Do Renascimento ao Século XVII d.C. Parte III

Capítulo V

 

David Hume trará em seu trabalho algo que mais parecerá uma defesa de toda e qualquer ação do homem, à medida que, segundo ele, todas as suas ações são realizadas de acordo com as leis imutáveis que regem a natureza. Leis que teriam sido criadas por Deus e que garantiriam o seu controle indireto sobre todos os eventos.

 

A providência divina não aparece imediatamente em cada operação, mas tudo governa por aquelas leis gerais e imutáveis estabelecidas desde o início dos tempos. Todos os eventos, em um sentido, podem ser ditos ações do todo-poderoso, todos procedem daqueles poderes com os quais ele dotou suas criaturas. Uma casa que desaba por força de seu peso não é levada à ruína por sua providência mais do que o é uma casa destruída pelas mãos dos homens (…). Quando as paixões incitam, quando o juízo dita, quando os membros obedecem, tudo isso é operação de Deus e, por esses princípios animados, assim como pelos inanimados, ele estabeleceu o governo do universo (Hume apud Puentes, 2008, p.112).

 

Supor que o homem pudesse fazer algo que fosse contra essas leis seria supor que, em alguma medida, ele possuiria poderes e faculdades que não aquelas que seu criador o concedeu. Outro exemplo que poderia ser analisado nesse sentido e que se encontra no quadrante das questões que se impunham a David Hume era o da vacinação. A sociedade francesa da época, por uma superstição religiosa, era levada a ir contra as campanhas de vacinação, uma vez que imaginavam estar indo contra a providência divina ao prevenirem uma doença. Hume pergunta então, por que não seria igualmente ilícito construir casa, abrir estradas e etc. (Minois, 1998, p. 312-313).

Deste modo o suicídio não seria contrário à lei de Deus. Quanto a ele ser contrário à sociedade, Hume afirma que nos foi dada também por Deus a capacidade de chegar a este veredicto. Através dos princípios que ele fez serem característicos da natureza humana, como, por exemplo, o arrependimento e a vergonha. No entanto, segundo o filósofo, o suicídio não seria um mal para a mesma, ao passo que o suicida poderia, no máximo, deixar de fazer um bem para a sociedade, nunca lhe fazer um mal. Por fim, ele também não poderia fazer um mal contra si mesmo, pois um indivíduo só deixaria a própria vida caso ela tivesse se tornado apenas um infortúnio indigno de ser vivido. É indispensável ressaltar, no entanto, que Hume se recusou a publicar este capítulo de sua obra, e parece, segundo Minois, que isto se devia a uma autocrítica, que o levara a tomar seus argumentos por fracos ou banais (op. cit., p. 314). (Eu corri atrás desse tratado para lê-lo. Não estou segura de ter encontrado a versão autêntica do autor. Esse deus que ele apresenta na citação é esse deus das leis naturais. Leis que teriam sido criadas no início dos tempos e que regem e regirão sempre todos os eventos. O homem é totalmente naturalizado aqui, seus emoções, desejos e sentimentos, funcionando como leis mecânicas, me parece. Por isso seriam também determinadas por essas leis eternas e imutáveis. Talvez seja esse o ponto de fraqueza do argumento. Isso resultaria em um potente determinismo. Complicado).

Por outro lado, a título de exemplo, pode-se mencionar uma provocação feita por Berkeley quando este diz que são os “pequenos filósofos” aqueles que se põem em defesa da morte voluntária e aponta com desprezo o fato de não terem coragem para aplicarem suas ideias e se matarem (op. cit., p. 238). (Aeewww! Maior indiretaaaaaaa! Gente, os filósofos diziam umas baixarias em suas discussões intelectuais, eram tão irônicos na discussão. O piro é que eles escreviam isso em seus livros. O mais escrachado? Karl Marx, sem dúvida. Falava atrocidades de seus oponentes. Muito hilárias certas passagens de seus textos).

Não se deve deixar de considerar, contudo, a reflexão política que pautará muitas das discussões filosóficas da época. A recente formação dos Estados e o grande número de pensadores que se dedicaram ao tema do governo colocaram o suicídio em um lugar peculiar de denúncia às condições da vida social. (Esse é um ponto muito sério. Podemos prevenir o suicídio com a melhoria das condições sócias da existência?). Uma consideração a ser apresentada é a de Rousseau. Sua perspectiva é exposta em um romance de sua autoria que trazia várias de suas ideias. Aquelas que diziam respeito ao suicídio eram enunciadas por dois de seus personagens. Pela voz de um deles, Rousseau apresentava argumentos segundo os quais seria lícito o suicídio para, na voz do outro, refutá-los, apontando a falta que este representaria para os seus familiares, a sua comunidade e, por fim, à sociedade como um todo. A oposição de Thomas Hobbes avança no mesmo sentido. Esses autores passaram a considerar o suicídio como uma falta, sobretudo, para com a sociedade, acrescentando a estes argumentos uma novidade: o fato de considerarem ser o dever do Estado e de seus governantes assegurarem uma vida que valha a pena. (Então, seria dever do Estado assegurar as condições mínimas de uma boa vida). Seus argumentos representaram uma crítica à condição da vida social da época, na medida em que, para eles, o necessário seria prevenir as causas do suicídio e não punir o ato. (E as causas do suicídio, para estes autores, teriam raízes sociais. Essa é era uma ideia absolutamente nova na época).

