Alguém está me batendo.

Quando eu era criança meu pai me batia e eu pensava: meu pai está me batendo.

A errada era eu que não conseguia atender a expectativa paterna. A errada era eu que brincava passada a hora de criança dormir. Errada sempre que mexia onde não devia. Errada sempre que respondia quando os adultos falavam.

Hoje em dia estou crescida e meu pai já não me bate mais com a mão.

Mas quando eu falo: Pai, ele vai tirar a cerca.
Ele pergunta: Você já viu o terreno e a cerca não está mais lá?
E eu respondo: Não, pai. Mas eu estou indo lá agora. Assim que acabarmos de ler o jornal, Marcos vai me pegar e vamos até lá ver.
Ele diz: Então amanhã quando você vir me ler o jornal você fala que a cerca foi retirada. Antes disso, fique calada e me prepara um café com queijo minas.
O médico falou que você não podia comer queijo minas, pai.
Mas toda vez isso agora! Você é médica?! Pois deixe que a respeito do queijo eu me entendo com o médico. Você faz o que eu falo!

Agora a errada sou eu que se preocupa. Errada sou eu que não virei médica, não virei advogada, não virei vidente. Virei mulher casada, mãe, cumpridora de deveres o obrigações. Do jeito que meu pai queria.

Mesmo agora que já estou criada alguém me bate. E a mão é pesada como na infância.
E eu descobri só agora, que meu pai já não aguenta o peso do jornal com o músculo fraco do braço direito que me arrancava couro com a vara, de onde vem a mão.

Eu sei agora que a mão vem carregada de infâncias partidas por Varas;
e carrinhos de arar;
e corações partidos;
e fome;
e sede;
e de sol na nuca o dia inteiro;
e de noites largado sob o sereno do campo em dia que não dava para voltar para casa do trabalho; e de promessas quebradas;
e sermões de padres;
e dores não choradas;
e de conversas desperdiçadas com cumprimentos despretensiosos.

Eu não bati essas dores nos meus filhos.

E, com tudo isso, o meu problema é que eu não sei socar parede. Não sei socar nada. Eu grito, esperneio e choro quando estou sozinha. Fora isso não sei para onde vai a minha raiva. Quando meus filhos desobedecem, quando cuido do meu pai.
Eu sozinha me sinto incapaz de dar um fim a essa corrente de ódio, porém mais incapaz eu fui de dar continuidade a ela.

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