Eu não preciso e eu não quero. Parte II.

As práticas de beleza

 

Women must be beautiful

and Woman is Beauty.

Dworkin, 1974.

 

Segundo Jeffreys (2005), uma importante disputa surgiu dentro do movimento feminista ao longo da década de 1990 entre as correntes que afirmavam que as práticas de beleza ocidentais eram ferramentas de opressão e subordinação da mulher e aquelas que afirmavam que as práticas de beleza seriam a expressão da escolha e da agência das mulheres sobre seus corpos. O problema é que começou a se firmar, de maneira perniciosa na sociedade, a ideia de que a cidadania estava menos relacionada com a luta por direitos do que com o empoderamento a partir da escolha do consumidor (JEFFREYS, 2005). A partir deste momento, a luta de feministas radicais, que vinham desde a década de 1970 denunciando as práticas de beleza como formas de coerção da mulher difundidas pelas indústrias da moda e da beleza, passou a ser desafiada pelas feministas liberais que viam no mercado da beleza possibilidades de brincar ou de fazer com que o corpo da mulher corresponda ao que ela deseja dele, possibilidades estas que estão à disposição das mulheres, que ela pode escolher de maneira livre, autodeterminada. A escolha de aderir a essas práticas seria, portanto, uma forma de exercício da capacidade de escolha, da agência feminina e do empoderamento da mulher.

A crítica feminista liberal, afirma Jeffreys (2005), ataca as ideias radicais acusando-as de vitimismo: afirmar que as práticas de beleza não eram escolhidas livremente pelas mulheres significava negar sua agência e tratá-las como vítimas desempoderadas da dominação masculina.

Não era disso, contudo, que se tratava para as feministas radicais. O que o movimento queria destacar era o fato de que o contexto no qual as decisões são tomadas deve sempre ser levado em consideração.

A visão das feministas radicais a respeito das práticas de beleza é bem representada pela seguinte passagem de Andrea Dworkin:

 

Standards of beauty describe in precise terms the relationship that an individual will have to her own body. They prescribe her mobility, spontaneity, posture, gait, the uses to which she can put her body. They define precisely the dimensions of her physical freedom. And, of course, the relationship between physical freedom and psychological development, intellectual possibility, and creative potential (1974, p. 113).

 

 

Na visão de Dworkin e de Jeffreys, as práticas de beleza são uma perda de tempo além de serem caras (em termos financeiros) e dolorosas do ponto de vista psicológico – pois ferem a autoestima da mulher –, com a possibilidade de serem também dolorosas e/ou incômodas fisicamente.

As práticas de beleza às quais as autoras se referem podem ser exemplificadas pela seguinte passagem de Dworkin:

 

In our culture, not one part of a woman’s body is left untouched, unaltered. No feature or extremity is spared the art, or pain, of improvement. Hair is dyed, lacquered, straightened, permanented; eyebrows are plucked, penciled, dyed; eyes are lined, mascaraed, shadowed; lashes are curled, or false —from head to toe, every feature of a woman’s face, every section of her body, is subject to modification, alteration (1974, p. 113).

 

Para todos os aspectos do rosto e do corpo de uma mulher existe um produto, um procedimento cirúrgico que pode melhorá-lo. Frente ao modelo do corpo feminino perfeito desenhado pelo mercado da beleza e da moda, as mulheres estão sempre insatisfeitas com seus corpos. Deste modo, os corpos femininos reais são tornados permanentemente imperfeitos, o que faz com que as mulheres recorrerem a esse mercado para modificá-los na tentativa permanente e jamais satisfeita de alcançar a perfeição estética.

É no contexto da propaganda desses corpos femininos perfeitos que as decisões das mulheres em se engajarem nas práticas de beleza são tomadas. Esse contexto não é irrelevante para esta decisão.

Este corpo feminino culturalmente dominado e estereotipado consiste em um dos aspectos centrais da opressão da mulher.