A respeito da ambiguidade dos posicionamentos filosóficos, ela pode ser representada, de um modo geral, por La Mettrie: “A morte é o fim de tudo; depois dela, repito, há um abismo, um nada eterno; tudo está dito e tudo está feito; a soma dos bens e a soma dos male é igual; já não há mais cuidados nem uma personagem a representar; a farsa está concluída” (La Mettrie apud Minois, 1998, p.277). Mas, em outro momento, ele afirma: “Qual será o monstro que, numa dor momentânea, arrancando-se da sua família, dos seus amigos e da sua pátria, não tem como objectivo libertar-se das penas dos deveres mais sagrados?” (op. cit., p. 294). Acerca desses posicionamentos, cabe considerar:

 

(…) nestas condições, porque se deve ainda hesitar? A posição dos filósofos revela-se finalmente mais ambígua. Manifestando pouco gosto pelo suicídio e retirando à morte o seu caráter medonho, apenas podem justificar o desejo de viver através de um balanço positivo da existência, o que não é o caso de todos (Minois, 1998, p.277).

 

(Ok. Eu acho que essa parte não está muito clara. Qual é a ambiguidade? O suicídio, nesta época, séculos XVII e XVIII, passa a ser discutido por fora da esfera religiosa. Céu e inferno não estão muito presentes na discussão filosófica. A morte começa a perder seu caráter medonho, como diz a citação. Começa a se desfazer aquele ar de pecado que dominou a visão acerca do ato na Idade Média. Além disso, a morte passa a ser louvada pelos artistas, romantizada. Por conta dessa mudança na maneira de encarar a morte e o suicídio, se coloca a pergunta: se a morte não é o maior dos horrores, por que continuar vivendo quando o saldo da existência é negativo?). Hobbes, Rousseau, Voltaire, Holbach e outros, contudo, dão um novo desfecho as essas ambiguidades de posicionamento. Eles são aqueles que escolhem o ser, mas na condição de que este ser se dê uma maneira digna, uma vez que este “vale de lágrimas” se torne em uma permanência cheia de alegrias (op. cit., p. 259).

Esses questionamentos filosóficos impõem grandes dificuldades aos religiosos que não podem se alinhar nem àqueles que escolhem o ser, nem àqueles que escolhem o não ser, pois “tornar a passagem nessa vida muito agradável é pôr fim à aspiração da salvação eterna no além, que é o motor da moral; autorizar o homem a dispor da sua vida é frustrar o plano divino e suprimir assim as indispensáveis provações que nos permitem alcançar o céu” (op. cit., p.259). (Bizarro. Mas a religião é exatamente assim. Ela tem que manter os fiéis naquela tensão exata entre o desespero absoluto que leva uma pessoa a tirar a própria vida e a felicidade tranquila e despreocupada que faz com que eles esqueçam de temer a deus).

Enfim, além das posições filosóficas que emergem neste período, começa a ocorrer, com os avanços da medicina, um processo de secularização do suicídio e com ele, também, um processo de desculpabilização do suicida, que passa a ser considerado um doente.

Em meados do século XVII, o estado melancólico é re-significado, afastando-se do entendimento medieval e do caráter reflexivo atribuído pelos romanos. Ele passa a ser entendido como uma configuração psicológica do indivíduo. Dentro deste quadro cabe ressaltar a concepção que Robert Burton traz em seu tratado de 1621 Anatomy of Melancholy (op. cit., p. 126), na qual a melancolia impregnaria a natureza de alguns homens, fazendo-os predestinados a um temperamento sombrio. A mudança operada traduz-se pelo fato de que “O desespero é uma noção moral, é um pecado, mas a melancolia é uma noção psicológica, é um desequilíbrio do cérebro” (op. cit., p.125). (Com a ideia de melancolia ocorre a mesma coisa que eu quero mostrar neste trabalho em relação ao suicídio: Não existe uma essência do estado melancólico. Este é um conceito que já foi preenchido por diferentes discursos, que já teve, por horas, seu significado completamente deslocado. Acabamos de mencionar isso. A melancolia foi deslocada para significar possessão demoníaca no período medieval e agora ela passa a ser entendida cientificamente, o que também difere do entendimento antigo, mais racional). Contudo, não se deve perder de vista que o caráter ainda mágico e fantasioso das explicações científicas da época. No momento de seu surgimento, elas não produzem de imediato o ocaso das explicações religiosas. E, principalmente, elas não surgem com um apelo tão grande junto às massas. (Claro, trata-se de um longo processo que se estende ao longo dos séculos seguintes).

