Para escrever é preciso estar bem?

Estou passando mal. Acho que estou com febre e estou com muita dor no corpo (não é dengue! Acho que é a rebarba do estresse e cansaço da semana).

Eu fiz um curso de escrita criativa há um tempo na Academia Internacional de Cinema (AIC) e um dos professores disse que não escrevia quando estava mal. Tudo bem que ele disse mal no sentido de estar triste. Estávamos discutindo estas questões: o artista precisa ser um amargurado, ressentido com o mundo? A criatividade brota dos estados de mais profunda melancolia?

Ele disse que não. Que ele particularmente só conseguia escrever quando estava bem, feliz.

Para mim, depende. Eu escrevo nos dois estados. Principalmente em se tratando da prática da escrita terapêutica, faz sentido escrever quando estamos tristes.

Mas olha… Isso que ele falou certamente vale para quando se está mal de saúde. Porque eu demorei umas três horas antes de conseguir finalmente tirar alguma coisa dessa minha cabeça hoje.

Os Últimos Anos do Suicídio Refletido.

 

Capítulo VI

 

Chegamos então, ao século XVIII. Século da razão e do romantismo, aqui encontramos aliados o suicídio filosófico, retomando o caráter reflexivo do ato, e o suicídio romântico. O Século das Luzes será decisivo no debate sobre o tema, pois aqui se opera uma transição definitiva no caráter das reflexões acerca do suicídio. Do século XIX em diante, essa multiplicidade de opiniões até agora apresentada cederá seu lugar às explicações médicas, sociológicas e psicológicas. (Ainda se trate de uma multiplicidade de visões. Acho que isso não ficou claro. Na época, eu acreditava que a dominação dessas abordagens “científicas” do suicídio empobrecia a discussão. Mas não sei mais se se trata disso não. As ciências humanas não sabem o que fazer com o suicídio).

Em 1700, John Adams, em seu Essay Concerning Self-Murther, tentará firmar uma oposição ao ato dentro do debate filosófico. Mas será para ele muito mais difícil sustentar sua oposição levando em conta aspectos puramente humanos do que foi para Donne defender o ato tendo em vista a vontade de Deus. As reflexões sobre a natureza humana não alcançam nenhum aspecto que permita dizer que o fato de dar fim à própria vida a ela se opõe. Pelo contrário, a liberdade soberana do homem racional coloca-o na posição de senhor de si, responsável pelos próprios atos e apto a tomar qualquer decisão que o pensamento, seja este guiado pela razão ou pelo sentimento, lhe aponte. No entanto, aquele dentre seus argumentos que se refere à dimensão prática da vida humana é o que merece aqui algum destaque. Para ele, “permitir o suicídio equivaleria a destruir todas as leis humanas, dado que a pena de morte, que é a sanção mais grave para os que violam a lei, não teria grande força” (op. cit., p.238). (É, mano, perder o recurso á transcendência te suas dificuldades. Estava na hora dessas discussões começarem a dominar o cenário filosófico e científico. E para você? É possível uma moral absolutamente humana? Ou é absolutamente necessário um conceito transcendental para que não nos destruamos uns aos outros?)

Este mesmo século comporta o lançamento do livro Sofrimentos do Jovem Werther, que torna Goethe o símbolo do suicídio romântico. O livro teria inspirado tantos jovens a cometerem suicídio que sua leitura chegou a ser proibida em alguns lugares. Minois observa, contudo, que Werther não cria uma moda, mas “é antes a expressão de um clima a que dá uma forma” (op. cit., p.331). Goethe, no entanto, parece se incomodar com essas mortes a ele atribuídas e em vários momentos posteriores se defenderá de tais acusações. (Esse aqui é exatamente o ponto daquela discussão do efeito Werther. Eu já falei sobre isso em outro texto).

Por fim, Madame de Staël, também pensadora romântica, considera, a princípio, três causas para o suicídio: por amor, o suicídio filosófico e o do culpado, legitimando-os. Em 1813, preocupada com o que alguns poderiam considerar uma apologia ao suicídio, escreve o ensaio Réflexions sur le Suicide, que representa um dos marcos da transição que ocorreu entre os séculos XVIII e XIX, no qual a autora realiza uma análise neutra e equilibrada da forma mais exaustiva possível. Finalizando por uma exposição relativa à inclinação ao suicídio dos indivíduos de diferentes sociedades, como, por exemplo, a afirmação de que seriam os ingleses os mais suscetíveis ao ato; ainda que uma pensadora romântica, a análise sociológica é demarcada e abre espaço para diversos estudos que se seguem a este. (Eu não falei nada neste trabalho sobre isso, apesar de vontade não ter me faltado, mas existe uma querela entre alguns autores que atribuem a esta pensadora o título de mãe da sociologia, pois ela escreve um tratado cobre suicídio, abordando aspectos sociológicos, alguns anos antes de Durkheim. Mas é ele que fica famoso e não ela…).

Por fim, se no final do século XVIII, “Os suicidas filosóficos seguem para o nada, os suicidas românticos para o céu e os suicidas populares para o inferno.” (op. cit., p.342), nos séculos posteriores isso já não será mais uma questão. (Viram que eu caguei no final, certo? Já tinha dado o tamanho exigido, eu já devia estar revendo o teto na madrugada do dia da entrega e fazendo os últimos acréscimos e correções… Enfim… Eu ainda teria todo o século XX para abordar. Eu cheguei a estudar o tema. Eu só não tive paciência para terminar de escrever o trabalho. Até eu ter a oportunidade de publicá-lo aqui no blog, ele nunca tinha sido lido depois da entrega, há uns cinco anos. De qualquer maneira, foi muito bom ter relida esse trabalho e relembrado da experiência da pesquisa e de tudo que envolveu o meu estudo do suicídio ao longo da faculdade. Quem sabe eu retomo o tema?).

 

 

Depois de ontem.

Eu sempre vivenciei intensas oscilações do humor. É um traço bipolar (não estou falando do transtorno psicológico, apenas de uma característica pessoal) que eu tenho. Eu experimento uma forte empolgação e uma intensa felicidade, daí acontece alguma coisa (como aquele incidente ontem no metro, sobre o qual você pode ler aqui) que me joga para baixo. Muito para baixo. Eu entro numa bad terrível.

Já notei esse funcionamento há alguns anos.

Eu acho que depois do episódio de ontem, eu corri o sério risco de entrar nesse estado mais deprimido.

Mas isso não aconteceu. Quando eu terminei de postar ontem no blog o texto e conversar com meu marido, eu já estava recuperada.

O processo de pensamento foi aquele descrito no texto. No lugar de focar no fato de que eu havia abaixado a cabeça e desviado, procurei explicações e formas alternativas de olhar para o que aconteceu. Além disso, conversei com uma pessoa de fora (meu marido) que me ouviu e não jogou lenha na fogueira (sim, porque tem gente que te vê irritada e alimenta seu ódio. Essa pessoa não quer te ver bem). Para completar, eu relatei o acontecido em um texto, o que foi catártico para mim.

Essa foi a tríade do equilíbrio do meu humor: pensar em explicações alternativas no lugar de focar no que me aborreceu, conversar com uma pessoa querida que se importa comigo e realizar uma atividade prazerosa para aliviar a tensão.

Bom, fica a dica. Vale a pena tentar da próxima vez que você sair dos eixos!Patrulha da escada do metrô. 

