Eu não preciso e eu não quero. Parte III.

As práticas de beleza e a abordagem das capacidades

 

(…) In most parts of the world there is a shared tendency

not to notice the systematic deprivation of females vis-à-vis males

in one field or another.

Amartya Sen, 2009.

 

Levando em consideração a abordagem das capacidades quando estamos pensando as práticas ocidentais de beleza impostas às mulheres, duas questões devem ser colocadas: 1- De onde vem o desejo das mulheres de submeterem seus corpos às práticas de beleza?; e 2- O que acontece com as mulheres que escolhem não se submeter a esses padrões? Como elas passam a ser vistas e tratadas pela sociedade?

Já ficou clara, a esta altura, que a abordagem das capacidades leva em consideração a capacidade que as pessoas possuem de viver a vida que elas têm razões para valorizar. “Sen stresses the importance of ‘reason to value’, because he argues that we need to scrutinize motivations to value specific lifestyles, and not simply value a certain life without reflecting upon it” (ROBEYNS, 2002, p. 3). O que devemos questionar, em resposta à primeira questão é? As mulheres têm, de fato, razões para valorizar o engajamento em práticas de beleza? Essas razões são verdadeiramente independentes de influência políticas e culturais?

Certamente o fato de que um número significativo de mulheres, quase metade da população do planeta, decida adotar tais práticas e supostamente tenha razões para valorizá-las. Essa estranheza decorre de

 

an application of Anne Phillips’ (1999, 2002) more general claim that, for group inequalities, equality of opportunities and equality of outcomes converge, as the default assumption should be that the distribution of preferences between groups such as those based on gender or race are identical. The burden of proof should fall on those who claim that women would, in a systematic way, intrinsically prefer different options than men, if they had the same real opportunities. (…) the group inequality in achieved functionings could be taken to mirror the inequality of capabilities (ROBEYNS, 2002, p. 23, destaque feito pela autora).

 

Não parece correto que as mulheres, naturalmente, escolheriam recorrer a tais práticas enquanto a maior parte da população masculina mundial permanece imune a elas.

Vamos analisar esta questão das razões para desejar um determinado funcionamento a partir de um exemplo inspirado em Sen (2009)[1].

Vamos imaginar que Maria decidiu ficar em casa no sábado à noite no lugar de ir para a balada. Este é o cenário A. Neste cenário, Maria exerceu a sua liberdade e decidiu o que queria fazer, além de ter tido condições de efetivamente fazer o que havia decidido. Também estava preservado o seu direito de mudar de ideia. Caso ela desejasse sair, ela seria livre para isso.

Agora vamos pensar no cenário B. Maria havia acabado de tomar a mesma decisão de não sair no sábado à noite, quando alguns bandidos invadiram sua casa para se esconder da polícia. Eles disseram para Maria que ela estava proibida de sair de casa enquanto eles estivessem lá sob a pena de sofrer pesadas punições.

No cenário B, Maria acaba fazendo o que ela havia resolvido fazer de qualquer maneira, mas podemos dizer que ela foi realmente livre nesta situação? A resposta é não.

No cenário B, a despeito do resultado final da ação ter sido o mesmo, Maria não era verdadeiramente livre. Ela não poderia ter mudado de ideia. Ela não poderia ter escolhido fazer outra coisa. E ainda, uma severa restrição havia sido adicionada à sua decisão inicial de não sair de casa, de modo que não há mais como afirmar se Maria não sai de casa porque ela manteve a sua decisão inicial de não sair e ela não muda de ideia até os bandidos irem embora ou se ela apenas estava evitando ser severamente punida pela desobediência às condições que lhe foram impostas.

No que diz respeito aos cuidados com o corpo de uma mulher a situação é comparável com a do cenário B. Substitua Maria por uma mulher X e os bandidos pela estrutura patriarcal da sociedade e o machismo dela decorrente que impõe padrões de beleza ao corpo dessa mulher. Esta estrutura opera de tal forma que, no que diz respeito à decisão de se engajar em práticas que reforcem a dominação masculina, não é possível dizer com certeza se as razões que a mulher possui para se engajar nestas práticas seriam ainda levadas em consideração caso a sociedade fosse estruturada fora dos moldes patriarcais.

A crítica das feministas liberais consiste em indagar que, com este tipo de raciocínio, o feminismo radical afirma as mulheres não sabem verdadeiramente, de maneira livre de interferências, o que querem do próprio corpo. Esta crítica ignora o fato de que há uma força estrutural que demanda certas coisas do corpo feminino que causa sofrimento, insatisfação constante e gera punições por desobediência. O fato é que, para que a mulher possa se ver livre destas amarras, é necessário que se reconheça a opressão que ela vivencia. É apenas a partir do reconhecimento da opressão que a mulher pode efetivamente combater o domínio masculino e se ver verdadeiramente livre para viver a vida que ela valoriza.

Essas forças funcionam em larga escala sob a superfície dos desejos e dos atos. Temos que retirar uma camada, olhar por debaixo dos nossos comportamentos e pensamentos para perceber sua influência.

