aqui aditar outras provas. Esperamos que esses exemplos sejam suficientes para esclarecer os que ainda negam a existência desse fenômeno, ou os que tentam sustentar que são fenômenos meramente imaginários ou fantásticos” (p. 229).
“De fato, teria pouca importância deixar esses homens incorrerem nesse erro, não fosse a sua crença tão danosa à Fé. Pois que, não contentes em sustentar o erro, ainda persistem em sustentar e publicar muitos outros que contribuem para o aumento do número de bruxas e para o detrimento da Fé. Porque afirmam que toda a bruxaria só pode ser atribuída à imaginação e à ilusão de alguns homens, como se se tratasse de algo inócuo, tão inócuo quanto o seu vôo, mera fantasia” (grifo meu, p. 229).

Sabem tudo aquilo que te falaram para que você não julgasse os fatos do passado com os olhos atuais? Devemos perdoar os homens do passado, pois eles não sabiam o que estavam fazendo? Eu já havia falado sobre essa ideia em um texto bastante antigo do blog. Repito. Não temos que perdoar os homens do passado. Temos que repudiar suas ações e nunca mais repetir seus erros. Encontrei no próprio Martelo das Feiticeiras, livro publicado em 1484, o argumento que me permite condená-los por seus atos sem desculpá-los por motivo algum. Na passagem destacada acima fica absolutamente evidente o fato de que, já naquela época, havia pessoas apontando para o absurdo que era acreditar em bruxaria. O que aconteceu foi que, infelizmente, aqueles que estavam certos perderam na disputa pelo poder e tiveram seu discurso suplantado pelo fanatismo.
Já naquela época havia trabalhos sendo publicados que falavam sobre o absurdo que era creditar em bruxaria, que afirmavam que tudo não passava de uma fantasia. Então, os elementos necessários para combater o obscurantismo da fé e acabar com toda a abominação que foi a Inquisição estavam dados.
Você me pergunta qual é o sentido de ficar revirando o passado? Porque estamos sempre a um movimento social em falso de uma nova barbárie. Além das muitas das quais ainda somos vítimas.
Por acaso vamos querer que o futuro nos perdoe por massacrar nossos jovens negros nas favelas? Por culpar as mulheres vítimas de violência pela violência que sofrem? Qual é a nossa desculpa?
O nosso erro é pensar que o passado foi completamente superado. A gente assiste séries e filmes sobre a forma como o tempo é circular e não linear (A Chegada e Dark, por exemplo), e não se dá conta de que esse fenômeno é verídico; mais uma vez, a ficção conta verdades falando mentiras.
O passado se repete, e repete, e repete. E se essas citações não te assombram como a mim, é sinal de que temos de lembrar estas histórias horrendas mais e mais.

KRAMER e SPRENGER, O Martelo das Feiticeiras. Tradução de Paulo Fróes. 13a edição. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1998.

O que as feministas querem de você.

Meu sapato favorito exalava um cheiro insuportável de chulé o dia inteiro.
E eu me perguntava, sempre que alguém se aproximava, se outras pessoas conseguiam sentir o cheiro tão terrivelmente fétido quanto eu.
O cheiro não ficava contido no sapato. Subia até minhas narinas.
Aquele sapato era extremamente confortável. Eu não o havia escolhido por nenhuma qualidade estética. Tratava-se de um santo sapato, contudo. O mais confortável que eu já havia calçado em toda a minha vida.
E eu fui obrigada a abandonar o sapato. Voltar aos pares bonitos e perfumados que farão meu pé descamar até a carne viva eternamente, removendo esparadrapo, band-aid e o que mais você quiser colocar nos meus pés para protegê-los. Camada por camada eu vou sentindo dor.
Com isso meus valores estavam corretos novamente. Realinhados.
Fui aplaudida pelo abandono do confortável.
Claro que as pessoas não queriam ativamente que eu sofresse.
Mas sair por aí com sapato fedido é foda, não é?
Claro que ninguém quer ativamente que eu tenha câncer, mas abandonar desodorante é inaceitável.
Ninguém quer que eu sinta dor, mas depilação é uma questão de higiene.
Não querem que a minha pele fique sem respirar, mas uma maquiagenzinha dá uma vida para a cara morta e desinteressante natural que a gente tem, certo?
A pergunta não é: por que o feminismo não quer que eu use maquiagem, me depile e use desodorante.
A questão é que deve-se ter em mente duas coisas:
1- De onde vem o meu desejo de tratar o meu corpo desta forma? (Se pergunte, por exemplo, de onde vem o seu desejo de beber refrigerante? Ou o seu gosto por filmes de Hollywood?). Nossos desejos e a maneira de lidar com o nosso próprio corpo são historicamente construídos e possuem muitos significados que não podem ser ignorados. O que nos leva ao ponto número dois;
2- O que acontece com as mulheres que escolhem não se submeter a esses padrões? É tranquilo para elas?

A resposta é não.

Não é tranquilo para as mulheres fazerem escolhas que desviem daquilo que lhes é imposto.

Esse é o ponto da luta. Defender o seu direito de tratar o seu corpo do jeito que você quiser sem que você seja punida por isso.