Patrulha da escada do metrô. 

Eu não gosto de utilizar a Saída A do metrô de Ipanema. As escadas rolantes estão sempre com defeito.
Mas esta é a entrada que fica mais próxima do local onde trabalho. Com pressa, foi para lá mesmo que eu fui, pedindo a Deus para as escadas rolantes estarem todas funcionando, pois eu trabalho com um saltão enorme. Nossa! Como seria difícil ter que descer as escadas com este salto e todo peso que eu estou carregando.
Mas aquelas das quais eu precisava, as que desciam, estavam paradas.
As escadas para subir estavam todas funcionando, eu notei, infelizmente.
Bom, estou eu descendo a escada normal segurando no corrimão. Segurando no corrimão esquerdo. Eu estava, portanto, do lado esquerdo da escada.
Quando eu uso a escada rolante, eu sempre fico na direita para dar espaço para quem quiser passar. Mas quando se trata de subir e descer escadas normais, eu nuca reparei que tinha lado certo. Especialmente às 22h, quando não tem niguem passando.
Mas eis que me vem um sujeito, homem, alto, andando rápido e olhando distraidamente para frente, sem me notar, aparentemente. Ele começa a subir as escadas normais, apesar da escada rolante de subir, como eu já disse, estar funcionando perfeitamente. Quando ele pisa no primeiro degrau, eu já estou no meio da minha descida. Mas ele começa a subir pelo mesmo lado que eu estou descendo. Ainda assim, eu continuo. Pensei: “Meu deus, me ajuda agora. Faz esse homem desviar”!
Ele não desvia.
Ele levanta a cabeça quando chegamos próximos um do outro e diz: “É pela direira”.
Eu sorri e desviei.
Imediatamente me subiu uma raiva e um sentimento intenso de tristeza.
Não sou ingênua. Eu entendo que essas coisas não acontecem do nada. Tem um motivo para esses sentimentos. E comecei a repassar a situação na minha cabeça.
Ele deveria ter desviado. Eu estava descendo a escada por aquele lado antes dele começar a subir.
Eu desconheço essa regra de lados para subir ou descer em escadas normais, fora de horário de pico ainda por cima.
Ele foi covarde e não me encarou desde o início, quando eu já o estava observando. Só olhou no meu rosto no último segundo.
Mas nada disso importa tanto quanto o fato de que eu desviei.
Por que eu desviei?
Não tem a ver com esse cara, nem com essa situação desagradável. Isso é uma migalha da minha vida.
Eu desviei porque lá no fundo eu tenho medo de defender a minha posição para pessoas que eu não conheço. Desviei porque acho que os outros vão me sempre me ver como estranha, errada, e feia, e boba, e chata.
Então, quando esse cara falou que eu deveria estar na direita, aceitei e fui, resignadamente, para o meu canto. E depois de ter me subestimado mais uma vez eu senti raiva e tristeza.
A coisa boa dessa história, é que entender verdadeiramente esses mecanismos afeta a maneira como nos sentimos e nos comportamos. Portanto, no lugar de permanecer amargurada, remoendo a situação e chegar em casa tratando mal o meu marido, eu escrevo o que me aconteceu, já me sentindo aliviada, e pensando que o sujeito poderia ter uma grave dificuldade para lidar com mulheres. Essa grave dificuldade faz com que ele seja extremamente rígido e inflexível perto de uma. Como resultado dessa inflexibilidade, ele se agarra às suas regras e padrões preestabelecidos para poder lidar com aquela experiência devastadora que foi ter que interagir comigo.
Enfim recuperada do estresse, subo as escadas da estação Afonso Pena pelo lado direito; desta vez como um experimento, só para ver se ia dar problema de novo, e reparo que tem um grupo de adultos conversando e subindo a escada exatamente atrás de mim. Ou seja, não consegui saber se a regra vale mesmo e aqueles ali eram vândalos como eu, ou se o cara lá realmente era um exagerado.

PS: ao chegar em casa meu marido me disse que essa regra é implícita por causa do trânsito. Eu não saberia. Jamais dirigi e não poderia jamais fazer isso por causa do problema de visão. Ainda que isso seja uma convenção, eu não mudo uma palavra do meu texto.

Do Renascimento ao Século XVII d.C. Parte III

Capítulo V

 

David Hume trará em seu trabalho algo que mais parecerá uma defesa de toda e qualquer ação do homem, à medida que, segundo ele, todas as suas ações são realizadas de acordo com as leis imutáveis que regem a natureza. Leis que teriam sido criadas por Deus e que garantiriam o seu controle indireto sobre todos os eventos.

 

A providência divina não aparece imediatamente em cada operação, mas tudo governa por aquelas leis gerais e imutáveis estabelecidas desde o início dos tempos. Todos os eventos, em um sentido, podem ser ditos ações do todo-poderoso, todos procedem daqueles poderes com os quais ele dotou suas criaturas. Uma casa que desaba por força de seu peso não é levada à ruína por sua providência mais do que o é uma casa destruída pelas mãos dos homens (…). Quando as paixões incitam, quando o juízo dita, quando os membros obedecem, tudo isso é operação de Deus e, por esses princípios animados, assim como pelos inanimados, ele estabeleceu o governo do universo (Hume apud Puentes, 2008, p.112).

 

Supor que o homem pudesse fazer algo que fosse contra essas leis seria supor que, em alguma medida, ele possuiria poderes e faculdades que não aquelas que seu criador o concedeu. Outro exemplo que poderia ser analisado nesse sentido e que se encontra no quadrante das questões que se impunham a David Hume era o da vacinação. A sociedade francesa da época, por uma superstição religiosa, era levada a ir contra as campanhas de vacinação, uma vez que imaginavam estar indo contra a providência divina ao prevenirem uma doença. Hume pergunta então, por que não seria igualmente ilícito construir casa, abrir estradas e etc. (Minois, 1998, p. 312-313).

Deste modo o suicídio não seria contrário à lei de Deus. Quanto a ele ser contrário à sociedade, Hume afirma que nos foi dada também por Deus a capacidade de chegar a este veredicto. Através dos princípios que ele fez serem característicos da natureza humana, como, por exemplo, o arrependimento e a vergonha. No entanto, segundo o filósofo, o suicídio não seria um mal para a mesma, ao passo que o suicida poderia, no máximo, deixar de fazer um bem para a sociedade, nunca lhe fazer um mal. Por fim, ele também não poderia fazer um mal contra si mesmo, pois um indivíduo só deixaria a própria vida caso ela tivesse se tornado apenas um infortúnio indigno de ser vivido. É indispensável ressaltar, no entanto, que Hume se recusou a publicar este capítulo de sua obra, e parece, segundo Minois, que isto se devia a uma autocrítica, que o levara a tomar seus argumentos por fracos ou banais (op. cit., p. 314). (Eu corri atrás desse tratado para lê-lo. Não estou segura de ter encontrado a versão autêntica do autor. Esse deus que ele apresenta na citação é esse deus das leis naturais. Leis que teriam sido criadas no início dos tempos e que regem e regirão sempre todos os eventos. O homem é totalmente naturalizado aqui, seus emoções, desejos e sentimentos, funcionando como leis mecânicas, me parece. Por isso seriam também determinadas por essas leis eternas e imutáveis. Talvez seja esse o ponto de fraqueza do argumento. Isso resultaria em um potente determinismo. Complicado).