Quanto ao tratamento designado para estes homens, ele seria de caráter psicossomático e consistiria na tomada de providências simples: ouvir determinados tipos música, tomar banhos de sol, ter uma vida sexual equilibrada, dedicar-se a estudos que absorvam o espírito, mas sempre de forma moderada, dentre outras atividades deste gênero. (Ainda hoje isso aqui é válido). Um último ponto a se destacar no posicionamento de Burton, que ainda manterá unida a discussão médica e a discussão filosófica da época, é a sua crítica à organização socioeconômica, que ele aponta como uma das causas do agravamento dos estados melancólicos e uma das principais causas dos transtornos psíquicos. (Havia um movimento de crítica social intenso pairando no ar daquela época). Encontramos novamente a ideia do suicídio como uma acusação da sociedade incapaz de assegurar a felicidade de seus membros que preferem o desconhecido a um mundo que, para eles, não valia a pena face aos males que o configuravam.

No decurso deste processo de secularização do suicídio o suicida passa a ser encarado cada vez mais como vítima dos aspectos que o determinam biológica, social e psicologicamente, abandonando o lugar da culpa. Mais tarde, ainda no âmbito da medicina, encontraremos outros pontos de explicação de um tal estado, que enfraquece a alma e torna inconsistente o caráter: a explicação do lunatismo e os diagnósticos de hipocondria e histeria. O primeiro tema levantava reflexões acerca da influência da lua no comportamento das pessoas e na própria fisiologia humana, considerando que em determinadas fases da lua tal ou tal pessoa se torna mais melancólica e, em outras, mais agressiva e assim por diante. (Isso existe até hoje no senso comum. Acredito que é por efeitos do pensamento dessa época sobre o lunatismo que até hoje chamamos certas pessoas de lunáticas). O segundo tema destaca o Treatise of Spleen and Vapours, or Hipochondriacal and Hysterical Affections, publicado em 1725 de Richard Blackmore, que discursará sobre tais patologias e dará a elas um local de bastante relevância (op. cit., p.300). Na hipocondria, o paciente usualmente atentava contra sua vida na tentativa de escapar do que ele acreditava ser o estado irreversível de dor e sofrimento no qual ele se encontrava. Esse estado (existente unicamente na imaginação dos indivíduos) consistia na presença de uma doença grave e incurável.

Forbes Winslow, em seu livro Anatomy of Suicide, publicado em 1840, exemplifica inúmeros outros casos de suicídio tidos como decorrentes de males físicos. Ele expõe em seu estudo (que possui também uma parte histórica), as perspectivas de sua época a respeito do tema. O autor inicia o capítulo VIII de seu livro, que versa sobre as causas físicas do suicídio, dizendo:

 

(…) as causas físicas que são comumente consideradas produtoras de disposição suicida – o clima, as estações, a predisposição hereditária, danos cerebrais, sofrimento físico, doenças do estômago e do fígado complicadas pela melancolia e a hipocondria, insanidade, secreções suprimidas, intoxicação, vício anti-naturais (…)[1] (p. 130).

 

O foco das disputas analisadas pelo autor será o modo como os fatores físicos interagem com os psicológicos e com o meio que cerca o paciente. As formas de tratamento também foram diversificadas. Um paciente que atentava contra a própria vida poderia ser tratado com transfusão sanguínea, internado nos hospitais gerias, submetido a lavagens intestinais ou a sangramentos (quando se realizavam cortes no paciente e deixava-se escorrer quantidades determinadas de sangue). O que se pode verificar de comum nos autores da medicina e da psiquiatria emergente nesse período, é a busca pelo que havia de determinante físico no ato de tirar a própria vida. (E esta é a era dos tratamentos desumanos horríveis que vemos na história da medicina. Nossa! Eram muitos tratamentos monstruosos. Interessante porque hoje em dia agente sabe que certos remédios fazem você passar mais mal do que a doença em si. Esse é um dos pontos da luta atual contra a utilização dos remédios psiquiátricos. Existem profissionais que afirmam que esses remédios fazem mais mal do que bem. O tratamento, nessa época, já era desse tipo, do tipo que faz mais mal do que bem. Às vezes, o paciente sobrevivia à tentativa de suicídio, mas morria do tratamento. Isso gera um grande dilema ético com relação ao tratamento que está vivo até hoje, como eu falei. Basta pensar na questão do suicídio assistido).