Aqui esbarramos em uma questão crucial: o que nos permite adentrar esta área privada da vida da mulher? O seu quarto ou o seu banheiro, onde, todo dia, ela entra e fecha a porta para realizar seus rituais de beleza? O que nos permite abrir a porta e dizer para esta mulher que ela não está sendo livre e exercitando sua agência e o seu poder de escolha nestes momentos, que isso não é empoderamento, mas que ela está, na verdade, realizando a dominação masculina sobre sua psique e sobre seu corpo?

O que nos permite “meter o pé na porta” é o fato de que esta distinção com a qual estamos familiarizados entre o público e o privado deve vir abaixo por representar um dos requisitos da manutenção da ordem patriarcal da nossa sociedade. O fato de que existe uma distinção clara e absoluta entre o público e o privado, que toma o público como político e o privado como não-político, serve ao jogo de interesses da dominação masculina. O que nos permite adentrarmos essas regiões da vida das mulheres é o fato de acreditarmos que o pessoal também é político. Nas palavras de Jeffreys:

 

The feminist critique of beauty starts from the understanding that the personal is political. While liberal feminists tend to view the realm of “private” life as an area in which women can exercise the power of choice untrammelled by politics, radical feminists such as Dworkin and MacKinnon seek to break down the public/private distinction which, they argue, is fundamental to male supremacy (2005, p. 10).

 

O resultado da separação tradicional entre o privado e o político é o fato de que as práticas de beleza acabam sendo vistas como naturais, seja por serem determinadas biologicamente, seja por fazerem parte da própria estrutura da psique feminina. Elas não são vistas como socialmente determinadas, como políticas. Elas ficam fora do terreno político, longe dos olhos da sociedade e permanecem inquestionáveis e inalteradas. Nas palavras de Okin: “a distinção liberal existente entre público e doméstico é ideológica no sentido de que apresenta a sociedade a partir de uma perspectiva masculina tradicional” (OKIN, 2008, p. 315), pois reforça o domínio masculino no âmbito privado, que consiste na regulamentação da vida da mulher e dos filhos de um homem, pai de família. E, mais do que isso, exatamente pelo seu caráter historicamente não-político, esta divisão entre os âmbitos público e privado praticamente impossibilitou que a dominação masculina no domínio doméstico, sofresse alguma forma de crítica política e resistência coletiva.

Okin (2008) afirma que os termos público e privado não são isentos de ambiguidades. O público pode significar tanto o Estado quanto a vida não-doméstica e o privado pode significar a sociedade ou a via doméstica. Não é o objetivo do presente trabalho se aprofundar nessa discussão, o importante para nós é que a família e a vida íntima ou doméstica são consideradas paradigmaticamente privadas e é nesse âmbito que circula nossa discussão a respeito das práticas de beleza.

Tendo em vista as questões acima mencionadas, percebemos que não só é admissível, mas necessário interferir politicamente no domínio da vida privada.

Estamos afirmando que o âmbito da vida privada é de fundamental importância para que possamos compreender a opressão das mulheres pelos homens. Esse domínio é assegurado por uma série de práticas que moldam o comportamento de homens e mulheres de modos bastante diferentes. Diferença esta necessária para que se estabeleça a dominação de um sexo sobre o outro. As práticas de beleza estão dentre as principais práticas que asseguram essa diferença.

 

Western culture is founded on the notion of sexual difference: the idea that there is an essential difference between men and women, expressed in the behaviours of masculinity and femininity and their attendant practices. It is so dominant and all pervasive, allowing little place for alternatives, that the idea that women can positively “choose” the practices which express this difference makes little sense (JEFFREYS, 2005, p. 20).

 

Essa diferença é reproduzida no domínio privado. A mulher já aparece para a sociedade dotada de todos os comportamentos que a diferem do sexo masculino. Essa diferenciação, invisível socialmente, que distingue os sexos é essencial para a dominação masculina. Elas criam a realidade física e psíquica mais imediata do que significa ser uma mulher e a diferenciam da outra metade da espécie humana.

O que torna esse processo de diferenciação invisível para a sociedade é precisamente o fato de que ele é feito no mais íntimo do domínio privado, na relação de uma mãe com a sua filha. Longe inclusive, dos indivíduos do sexo masculino que habitam sob o mesmo teto.