Por outro lado, a título de exemplo, pode-se mencionar uma provocação feita por Berkeley quando este diz que são os “pequenos filósofos” aqueles que se põem em defesa da morte voluntária e aponta com desprezo o fato de não terem coragem para aplicarem suas ideias e se matarem (op. cit., p. 238). (Aeewww! Maior indiretaaaaaaa! Gente, os filósofos diziam umas baixarias em suas discussões intelectuais, eram tão irônicos na discussão. O piro é que eles escreviam isso em seus livros. O mais escrachado? Karl Marx, sem dúvida. Falava atrocidades de seus oponentes. Muito hilárias certas passagens de seus textos).

Não se deve deixar de considerar, contudo, a reflexão política que pautará muitas das discussões filosóficas da época. A recente formação dos Estados e o grande número de pensadores que se dedicaram ao tema do governo colocaram o suicídio em um lugar peculiar de denúncia às condições da vida social. (Esse é um ponto muito sério. Podemos prevenir o suicídio com a melhoria das condições sócias da existência?). Uma consideração a ser apresentada é a de Rousseau. Sua perspectiva é exposta em um romance de sua autoria que trazia várias de suas ideias. Aquelas que diziam respeito ao suicídio eram enunciadas por dois de seus personagens. Pela voz de um deles, Rousseau apresentava argumentos segundo os quais seria lícito o suicídio para, na voz do outro, refutá-los, apontando a falta que este representaria para os seus familiares, a sua comunidade e, por fim, à sociedade como um todo. A oposição de Thomas Hobbes avança no mesmo sentido. Esses autores passaram a considerar o suicídio como uma falta, sobretudo, para com a sociedade, acrescentando a estes argumentos uma novidade: o fato de considerarem ser o dever do Estado e de seus governantes assegurarem uma vida que valha a pena. (Então, seria dever do Estado assegurar as condições mínimas de uma boa vida). Seus argumentos representaram uma crítica à condição da vida social da época, na medida em que, para eles, o necessário seria prevenir as causas do suicídio e não punir o ato. (E as causas do suicídio, para estes autores, teriam raízes sociais. Essa é era uma ideia absolutamente nova na época).

A respeito da ambiguidade dos posicionamentos filosóficos, ela pode ser representada, de um modo geral, por La Mettrie: “A morte é o fim de tudo; depois dela, repito, há um abismo, um nada eterno; tudo está dito e tudo está feito; a soma dos bens e a soma dos male é igual; já não há mais cuidados nem uma personagem a representar; a farsa está concluída” (La Mettrie apud Minois, 1998, p.277). Mas, em outro momento, ele afirma: “Qual será o monstro que, numa dor momentânea, arrancando-se da sua família, dos seus amigos e da sua pátria, não tem como objectivo libertar-se das penas dos deveres mais sagrados?” (op. cit., p. 294). Acerca desses posicionamentos, cabe considerar:

 

(…) nestas condições, porque se deve ainda hesitar? A posição dos filósofos revela-se finalmente mais ambígua. Manifestando pouco gosto pelo suicídio e retirando à morte o seu caráter medonho, apenas podem justificar o desejo de viver através de um balanço positivo da existência, o que não é o caso de todos (Minois, 1998, p.277).

 

(Ok. Eu acho que essa parte não está muito clara. Qual é a ambiguidade? O suicídio, nesta época, séculos XVII e XVIII, passa a ser discutido por fora da esfera religiosa. Céu e inferno não estão muito presentes na discussão filosófica. A morte começa a perder seu caráter medonho, como diz a citação. Começa a se desfazer aquele ar de pecado que dominou a visão acerca do ato na Idade Média. Além disso, a morte passa a ser louvada pelos artistas, romantizada. Por conta dessa mudança na maneira de encarar a morte e o suicídio, se coloca a pergunta: se a morte não é o maior dos horrores, por que continuar vivendo quando o saldo da existência é negativo?). Hobbes, Rousseau, Voltaire, Holbach e outros, contudo, dão um novo desfecho as essas ambiguidades de posicionamento. Eles são aqueles que escolhem o ser, mas na condição de que este ser se dê uma maneira digna, uma vez que este “vale de lágrimas” se torne em uma permanência cheia de alegrias (op. cit., p. 259).

Esses questionamentos filosóficos impõem grandes dificuldades aos religiosos que não podem se alinhar nem àqueles que escolhem o ser, nem àqueles que escolhem o não ser, pois “tornar a passagem nessa vida muito agradável é pôr fim à aspiração da salvação eterna no além, que é o motor da moral; autorizar o homem a dispor da sua vida é frustrar o plano divino e suprimir assim as indispensáveis provações que nos permitem alcançar o céu” (op. cit., p.259). (Bizarro. Mas a religião é exatamente assim. Ela tem que manter os fiéis naquela tensão exata entre o desespero absoluto que leva uma pessoa a tirar a própria vida e a felicidade tranquila e despreocupada que faz com que eles esqueçam de temer a deus).

Enfim, além das posições filosóficas que emergem neste período, começa a ocorrer, com os avanços da medicina, um processo de secularização do suicídio e com ele, também, um processo de desculpabilização do suicida, que passa a ser considerado um doente.

Em meados do século XVII, o estado melancólico é re-significado, afastando-se do entendimento medieval e do caráter reflexivo atribuído pelos romanos. Ele passa a ser entendido como uma configuração psicológica do indivíduo. Dentro deste quadro cabe ressaltar a concepção que Robert Burton traz em seu tratado de 1621 Anatomy of Melancholy (op. cit., p. 126), na qual a melancolia impregnaria a natureza de alguns homens, fazendo-os predestinados a um temperamento sombrio. A mudança operada traduz-se pelo fato de que “O desespero é uma noção moral, é um pecado, mas a melancolia é uma noção psicológica, é um desequilíbrio do cérebro” (op. cit., p.125). (Com a ideia de melancolia ocorre a mesma coisa que eu quero mostrar neste trabalho em relação ao suicídio: Não existe uma essência do estado melancólico. Este é um conceito que já foi preenchido por diferentes discursos, que já teve, por horas, seu significado completamente deslocado. Acabamos de mencionar isso. A melancolia foi deslocada para significar possessão demoníaca no período medieval e agora ela passa a ser entendida cientificamente, o que também difere do entendimento antigo, mais racional). Contudo, não se deve perder de vista que o caráter ainda mágico e fantasioso das explicações científicas da época. No momento de seu surgimento, elas não produzem de imediato o ocaso das explicações religiosas. E, principalmente, elas não surgem com um apelo tão grande junto às massas. (Claro, trata-se de um longo processo que se estende ao longo dos séculos seguintes).

Quanto ao tratamento designado para estes homens, ele seria de caráter psicossomático e consistiria na tomada de providências simples: ouvir determinados tipos música, tomar banhos de sol, ter uma vida sexual equilibrada, dedicar-se a estudos que absorvam o espírito, mas sempre de forma moderada, dentre outras atividades deste gênero. (Ainda hoje isso aqui é válido). Um último ponto a se destacar no posicionamento de Burton, que ainda manterá unida a discussão médica e a discussão filosófica da época, é a sua crítica à organização socioeconômica, que ele aponta como uma das causas do agravamento dos estados melancólicos e uma das principais causas dos transtornos psíquicos. (Havia um movimento de crítica social intenso pairando no ar daquela época). Encontramos novamente a ideia do suicídio como uma acusação da sociedade incapaz de assegurar a felicidade de seus membros que preferem o desconhecido a um mundo que, para eles, não valia a pena face aos males que o configuravam.