Então, em um certo sentido, o que se verifica a partir daí é a banalização da ideia de morte voluntária. Isso pode ser a princípio depreendido dos motivos que surgem nessa época como a causa desse tipo de morte e até mesmo com o início dos relatos sobre aqueles que chegam mesmo a simular um suicídio. Os suicídios por honra passam a ser cada vez menos numerosos, os por motivos econômicos passam a ocorrer cada vez mais, surgem os suicídios por vingança, os suicídios como instrumento de chantagem, enfim, o que se verifica é que esta atitude se torna parte das relações sociais, como mencionado há pouco. Seu caráter de denúncia e de acusação o torna cada vez mais um meio de chantagem e de pressão nas relações interpessoais. Corrobora para essa afirmação o surgimento dos bilhetes dos suicidas.

 

O suicida tende assim a inscrever o seu gesto numa certa lógica, pretende dar-lhe um sentido e um prolongamento para que seu sacrifício tenha consequências imediatas no ambiente ou na sociedade inteira se se trata de um motivo mais geral. Mas essa prática inscreve-se mesmo numa tentativa de racionalização do ato (op. cit., p. 356).

 

(Eu nunca tinha parado para pensar sobre isso antes. Até o período da alfabetização das populações não tinha essa de bilhete de suicídio. Hoje em dia, a gente fica ainda mais devastado quando aquele que se mata não deixa um bilhete, uma carta, qualquer coisa. A nossa experiência atual do suicídio ainda é essa de querer inseri-lo em uma lógica que se encaixe na vida do suicida). Essa lógica na qual é inserido o suicídio é uma lógica humana, que sustenta as causas do ato no âmbito da motivação consciente; o que está em jogo é a manifestação do indivíduo ele mesmo. É claro que, a partir destas, inúmeras leituras para o ato serão propostas. Deste modo a discussão a respeito da morte de si começa a se fazer em campos cada vez mais diversificados e não somente no que tange a moral.

A imprensa, por sua vez, teria um importante papel a desempenhar nesse momento, pois é frequente a publicação destes bilhetes nos jornais, juntamente com a história da vida do suicida, que é narrada muitas vezes de maneira romantizada ou escandalizante.

Dentre todos esses debates, cabem agora (breves) considerações acerca da jurisprudência com relação ao ato de matar-se a si mesmo.

Aos poucos, o direito vem sendo cada vez menos influenciado pela religião e cada vez mais pelas concepções filosóficas e, posteriormente, pela medicina. Deste modo, observa-se um recuo crescente da condenação do suicídio.

Segundo Minois, a cada momento o processo de julgamento de um caso de suicídio se torna mais demorado e criterioso. Em alguns casos chega a se verificar a duração de mais de dois anos para que o processo se conclua; durante esse tempo o corpo permanece preservado para que se proceda, ao final do julgamento, a pena ou o enterro. O processo constitui uma narrativa detalhada da maneira pela qual ocorreu a morte, das condições em que foi encontrado o morto, dos testemunhos e, por fim, o veredicto, seguido (quando for o caso) do estabelecimento da pena a ser executada. Não se pode deixar de observar que esse tipo de procedimento gera situações até mesmo absurdas, que vão desde a tentativa de dissimulação da família da ocorrência da um suicídio à presença do cadáver em putrefação às audiências de seu julgamento[2]. (Isso mesmo. Existem relatos de corpos de suicidas que passaram até dois anos preservados em sal grosso, período que durou o julgamento. E o corpo, quando necessário, era levado ao tribunal).

Por conta desses e outros fatores, como no caso referido de demora da conclusão do processo, a exposição, nas praças das cidades, de cadáveres em tal estado, começam a ocorrer queixas contra a exposição dos mesmos, o que, além de causar repúdio moral, ainda representava um prejuízo aos ares da cidade e à saúde local (op. cit.,).

Nesse sentido, o higienismo tem um papel importante a desempenhar, uma vez que os conhecimentos da medicina passam a influenciar não só no direito (demanda dos pareceres médicos), mas também na própria organização das cidades (necessidade de ventilação dos grandes centros urbanos, higienização dos espaços públicos, determinação do modelo familiar saudável e das obrigações nos cuidados com as crianças). O tratamento dos suicidas não foi deixado de lado, passou a ser um caso de saúde pública.

 

 

[1] Tradução livre realizada pela autora.

[2] A exposição do processo de um desses julgamentos é fornecida por Minois (1998, p.348-349)

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