 

The technology of beauty, and the message it carries, is handed down from mother to daughter. Mother teaches daughter to apply lipstick, to shave under her arms, to bind her breasts, to wear a girdle and highheeled shoes. Mother teaches daughter concomitantly her role, her appropriate behavior, her place. Mother teaches daughter, necessarily, the psychology which defines womanhood (DWORKIN, 1974, p. 114).

 

Essa diferença entre a masculinidade e a feminilidade especificamente no que diz respeito às práticas de beleza, criam o que ficou conhecido como o “período de serviço sexual” (JEFFREYS, 2005, p. 23) que a mulher deve prestar ao homem. Jeffreys (2005) compara este serviço sexual que a mulher deve prestar ao homem com o serviço militar obrigatório ou com a corveia, um imposto existente durante o feudalismo que consistia em períodos de trabalho não pagos que eram obrigação do servo para com o senhor feudal. As práticas de beleza estão à serviço do prazer sexual dos homens. Essas práticas de beleza fazem com que as mulheres, diferentemente dos homens, “habitem a categoria do sexo” (JEFFREYS, 2005, p. 23). O que significa dizer que as mulheres habitam a categoria do sexo? Que as mulheres não existem socialmente, ou não são percebidas socialmente fora desta categoria. Os homens, por outro lado, são muito mais do que o sexo. Não são avaliados a partir desta categoria e não se encontram presos a ela. Isso fica mais evidente quando a mulher se recusa a ocupar o lugar que lhe é destinado e ela se rebela contra as pressões sociais sofridas pelo seu corpo e a sua mente. Enquanto que, para os homens, não existem castigos tão severos ou olhares tão reprovadores no caso deles não aparecerem como seres para serem desfrutados sexualmente.

Com todas estas desvantagens, por que as mulheres continuam aderindo às práticas de beleza?

Podemos vislumbrar dois principais motivos para a manutenção dessas práticas. Em primeiro lugar, existe o fato de que elas são extremamente enraizadas em nossa sociedade, o que faz com que se tornem difíceis de serem mesmo percebida por muitas mulheres, que dirá questionadas. Além disso, elas são politicamente reproduzidas nas esferas privadas, ainda pouca acessíveis, das vidas das mulheres e começam cedo, desde a mais tenra infância, confundindo-se assim, com a própria natureza feminina ou mesmo dando origem a esta dimensão que conhecemos como feminilidade.

Em segundo lugar, devemos considerar um fenômeno para o qual Jeffreys (2005) chama nossa atenção: a síndrome social de Estocolmo.

A síndrome de Estocolmo fala do comportamento do refém de um sequestro que, no lugar de demonstrar a reação ao sequestrador que seria esperada de uma vítima em relação a um agressor – de revolta, rebelião e ódio –, cria laços com ele. A ideia é a de que tal laço que cria uma identificação dos interesses da vítima com as do agressor, vem da ameaça real à vida do sequestrado e funciona como uma defesa contra a ira do sequestrador. Esse laço é favorecido pelos momentos, que muitas vezes existem, nos quais o agressor demonstra alguma bondade em relação à vítima. Esses pequenos atos favorecem o aparecimento desses laços e os reforçam.

A psicóloga Dee Graham (citada por JEFFREYS, 2005) estende o conceito principal da síndrome de Estocolmo para acomodar a acomodação da mulher à categoria da feminilidade em uma sociedade dominada por homens, na qual a mulher está sujeita à violência masculina. Como afirmamos anteriormente, não se adequar aos padrões de comportamento esperado das mulheres, especialmente em relação à sua sexualidade, tem consequências negativas para a mulher. Assim como ocorre nos casos das vítimas da síndrome de Estocolmo, a criação desse vínculo é reforçada pelas relações pacíficas entre homens e mulheres que permeiam a vida cotidiana em sociedade.

É o medo da retaliação que torna, inclusive, muito difícil apontar e combater essa forma de dominação feminina.

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