No decurso deste processo de secularização do suicídio o suicida passa a ser encarado cada vez mais como vítima dos aspectos que o determinam biológica, social e psicologicamente, abandonando o lugar da culpa. Mais tarde, ainda no âmbito da medicina, encontraremos outros pontos de explicação de um tal estado, que enfraquece a alma e torna inconsistente o caráter: a explicação do lunatismo e os diagnósticos de hipocondria e histeria. O primeiro tema levantava reflexões acerca da influência da lua no comportamento das pessoas e na própria fisiologia humana, considerando que em determinadas fases da lua tal ou tal pessoa se torna mais melancólica e, em outras, mais agressiva e assim por diante. (Isso existe até hoje no senso comum. Acredito que é por efeitos do pensamento dessa época sobre o lunatismo que até hoje chamamos certas pessoas de lunáticas). O segundo tema destaca o Treatise of Spleen and Vapours, or Hipochondriacal and Hysterical Affections, publicado em 1725 de Richard Blackmore, que discursará sobre tais patologias e dará a elas um local de bastante relevância (op. cit., p.300). Na hipocondria, o paciente usualmente atentava contra sua vida na tentativa de escapar do que ele acreditava ser o estado irreversível de dor e sofrimento no qual ele se encontrava. Esse estado (existente unicamente na imaginação dos indivíduos) consistia na presença de uma doença grave e incurável.

Forbes Winslow, em seu livro Anatomy of Suicide, publicado em 1840, exemplifica inúmeros outros casos de suicídio tidos como decorrentes de males físicos. Ele expõe em seu estudo (que possui também uma parte histórica), as perspectivas de sua época a respeito do tema. O autor inicia o capítulo VIII de seu livro, que versa sobre as causas físicas do suicídio, dizendo:

 

(…) as causas físicas que são comumente consideradas produtoras de disposição suicida – o clima, as estações, a predisposição hereditária, danos cerebrais, sofrimento físico, doenças do estômago e do fígado complicadas pela melancolia e a hipocondria, insanidade, secreções suprimidas, intoxicação, vício anti-naturais (…)[1] (p. 130).

 

O foco das disputas analisadas pelo autor será o modo como os fatores físicos interagem com os psicológicos e com o meio que cerca o paciente. As formas de tratamento também foram diversificadas. Um paciente que atentava contra a própria vida poderia ser tratado com transfusão sanguínea, internado nos hospitais gerias, submetido a lavagens intestinais ou a sangramentos (quando se realizavam cortes no paciente e deixava-se escorrer quantidades determinadas de sangue). O que se pode verificar de comum nos autores da medicina e da psiquiatria emergente nesse período, é a busca pelo que havia de determinante físico no ato de tirar a própria vida. (E esta é a era dos tratamentos desumanos horríveis que vemos na história da medicina. Nossa! Eram muitos tratamentos monstruosos. Interessante porque hoje em dia agente sabe que certos remédios fazem você passar mais mal do que a doença em si. Esse é um dos pontos da luta atual contra a utilização dos remédios psiquiátricos. Existem profissionais que afirmam que esses remédios fazem mais mal do que bem. O tratamento, nessa época, já era desse tipo, do tipo que faz mais mal do que bem. Às vezes, o paciente sobrevivia à tentativa de suicídio, mas morria do tratamento. Isso gera um grande dilema ético com relação ao tratamento que está vivo até hoje, como eu falei. Basta pensar na questão do suicídio assistido).

Então, em um certo sentido, o que se verifica a partir daí é a banalização da ideia de morte voluntária. Isso pode ser a princípio depreendido dos motivos que surgem nessa época como a causa desse tipo de morte e até mesmo com o início dos relatos sobre aqueles que chegam mesmo a simular um suicídio. Os suicídios por honra passam a ser cada vez menos numerosos, os por motivos econômicos passam a ocorrer cada vez mais, surgem os suicídios por vingança, os suicídios como instrumento de chantagem, enfim, o que se verifica é que esta atitude se torna parte das relações sociais, como mencionado há pouco. Seu caráter de denúncia e de acusação o torna cada vez mais um meio de chantagem e de pressão nas relações interpessoais. Corrobora para essa afirmação o surgimento dos bilhetes dos suicidas.

 

O suicida tende assim a inscrever o seu gesto numa certa lógica, pretende dar-lhe um sentido e um prolongamento para que seu sacrifício tenha consequências imediatas no ambiente ou na sociedade inteira se se trata de um motivo mais geral. Mas essa prática inscreve-se mesmo numa tentativa de racionalização do ato (op. cit., p. 356).

 

(Eu nunca tinha parado para pensar sobre isso antes. Até o período da alfabetização das populações não tinha essa de bilhete de suicídio. Hoje em dia, a gente fica ainda mais devastado quando aquele que se mata não deixa um bilhete, uma carta, qualquer coisa. A nossa experiência atual do suicídio ainda é essa de querer inseri-lo em uma lógica que se encaixe na vida do suicida). Essa lógica na qual é inserido o suicídio é uma lógica humana, que sustenta as causas do ato no âmbito da motivação consciente; o que está em jogo é a manifestação do indivíduo ele mesmo. É claro que, a partir destas, inúmeras leituras para o ato serão propostas. Deste modo a discussão a respeito da morte de si começa a se fazer em campos cada vez mais diversificados e não somente no que tange a moral.

A imprensa, por sua vez, teria um importante papel a desempenhar nesse momento, pois é frequente a publicação destes bilhetes nos jornais, juntamente com a história da vida do suicida, que é narrada muitas vezes de maneira romantizada ou escandalizante.

Dentre todos esses debates, cabem agora (breves) considerações acerca da jurisprudência com relação ao ato de matar-se a si mesmo.

Aos poucos, o direito vem sendo cada vez menos influenciado pela religião e cada vez mais pelas concepções filosóficas e, posteriormente, pela medicina. Deste modo, observa-se um recuo crescente da condenação do suicídio.

Segundo Minois, a cada momento o processo de julgamento de um caso de suicídio se torna mais demorado e criterioso. Em alguns casos chega a se verificar a duração de mais de dois anos para que o processo se conclua; durante esse tempo o corpo permanece preservado para que se proceda, ao final do julgamento, a pena ou o enterro. O processo constitui uma narrativa detalhada da maneira pela qual ocorreu a morte, das condições em que foi encontrado o morto, dos testemunhos e, por fim, o veredicto, seguido (quando for o caso) do estabelecimento da pena a ser executada. Não se pode deixar de observar que esse tipo de procedimento gera situações até mesmo absurdas, que vão desde a tentativa de dissimulação da família da ocorrência da um suicídio à presença do cadáver em putrefação às audiências de seu julgamento[2]. (Isso mesmo. Existem relatos de corpos de suicidas que passaram até dois anos preservados em sal grosso, período que durou o julgamento. E o corpo, quando necessário, era levado ao tribunal).

Por conta desses e outros fatores, como no caso referido de demora da conclusão do processo, a exposição, nas praças das cidades, de cadáveres em tal estado, começam a ocorrer queixas contra a exposição dos mesmos, o que, além de causar repúdio moral, ainda representava um prejuízo aos ares da cidade e à saúde local (op. cit.,).