É o que fica claro no cenário B. Essa força do machismo só fica evidente quando há desvio e sofrimento. Se você olha apenas para o fato de que Maria ficou em casa no sábado à noite, você não é capaz de ver o bandido atrás da porta apontando o revólver para ela.

Este raciocínio fica ainda mais claro quando recorreremos a uma distinção feita por Sen (2009) entre o que ele denomina resultado culminante e resultado compreensivo. O resultado culminante é meramente o resultado final de uma ação. No caso do cenário B, o resultado culminante é exatamente o mesmo no do cenário A: Maria acaba ficando em casa. Já o resultado compreensivo leva em consideração também “the way the person reaches the culmination situation (for example, whether through his own choice or through the dictates of others)” (SEN, 2009, p. 230). No cenário B Maria fica em casa como havia decidido antes da chagada dos bandidos, no entanto fica claro que já não podemos mais afirmar que, neste cenário, Maria é efetivamente livre, pois ela já não pode mais escolher qualquer outra coisa que não o que os bandidos a obrigam a fazer.

É no cenário hipotético C, no qual Maria resolve desobedecer aos bandidos e sair de casa a despeito de suas ordens, que nós observamos as consequências da desobediência de Maria e passamos a não ter mais dúvidas de que ela não era efetivamente livre para escolher. No cenário C, no qual Maria resolve fugir, desrespeitando o comando que lhe foi dado, ela é baleada. É apenas neste momento, no momento da desobediência, que podemos perceber, sem sombra de dúvidas, que Maria estava sob uma forte restrição da qual ela não podia simplesmente escolher se livrar.

Em termos de abandono de práticas de beleza e de punições sociais podemos citar: O fato de que os patrões ainda exigem de suas empregadas negras, por exemplo, que alisem seus cabelos[2] sob a pena de não cumprirem os requisitas adequados para ocupar uma determinada vaga de trabalho, podemos citar o fato de que fotos de mulheres que não depilam as axilas viralizam nas redes sociais com comentários maldosos[3].

Nesse ponto, defendemos que liberdade não é meramente ter a sorte de querer o mesmo que o seu agressor te obriga a querer para não sofrer as represálias.

Acompanhe-nos ainda no cenário D, no qual Maira está em casa obedecendo ao comando dos seus sequestradores, mas estes, em algum momento, dominados pelo medo, imaginam ter visto em uma dobra do vestido de Maria um aparelho celular e supõem que ela tentou ligar para a polícia. Tomados pela raiva do que imaginam ter acontecido, eles acabam atirando em Maria e fugindo.

No cenário D, ainda que Maria não estivesse em conflito com a obrigação específica de ter de ficar em casa no sábado à noite e a despeito do fato de ter obedecido ao comando dos sequestradores, vemos que a suposta liberdade da vítima era falsa, pois ela acabou sendo baleada de qualquer modo. No cenário D, percebemos que, na verdade, Maria estava à mercê da vontade dos bandidos ainda que seus interesses não estivessem momentaneamente em conflito. Mesmo sem o conflito, a dominação existe, ela pode ser apenas mais difícil de ser percebida, mas não permanece oculta a uma avaliação atenta e pode ter consequências devastadoras.

Sen (2009) afirma que nós valorizamos a liberdade por, pelo menos, duas razões diferentes:

 

First, more freedom gives us more opportunity to pursue our objectives – those things that we value. It helps, for example, in our ability to decide to live as we would like and to promote the ends that we may want to advance. This aspect of freedom is concerned with our ability to achieve what we value, no matter what the process is through which that achievement comes about. Second, we may attach importance to the process of choice itself. We may, for example, want to make sure that we are not being forced into some state because of constraints imposed by others (SEN, 2009, p. 228).

 

Para Maria, nos cenários citados, à exceção do cenário A, ambos os aspectos estão prejudicados. O aspecto da oportunidade está prejudicado porque, a partir do momento em que os bandidos entram na casa, Maria já não pode mais decidir por nada que vá de encontro ao que os bandidos a obrigarão a fazer. Por outro lado, o aspecto da escolha também está prejudicado, pois não temos como ter certeza de que o fato de Maria ficar em casa é devido à presença dos bandidos em sua moradia ou a um desejo legítimo seu.

Vimos inclusive o complexo mecanismo psicológico da síndrome social de Estocolmo, que opera como um mecanismo de defesa contra esta forma de opressão e que ajuda a mascarar ainda mais o real desejo feminino. Os funcionamentos que seriam perseguidos caso não houvesse nenhum tipo de mecanismo social de educação dos desejos da mulher desde a sua primeira infância, que é reforçado por sofisticadas formas de punição social por desobediência.

[1] Conferir páginas 229 e 230.

[2] Conferir reportagem: Estagiária negra é forçada a alisar cabelo para preservar ‘boa aparência’. Disponível em: < https://www.pragmatismopolitico.com.br/2011/12/estagiaria-negra-e-forcada-alisar.html>;. Acessado em: 31/12/2017.

[3] Conferir reportagem: Jovem insultada por não depilar as axilas responde: ‘consequências de sair das normas’. Disponível em: < https://extra.globo.com/mulher/jovem-insultada-por-nao-depilar-as-axilas-responde-consequencias-de-sair-das-normas-20082094.html>;. Acessado em: 31/12/2017.

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