Vamos imaginar que Maria decidiu ficar em casa no sábado à noite no lugar de ir para a balada. Este é o cenário A. Neste cenário, Maria exerceu a sua liberdade e decidiu o que queria fazer, além de ter tido condições de efetivamente fazer o que havia decidido. Também estava preservado o seu direito de mudar de ideia. Caso ela desejasse sair, ela seria livre para isso.

Agora vamos pensar no cenário B. Maria havia acabado de tomar a mesma decisão de não sair no sábado à noite, quando alguns bandidos invadiram sua casa para se esconder da polícia. Eles disseram para Maria que ela estava proibida de sair de casa enquanto eles estivessem lá sob a pena de sofrer pesadas punições.

No cenário B, Maria acaba fazendo o que ela havia resolvido fazer de qualquer maneira, mas podemos dizer que ela foi realmente livre nesta situação?

A resposta é não.

No cenário B, a despeito do resultado final da ação ter sido o mesmo, Maria não era verdadeiramente livre. Ela não poderia ter mudado de ideia. Ela não poderia ter escolhido fazer outra coisa. E ainda, uma severa restrição havia sido adicionada à sua decisão inicial de não sair de casa, de modo que não há mais como afirmar se Maria não sai de casa porque ela manteve a sua decisão inicial de não sair e ela não muda de ideia até os bandidos irem embora ou se ela apenas estava evitando ser severamente punida pela desobediência às condições que lhe foram impostas.

No que diz respeito aos cuidados com o corpo de uma mulher a situação é semelhante a do cenário B. Substitua Maria por uma mulher X e os bandidos pelo machismo que impõe padrões ao corpo dessa mulher.

Aí eu já sinto o seu desejo de perquirição: você está dizendo então que as mulheres não sabem o que querem com o próprio corpo? À mulher não cabe dizer o que ela quer do próprio corpo? É você quem sabe e quem tem que dizer?

Não.

A palavra final é sempre da mulher.

Lembra que eu disse que o importante é que cada uma possa fazer o que deseja com o seu corpo e com a sua vida sem que haja algum tipo de punição desta atitude?

Pois bem. Dito isso, afirmo que, uma vez que você tenha consciência de que há uma força estrutural que demanda certas coisas do corpo feminino, a última palavra a respeito do seu corpo e dos seus desejos é sua. Sem dúvida alguma. Mas enquanto uma reflexão deste tipo não é feita, você pode estar à mercê de certas forças opressoras da sociedade sim. E pode acabar reproduzindo-as às custas dos desejos e dos cuidados com o corpo próprio de outras mulheres.

Esse raciocínio não é novo. Começamos a ser alertados para os efeitos perniciosos das ideias preconceituosas e opressoras que absorvemos passivamente e sem questionamento ou plena consciência há muitos anos e por muitos movimentos de minorias diferentes.

Essas forças funcionam em larga escala sob a superfície dos desejos e dos atos. Temos que retirar uma camada, olhar por debaixo dos nossos comportamentos e pensamentos para perceber sua influência.

É o que fica claro no cenário B. Essa força do machismo só fica evidente quando há desvio e sofrimento. Se você olha apenas para o fato de que Maria ficou em casa no sábado à noite, você não é capaz de ver o bandido atrás da porta apontando o revólver para ela.

É apenas em um terceiro cenário hipotético C, no qual Maria poderia vir a resolver desobedecer ao bandido e sair de casa a despeito de suas ordens, que nós percebemos que Maria não era realmente livre para fazer o que desejasse seja lá o que for que ela escolhesse.

No cenário C, no qual Maria resolve fugir, desrespeitando o comando que lhe foi dado, ela é baleada. É apenas nesse momento que vemos o perigo de desviar da ordem dominante.

Mas liberdade não é meramente ter a sorte de querer o mesmo que o seu agressor te obriga a querer não é mesmo?

Isso é a mesma coisa que ser escravo do “bom senhor”. Não importa se o seu senhor é “bom”, a sua liberdade jamais será verdadeira enquanto você estiver sob o domínio de um “mestre”, pois a qualquer momento, essa liberdade pode acabar.

Me acompanhe ainda no cenário D, no qual Maira está em casa obedecendo ao comando dos seus sequestradores, mas estes, em algum momento, dominados pelo medo, imaginam ter visto em uma dobra do vestido de Maria um aparelho celular e supõem que ela tentou ligar para 190. Tomados pela raiva do que imaginam ter acontecido, eles acabam atirando em Maria e fugindo.

No cenário D, ainda que Maria não estivesse em conflito com a obrigação específica de ter de ficar em casa no sábado à noite e a despeito do fato de ter obedecido ao comando dos sequestradores, vemos que a suposta liberdade da vítima era falsa, pois ela acabou sendo baleada de qualquer modo.

Assim é também quando nos adequamos às demandas do machismo. Nem mesmo quando nos adequamos às tais normas estamos perfeitamente seguras.

Usando maquiagem ou não, depilação ou não, a liberdade da qual desfrutamos não é inteiramente real.

Não é verdade, por exemplo, que são estupradas ou sexualmente abusadas apenas as mulheres que desviam dos padrões machistas de vestimenta ou de comportamento.

Tendo tudo isso em vista, lembre-se sempre: a feminista quer o seu bem, seja você homem ou mulher, ela quer que você seja feliz e livre; o que não pode é você só querer o bem da mulher se ela for do jeitinho que você aprova.