Nesse sentido, o higienismo tem um papel importante a desempenhar, uma vez que os conhecimentos da medicina passam a influenciar não só no direito (demanda dos pareceres médicos), mas também na própria organização das cidades (necessidade de ventilação dos grandes centros urbanos, higienização dos espaços públicos, determinação do modelo familiar saudável e das obrigações nos cuidados com as crianças). O tratamento dos suicidas não foi deixado de lado, passou a ser um caso de saúde pública.

 

 

[1] Tradução livre realizada pela autora.

[2] A exposição do processo de um desses julgamentos é fornecida por Minois (1998, p.348-349)

Pintando Mandalas.

 

Até os meus vinte anos, eu odiava beterraba. Cozida, ralada… Não fazia diferença.

Certa vez, eu, minha mãe, minha avó e meu avô fomos passar uma semana no Hotel Fazenda Raposo. Esse hotel fica em Raposo, uma cidade com fontes de água naturais no norte do estado do Rio de Janeiro. A minha família é de lá. De Cardoso Moreira. Quando minha avó era jovem, ela ficou hospedada nesse mesmo hotel com meu bisavô e a família. Nós fomos lá para reviver essa experiência com ela quase cinquenta anos depois.

Eu amei o hotel. Tinha sauna (estava friozinho na época), fontes com vários tipos de água diferentes para beber se banhar (umas águas com gosto amargo que eu gostava bastante), muita comida da fazendo, de interior.

Rotina simples.

Acordar, ir até a fonte beber um copo d’água em jejum, tomar aquele café da manhã farto, com queijo e leite frescos, pão macio com manteiga de fabricantes da região, doce de mamão. Depois uma caminhada para ver os bichos, ouvir as histórias de boi brabo que minha avó contava, as epopeias de caminhoneiro do meu avô e aí já era hora do almoço. Nas tardes, marasmávamos na beira da piscina, bebíamos mais água da fonte, cochilávamos na sauna. O café da tarde tinha bolo. Bolo bom. De cenoura de milho, de aipim. Aí era voltar para o quarto, tomar banho, porque de noite às vezes tinha música no hotel ou na cidade, a gente curtia um pouco e voltava para o jantar. De volta ao quarto eu lia até dormir. Eu poderia viver uma vida inteira nesse ritmo homogêneo e suave.

Foi uma experiência singular em muitos aspectos.

Eu me lembro muito bem das refeições. Parecia que estávamos em um rodízio. Os garçons passavam de mesa em mesa perguntando aos poucos gatos pingados hospedados naquela época do ano: Mais arroz? Um feijãozinho? Almeirão talvez? (Ou que é isso, moço? É bom e saudável. Quero!). Quer mais carne? Beterraba? E lá estava ela: a tal da beterraba cozida. Eu disse sim.

Sim e foi um sim bem dito mesmo, sabe? Sem pestanejar.

Olhando para trás, eu imagino que foi justamente a singularidade da experiência que me fez comer aquela beterraba. E eu comi e gostei.

Hoje em dia eu gosto bem de beterraba cozida. Amo aquela que é feita junto com o feijão preto.

Não acho que é uma questão de mudança de paladar; acho que foi realmente uma questão afetiva. Eu ainda não como beterraba ralada, por exemplo. Já experimentei depois dessa viagem e não rolou mesmo. Mas a beterraba cozida, que foi servida lá, já conquistou um espaço no meu estômago emocional. A força da experiência daquela viagem rompeu barreiras. Eu não pensei muito, só disse sim.

Essa experiência é libertadora, amplificadora de horizontes, mais precisamente, e pode ser replicada.

Eu tenho ficado atenta para perceber momentos de grande engajamento emocional e, quando eles acontecem, tenho procurado ficar aberta a novas experiências.

Aconteceu recentemente com isso de pintar Mandalas que estava na moda há pouco tempo. Como um fenômeno pop, eu já torci o nariz.

Mas, durante uma viagem para o spa Maria Bonita, no qual passei uma semana com minha mãe, tivemos uma oficina de pintura de Mandalas e eu resolvi me engajar na atividade. Gostei da experiência. No entanto, como eram Mandalas para colorir e não beterrabas no feijão, tratava-se de uma vivência menos cotidiana e eu teria que correr atrás disso ativamente para continuar tendo a experiência de pintar Mandalas. E eu não fiz isso. Pelo menos não até recentemente.

Nesse meu novo estado de engajamento com diferentes formas de expressão artística, eu lembrei das Mandalas e fui dominada por aquele sentimento bom da viagem. Fui na livraria Leonardo Da Vinci e comprei um livro com várias delas para colorir. Quando comecei a pintá-las com os lápis de cor aquareláveis nos quais investi também, não lembrei do antigo preconceito, mas da boa sensação do spa.

Então eu penso o seguinte: eu não vou mais dizer categoricamente como antes “disso eu não gosto”, “odeio sei lá o quê” ou “Argh”, eu vou pensar mais em termos de “por enquanto eu não gosto muito disso, mas quem sabe no futuro”?

Eu não vou sair correndo atrás de experimentar coisas das quais eu não gosto, me forçando a apreciá-las. O importante é perceber que, episódios que carregam intensidade emocional nos afetam ao longo de nossa vida inteira. Se ficarmos atentos, podemos tirar proveito disso para expandir nossos horizontes.

Você deve estar pensando e eu também pensei nisso; acho que este é justamente o mecanismo psicológica que está por trás daquela exortação popular: “Nunca diga que desta água você não beberá jamais, pois a vida pode te surpreender”. Surpreende mesmo e é bom que seja assim. A única diferença é justamente esta: no ditado popular, isso soa como algo negativo. Era sempre meio que: “Olha… Não fala isso porque você não sabe o que o futuro te reserva. Um dia você vai ser dobrado pela vida e pode acabar sendo obrigada a fazer o que não gosta”. Pode até ser que seja assim. Mas eu te garanto que se passarmos a ver a nossa rigidez emocional de modo menos positivo, se nos mantivermos abertos para a mudança e percebermos que ela é boa, então, quando a vida nos apresentar a oportunidade de beber dessa “água”, vamos tirar o máximo de proveito desta experiência e transformá-la em algo enriquecedor.

Do Renascimento ao Século XVII d.C. Parte II

Capítulo V (Vou dividir o capítulo, na verdade, em três partes, para tornar a leitura mais palatável).

 

Quanto ao quadro geral do número de suicídios encontrado na época, cabe apontar para o seu aumento significativo. No entanto, este fato deve ser tomado apenas como demonstrativo de uma maior eficiência dos relatos deste tipo de morte e não como um aumento de fato da ocorrência do suicídio. (Ou seja, a ideia então é que não houve um aumento real do número de pessoas que tiram suas vidas ao longo de diferentes períodos históricos. O número de suicídios sempre foi estável proporcionalmente em relação a população absoluta).

Os relatos de morte por suicídio feitos por volta e a partir do século XVI começam a ocorrer com considerável eficiência e em maior número. Para que isso fosse possível não se deve deixar de considerar o já mencionado surgimento da imprensa, o grande número de jornais e folhetos que passam a circular cotidianamente, a maior facilidade da circulação de informações e a maior frequência e disponibilidade das traduções.

Pode-se atentar também para o que Foucault observou: o fato de que, neste período, começa a ocorrer um maior interesse do Estado em manter um controle mais rigoroso de toda sorte de eventos (1998). Surge nesse período o que ele denominou poder disciplinar, que encarna o interesse pelo controle minucioso dos corpos de todos os cidadãos. O próprio surgimento da estatística é apontado pelo autor como um instrumento desse controle. Começam a ser controladas as taxas de natalidade e mortalidade, o número de suicídios e assim por diante. Enfim, o que se verifica é o surgimento de diversos índices que favorecem o conhecimento e o controle dos indivíduos. Quanto ao controle do número de suicídios, especificamente, Minois cita à exaustão exemplos de todo tipo de listas ou locais nos quais as relações de causa e morte eram apresentadas, salientando que haviam aquelas dedicadas exclusivamente à morte voluntária (Minois, 1998, p.229 e 230).

Chegamos então ao momento oportuno para a introdução dos debates filosóficos a respeito do tema. E, mesmo que não fossem em grande número, os filósofos que fizessem deste um de seus principais temas, a grande maioria deles deu a sua contribuição para o debate (op. cit.).

Em um primeiro momento, a loucura emerge como um foco para o pensamento, na medida em que se apresenta como “refúgio, fuga e explicação” da sociedade e de tempos tão conturbados como os séculos XV, XVI e XVII, nos quais inúmeras guerras, pestes, intensos conflitos religiosos, mudanças na configuração política e econômica dos Estados, colonização de novas terras e muitas outras mudanças perturbam a consciência da época e, misturado com ela, sendo obscuro o limite que dela o separa, se encontra o suicídio.

O entendimento da loucura passa por uma brusca mudança em um curto período. As posições de Sébastien Brant e Erasmo de Rotterdam, tal como demonstrado por Minois (op. cit., p.100), exemplificam muito bem essa mudança, que se daria entre o entendimento da sabedoria e da loucura. A exemplificação mencionada seria feita pela apreciação de duas sentenças, cada uma de um dos autores: “procurar a morte é uma loucura, pois a morte sempre nos encontrará” – enunciada por Sébastien Brant – e “Quem são aqueles que por desgosto da vida se entregam à morte? Não estarão eles mais próximos da sabedoria?” – enunciada por Erasmo de Rotterdam. (Disputas intelectuais da época. O suicida é são ou louco? Qual é o sentido atribuído ao ato de tirar a própria vida? Essa é uma pergunta com a qual nos debatemos até hoje. A distância entre o pensamento dos gregos e o atual é bastante evidente em certo sentido, no que diz respeito ao debate do suicídio no ocidente. Mas com as discussões que surgem já aqui no renascimento é bem fácil se identificar. Já existem muitas ressonâncias com o modo de pensamento atual). O primeiro afirma então que é necessário ser louco para querer se matar e o segundo que é necessário ser louco para querer ficar vivo. O último ainda completa:

 

Basta ver todas as calamidades a que está sujeita a vida dos homens, a miséria e obscenidade de seu nascimento, a dificuldade da educação, as violências a que está exposto na infância, os medos a que está submetido na idade madura, o fardo da velhice, a dura necessidade de morrer, porque sempre ao longo da vida sofrerá todas as doenças que o assaltam, os acidentes que o ameaçam, os males que lhe caem em cima, os rios de fel que envenenam todas as coisas, sem falar dos males que o homem inflige ao homem: pobreza, prisão, desonra, vergonha, torturas, armadilhas, traição, injúrias, velhacarias (…). Como vê, penso eu, o que se poderia esperar se os homens fossem mais sábios: seria preciso outro barro e um novo Prometeu para o modelar (ibidem).

 

Outros aspectos desse debate se encontram nos estudos feitos por Montaigne. Ele afirma que o suicídio não é uma questão de moral abstrata, não podendo ser pensado em absoluto e valorado por posições universais. (Amo esse filósofo)! Apenas o indivíduo por si mesmo, perante uma situação particular poderia avaliá-la e a todas as possibilidades que apresenta, chegando por tal avaliação à saída que lhe pareça mais razoável, sendo apenas neste nível o suicídio passível de valoração.

A razão desponta neste momento como aquilo que deve iluminar qualquer sorte de reflexões e o suicídio não será considerado por outro prisma por Descartes. O filósofo não se deterá no tema, mas esclarecerá seu posicionamento em algumas de suas correspondências pessoais (op. cit., p. 202). A razão não nos diz nada sobre a morte, se existe ou não algo depois dela. Cometer suicídio seria, então, trocar o certo pelo incerto, o que constitui um erro. O suicida não é, nesta perspectiva, um pecador, mas alguém que comete um erro de juízo; e aquele que erra pune a si mesmo. (Deu para ver muito isso com o meu estudo. A galera não necessariamente se debruçava sobre o tema do suicídio, mas tinha que dar um pitaco).

Cabe observar que esta posição não deve ser tomada como representativa da dos racionalistas de um modo geral, assim como a posição de Hume, a seguir apresentada, não reduzirá de modo algum a dos empiristas. Pelo contrário, o que se encontra comumente é uma intensa discordância entre os filósofos e uma ambiguidade muito grande das posições particulares. (Justamente porque era uma discussão muito viva. Poucos grandes tratados filosóficos foram produzidos sobre o tema da morte e do suicídio especificamente por esses filósofos pops, mas eles sempre tinham algo a dizer. Sobre tudo; na verdade, eles sempre tinham algo a dizer. Falo isso com um pouco de amargor e ressentimento porque a academia, tal como eu a experimento, é muito rigorosa quanto a quem pode dizer alguma coisa. Como se a senioridade ou o título assegurassem que tudo que sai da boca de alguém são pérolas de sabedoria. Esses filósofos falavam cada absurdo. Leia os textos do Kant sobre mulheres, por exemplo, e você vai saber do que estou falando. Observação: se você acompanha meus textos, sabe que eu não perdoo crueldade e babaquice por conta do período histórico em que uma pessoa viveu, então não venha me dizer que era outra época. A “vida” sempre foi a “vida” e o ser humano sempre apenas teve uma destas e muitas mulheres morreram por causa dessas ideias e práticas e não voltarão à vida nunca mais. A gente fica pagando pau para as ideias dos filósofos, tentando salvá-los de suas atrocidades intelectuais e morais, mas resiste em ouvir os jovens, vivos, que querem gritar e expressar suas ideias. Se é para ouvir babaquice eu prefiro ouvir de alguém com quem eu consiga gritar de volta e não das páginas de um livro reverenciado escrito por um velho morto. Essa é a ideia. Parece que o caminho da graduação para o pós- doutorado é o caminho do “rejuvenescimento” do autor que você estuda. Como assim? Na graduação, a maioria dos autores que eu estudei eram senhores veneráveis que morreram velhos já há muitos anos, no mestrado, eu já comecei a estudar uma galera mais atual, se não o autor principal, pelo menos os comentadores, um ou outro vivo ainda. Agora, no doutorado eu estudo muita gente que está viva ainda e produzindo e que está na casa dos cinquenta anos! No pós-doc eu devo conseguir conhecer e debater com algum intelectual que regule comigo. É isso. Você tem que ir galgando degraus para ser ouvido. O problema é que você aprendeu a calar por tanto tempo, que quando chega a sua hora de falar, o que te resta a dizer já não carrega a potência da revolta da juventude, que sempre foi o que fez avançar o mundo. Eu vou parar por aqui hoje, porque acho essa ideia muito importante e quero que você medite sobre ela. Qualquer coisa discuta comigo nos comentários. Para a sua sorte, eu estou viva e você não é obrigado a baixar a cabeça para falar comigo :P).

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

Será que eu dou conta?

Sim.
Não foi sempre que eu consegui dar essa resposta.
Precisei trabalhar muito para conseguir responder afirmativamente a um desafio.
A gente sempre se preocupa com uma possível traição do amigo, do namorado, do colega de trabalho. E eu entendo. Ser traído por aqueles que estão ao nosso redor é horrível mesmo.
Mas não nos preocupamos muito com o fato de que constantemente traímos a nós mesmos. Nos enganamos, mentimos para nós mesmo e nos subvalorizamos em relação às outras pessoas.
Não mais.
Chega de sermos traídos pelos nossos próprios comportamentos e sentimentos.
Aquele embrulho no estômago que aparece quando estamos diante das dificuldades, os pensamos de que não seremos capazes, de que as coisas simplesmente não vão dar certo para nós.
E por isso nem tentamos. Traição. Traição dos nossos desejos e do nosso potencial. A traição mais traiçoeira que existe. Porque de namorado, amigo e trabalho a gente se livra, mas de pele, de alma e sangue, não. Se traímos a nós mesmos, passaremos a vida inteira sendo enganados e miseráveis.

Portanto a minha resposta é: sim, eu consigo. No presente. Sem mais.

Do Renascimento ao Século XVII d.C. Parte I

Capítulo V

 

(Como este capítulo ficou grande, vou dividi-lo em duas partes. Na verdade, ele não ficou grande. Este foi o único capítulo que saiu com o tamanho padrão de uma monografia. As monografias geralmente são compostas por três capítulos, cada um com dez páginas. Eu acabei fazendo vários microcapítulos, o quinto foi o maior e ficou com onze páginas). Por volta do século XV d.C., alguns eventos se destacam e assumem considerável relevância no que diz respeito ao presente tema. Tanto na defesa do direito à morte voluntária, pelo questionamento da moral religiosa vigente, operada pelos humanistas, quanto na oposição à mesma, operada agora tanto pelo cristianismo quanto pelas religiões filhas da Reforma. (Período difícil de estudar assim, com uma varredura teórica sobre um tema específico, pois são muitas vozes diferentes em conflito. O que fizemos foi pegar um autor de referência e correr atrás dos autores que ele menciona).

Os primeiros humanistas redescobrem toda a riqueza moral do pensamento pagão e o retomam, o que impulsiona uma busca pela grandeza que pode estar por trás do ato de matar a si mesmo. Essa retomada se torna mais marcante e relevante, sobretudo, no âmbito da arte, da literatura e das peças teatrais (Minois, 1998). As duas últimas, no que diz respeito ao questionamento da visão comum sobre o suicídio, se tornam especialmente importantes. A literatura, graças a uma série de avanços tecnológicos do período, como, por exemplo, o surgimento da imprensa, passa a ter um alcance muito maior, difundindo mais rápida e facilmente as ideias da elite intelectual. Já as peças teatrais as difundiam inclusive no meio das grandes massas.

Por outro lado, as religiões emergentes da Reforma – luteranos, calvinistas e, mais tarde, anglicanos – apesar de trazerem consigo intensos questionamentos da Igreja católica, possuem uma visão sobre o suicídio que não se mostrará tão diferente e, sem dúvida, não será menos rigorosamente depreciativa. Para aqueles o suicídio seria um ato cometido pelo próprio demônio, sendo, deste modo, o suicida um possuído que passaria a ser exorcizado caso sobrevivesse a uma tentativa de suicídio. A redução do número de casos de suicídio no seio da própria comunidade se torna extremamente importante para cada uma dessas religiões na medida em que a estatística do suicídio traduz um índice de “satanização” da mesma. (A religião parece começar a adotar aqui essa postura mais paternalista, pensar no fiel como um reflexo do que prega a religião e do que prega a própria igreja. Antes isso não importava tanto. Esse negócio do exemplo do “bom cristão” não valia para o povão”).

Dentre as mudanças operadas pelos questionamentos dos protestantes, no entanto, podem ser citadas algumas bem relevantes. É realizada a primeira tradução da Bíblia, o que faz com que sejam dispensáveis para a sua leitura a missa ou grandes encontros, nos quais a presença das autoridades eclesiásticas era necessária. (O que foi um avanço, convenhamos). A prática religiosa acaba por se tornar algo muito mais particular, passando a valorizar a livre interpretação das Escrituras pelo indivíduo. A relação do fiel pode agora se estabelecer diretamente com Deus, sem a necessidade da mediação da Igreja. Estas novas práticas religiosas acabam dando lugar a um individualismo que se apresentará de maneira crescente na Europa. E para isso irá corroborar também a mudança da organização econômica dos Estados. O mercantilismo e a ascensão da burguesia trarão consigo um individualismo creditário de novas formas de competitividade, de organização do trabalho e da produção, além de novos valores e metas econômicas e políticas. Em decorrência desses fatores, o que se observa é o aumento da lista de razões que levavam ao suicídio, na qual se incluem agora os suicídios por falência, desemprego, alcoolismo e outros fatores ligados às condições econômicas. (Eu também sempre tive um pé atrás nessa coisa de “um aumento no número de razões” para se matar. Certa vez, numa aula de história da psicologia na faculdade, estávamos discutindo produção de subjetividade. Um garoto levantou a mão e disse: “Mas então quer dizer que na Grécia não tinha tanta produção de subjetividade, pois lá não tinha moda, shopping, televisão, ou seja, existiam menos fatores que se entrecruzavam, dando origem ao que chamamos de subjetividade. Não! Os gregos tinham “tanta subjetividade” quanto nós, mas suas experiências eram bastante diversas. Eu penso mais ou menos assim, eles deveriam ter tantos motivos para tirar a própria vida quanto nós, mas eram motivos absolutamente diferentes. Se no século XVII surgia o problema do desemprego, talvez na Grécia uma pessoa se matasse pensando que Zeus estavam descontente com ela. Não se trata de um maior ou menor número de motivos, mas de experiências diversas).

Mas, ainda com relação aos posicionamentos religiosos, não se pode deixar de observar a contra-investida católica, que não será de afrouxamento da condenação, mas de promoção de certos modos de espiritualidade que pregam o completo desprezo por si mesmo, o próprio corpo e suas necessidades, e pelo mundo. Dentre essas práticas se destacam a “espiritualidade do aniquilamento” ou a “abnegação de si”. Cabe observar que, na realidade, esta emerge com Mestre Eckhart no século XIII. Segundo seus ensinamentos há um caminho a ser percorrido pelo homem que se inicia no recolhimento daquelas energias que são dispensadas as coisas, retirando delas a importância que possuíam; essa é a abnegação do mundo. A seguir, esse homem deve desprender-se de si mesmo, encontrando aí a paz e a serenidade. A abnegação, deste modo, quer chegar ao nada de modo que “entre a perfeita abnegação e o nada não pode haver coisa alguma” (Weischedel, 2006, p.116). A essência autêntica do homem se realizaria precisamente aí, no alcance desse nada que é o fundamento de sua alma, no qual se estabelece uma relação direta com Deus. Pode-se concluir daí que “toda nossa essência não reside em nada mais que um aniquilar-se” (ibidem). Essa forma de espiritualidade se apresentaria como uma segunda opção ao suicídio físico e restaria às almas melancólicas, obrigadas a recusar o mundo ainda que condenadas a suportar a existência. (Ainda hoje em dia eu reparo experiências que se assemelham a esta filosofia em certo sentido. Existem pessoas que, em momentos de melancolia perdem a fome, a vontade de realizar qualquer tipo de atividade, perdem o sono, o prazer. Parece que começam a viver em um estado de abnegação de si e do mundo). Seria uma espécie de suicídio espiritual, um aniquilamento simbólico que teria como repercussão prática um afastamento do mundo. Nas palavras de Minois:

 

Recusa do mundo, recusa da vida pessoal, recusa da consciência individual, vontade de se fundir no grande todo a que uns chamarão nada e outros Deus, deixar de ser eu mesmo, apagar-me inteiramente: eis outras tantas características comuns com o suicídio físico. (1998, p. 207)

 

De um modo geral, essas duas formas de relação com o próprio corpo e com o mundo negarão ao indivíduo o prazer mundano e o interesse por si próprio, estabelecendo uma preocupação única, que seria a negação de tudo aquilo que pode desviar a alma do caminho árduo da salvação. A grande ambiguidade dessa prescrição é o fato de que esse afastamento completo ainda mantém interdito o suicídio, a alma deve padecer de todo esse sacrifício, nunca o abandonar em prol da salvação sob a ameaça de afastar-se dela no momento em que, segundo considera, a ela se entrega. (Loucura, não é? Realmente a religião costuma ter uma postura de desprezo em relação ao corpo e a esta vida mundana. Você não pode se entregar aos prazeres, tem de viver sempre em contrição, mas se ausentar da vida você não pode de jeito nenhum. Ela, ainda assim, tem um propósito que deve ser cumprido).  Os relatos de morte por inanição dos adeptos deste tipo de vida são inúmeros, ocorrendo, principalmente, entre os eclesiásticos.

Seria importante ressaltar então a obra de John Donne, o Biathanatos escrito em torno de 1610, como uma obra filosófica importante deste período que avança, se não no sentido da afirmação do direito ao suicídio, pelo menos na imposição de inúmeras ressalvas àqueles que o condenam. A grande ousadia de sua defesa é o fato de ela se fazer inteiramente dentro da teologia cristã. Donne não recorre, como os outros filósofos, aos exemplos gregos e romanos que embasam as posições favoráveis ao mesmo, mas àqueles argumentos que a própria moral cristã disponibiliza. Seu livro é organizado em três partes, as quais correspondem a três questionamentos: seria o suicídio contrário à Lei da Natureza?; à Lei da Razão?; ou à Lei de Deus? Ele chega à conclusão de que não se dispõe de argumentos que permitam afirmar que “algo é tão mal que não possa nunca ser bom”. (Wow! Eu penso no que isso significa até hoje). Não se encontra univocidade nas exposições de exemplos históricos, leis, ou textos que permita seguir em um sentido contrário a essa afirmação.

O autor, não só aí, mas também em muitos de seus escritos literários, tematizou a morte e o suicídio, como se pode verificar no trecho a seguir de uma de suas poesias: (Fantástico esse poema. Eu conheci esse autor na nas pesquisas para a monografia e depois me apaixonei pelos poemas).

 

Morte, não te orgulhes, embora alguns te provem

Poderosa, temível, pois não és assim.

Pobre morte: não poderás matar-me a mim,

E os que presumes que derrubaste, não morrem.

Se tuas imagens, sono e repouso, nos podem

Dar prazer, quem sabe mais nos darás? Enfim,

Descansar corpos, liberar almas, é ruim?

Por isso, cedo os melhores homens te escolhem.

És escrava do fado, de reis, do suicida;

Com guerras, veneno, doença hás de conviver;

Ópios e mágicas também têm teu poder

De fazer dormir. E te inflas envaidecida?

Após curto sono, acorda eterno o que jaz,

E a morte já não é; morte, tu morrerás.

 

A esse exemplo se segue o de Jean Duvergier de Hauranne, um eclesiasta que afirma que em certos casos não é apenas lícito, como constitui uma obrigação entregar a própria vida. É o exemplo do sacrifício feito em prol da vida do rei. De qualquer modo ele coloca a seguinte questão: “dado que existem tantas exceções para o homicídio, porque não as aceitar em relação ao suicídio?” (op. cit., p. 124). (Excelente pergunta. Vemos que é esta pergunta, exatamente a mesma, que inquieta autoridades há séculos).

Em contrapartida, os teólogos e moralistas empreendem uma oposição cada vez mais rigorosa. De qualquer forma, as dificuldades que encontraram foram inúmeras, assim a ambiguidade de seus posicionamentos se torna mais demarcada. O exemplo dos casuístas ilustra muito bem esse aspecto.

A casuística era um método que consistia em comparar cada caso particular com um caso paradigmático, para que então se estabelecesse um juízo. (A gente usa muito isso no senso comum até hoje)! Ao aplicar tal método à reflexão sobre o suicídio, na tentativa de passar em revista todas aquelas situações que podem levar um indivíduo a cometê-lo, os casuístas se deparam com casos extremamente delicados, na medida em que se impõem ao questionamento não só os casos de suicídio direto, mas também aqueles nos quais o indivíduo se expõe voluntariamente a alguma situação que pode colocar em risco a sua vida. Por exemplo: deveria ser condenada a mulher que se dedica ao cuidado do marido vítima de uma doença mortal e contagiosa? Ou então: é negada, àquele que pula de um prédio em chamas, sabendo que pode não resistir à queda, a salvação? No primeiro caso é lícito o cuidado da esposa; já a situação contrária, o marido que cuida da mulher doente, constituiria um pecado (op. cit., p.152). (Sério isso?! Mas a nossa discussão atual não é sobre machismo, certo?).  No segundo caso, a atitude é ilícita, pois não é permitido cometer pecado algum para salvar a própria vida (op. cit., p.154). O embaraço dos casuístas ao responderem a esse tipo de questão gera a ambiguidade anteriormente mencionada. Mas, embora sua oposição não se destaque em termos de consistência, este episódio não deixa de colaborar marcadamente para o debate da época. (Compreensível. Os caras se perdiam debatendo um trilhão de caso contingentes. Você não tira nenhuma regra universal daí, mas eles eram como que gurus da sabedoria, pois sabiam falar de muita coisa e certamente sabiam argumentar).

Cabe observar que a estes três fatores, quais sejam, os questionamentos humanistas, as intolerâncias moralistas e religiosas e as consequências das relações econômicas, somam-se as novas e cada vez mais fortes influências dos estudos médicos, psicopatológicos, psicológicos, sociológicos, dos posicionamentos filosóficos em geral e as novas influências da medicina no direito[1]. Em torno dessas referências se desenvolvem as discussões acerca do suicídio a partir do século XVII. Observa-se também que algumas dessas influências se dão de maneira crescente enquanto outras de maneira decrescente. As explicações emergentes então se tornam cada vez mais determinantes das visões acerca do tema, ao passo que as religiosas e moralistas o são cada vez menos. (E eu vou cortar aqui o capítulo, porque agora vamos mudar um pouco o escopo da discussão).

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1]Minois faz a distinção desses campos de saber a propósito dos temas aos quais marcadamente se referem, não considerando uma possível constituição formal destes na época.