Deficiente é tudo igual, não é?

No último domingo, dia 19/11/17, eu fiz o concurso público da UFRJ, concorrendo para a vaga de Assistente Administrativo.

Como o número de vagas era “alto”, havia vagas para deficientes e eu concorri a uma delas.

Foi a primeira vez que fiz prova para um concurso que abriu vagas para deficientes. Infelizmente, só tenho coisas ruins a relatar.

As salas reservadas para os deficientes eram bastante isoladas e distantes. Antes disso, eu não sei como eles selecionam o lugar no qual as pessoas realizarão a prova, mas seria de se imaginar que iriam colocar os deficientes para realizar provas em locais próximos das suas casas. Tinham dois lugares onde seriam realizadas provas da UFRJ na minha rua e, ainda assim, me jogaram para o Fundão.

Quando eu finalmente cheguei ao Fundão e depois da jornada para encontrar a sala (tudo acompanhada da minha mãe), tive a agradável surpresa de que a sala era, na verdade, um auditório. A princípio, parecia que os problemas haviam terminado. Sala confortável, boa iluminação. Mas foi neste ponto que os problemas recomeçaram.

Colocaram na mesma sala pessoas que só enxergavam com muita claridade e pessoas com fotofobia, como eu. Foi um desespero de abre persiana, fecha persiana, chama o técnico para ver se consegue dar um jeito. Que jeito? No auditório em que estávamos, havia vários conjuntos de lâmpadas diferentes. Três, pelo que eu pude perceber. De modo que era possível acender qualquer um dos conjuntos de lâmpadas isoladamente ou os três de uma vez.

O primeiro conjunto de lâmpadas ficava na parte da frente do auditório, iluminando o tablado e deixando o resto da sala numa semipenumbra. Delicinha. Sabe aquelas palestras nas quais você dorme a sono solto? Então. Havia um segundo conjunto de lâmpadas espalhadas em fileiras ao longo do auditório. Entre uma fileira de lâmpadas e outra deveria haver um espaço de aproximadamente dois metros. Enquanto as luzes que iluminavam o tablado eram amarelas, arredondadas e bem fortes, este segundo conjunto era de lâmpadas compridas que pareciam se esconder em dobras do teto. A luz que emanavam era branca e sutil. Com estes dois conjuntos de lâmpadas acesas a sala estava perfeita para mim. O terceiro conjunto de lâmpadas ficava no espaço de dois metros que mencionei, formando uma nova fileira. As lâmpadas aí eram como as que iluminavam o tablado. Quando este terceiro conjunto era acendido, a iluminação era projetada em cima das mesas onde iríamos escrever e praticamente me cegavam. Então, era necessário acender estas lâmpadas para os que precisavam de muita luz, mas desafrouxar aquelas que ficam em cima das mesas dos fotofóbicos para que não acendessem. Foi um troca-troca de lugar, um senta levanta de dar dor de cabeça até que todos pudessem se ajustar.

Depois desse desespero, ainda aconteceu o problema dos tamanhos das provas. Todos na sala haviam pedido prova ampliada e metade das provas veio em tamanho normal, inclusive os cartões-resposta. Começou um fuzuê tão grande que os fiscais foram chamar uma supervisora. A mulher chegou já pisando duro e perguntando: “O que que foi, gente? O que é que está acontecendo?” Nossa, que mulher grossa! Grossa com os fiscais e grossa conosco que faríamos a prova.

Todos estavam preocupados porque a mulher grossa disse que iria buscar as provas e os cartões ampliados, portanto nós deveríamos nos acalmar e começar logo a prova, mas e aí? Como faríamos com dois cartões? Isso não ia dar problema? Correria o risco de sermos desclassificados? Ela praticamente falou que éramos uns escandalosos preocupados à toa, mas, como veremos adiante, deu problema sim, então a agitação era justificada. A mulher não deu nem previsão do tempo que levaria para que chegasse o novo material.

Enfim, começamos a fazer a prova com uns quarenta minutos de atraso. Eu já estava estressada, com vontade de ir ao banheiro (eu pedi, mas não pude sair enquanto as discussões estavam rolando).

Durante a prova ainda ocorreram diversas interrupções. As duas mais desagradáveis merecem destaque. A primeira foi quando a supervisora veio entregar os cartões. Como já havia transcorrido mais de uma hora de prova, eu fui marcando o meu cartão. Vai que a mulher não chega nunca ou chega já nos últimos minutos… “Melhor pintar essas minúsculas bolinhas do que não conseguir preencher tudo ou fazer correndo e acabar errando depois”, pensei premonitoriamente. Por isso eu não me manifestei quando ela perguntou quem havia solicitado o negócio, mas a mulher atrás de mim, querendo ajudar, falou que eu havia solicitado um. Eu me manifestei:

– Não, obrigada. Não precisa mais não – pois eu não queria nem pegar o cartão não estando confiante de que não daria problema.

Aí a babaca me faz um comentário completamente dispensável em voz super alta para todo mundo ouvir – Ah, então não era necessário, não é.

Cara, foi bate e volta, eu levantei a cabeça na hora e respondi – Era muito necessário, mas deveria ter estado aqui antes da prova começar.

Fiquei muito orgulhosa por não ter deixado passar aquele comentário. Já era a segunda vez que eu me estressava com ela. No início, quando estavam distribuindo as provas, eu tive uma dúvida, perguntei a um dos fiscais e ela veio se intrometendo e me dando patada. Eu reclamei do jeito que ela estava falando comigo e ela ficou fazendo sinal de joinha na minha cara.

Eu fico sensível em momentos de estresse. Eu estava sensível naquele momento sim, mas não era só eu que estava puta com o comportamento dela. Foi só a mulher sair que todo mundo reclamou. Estavam todos legitimamente tentando adequar suas deficiências à situação da prova. Aconteceu um monte de merda no meio do caminho e a pessoa que está ali para resolver fica te tratando mal?! Porra!

A segunda interrupção foi justamente por causa do cartão. Parece que todos que estavam com o cartão pequeno, esperaram o grande para começar a marcar as respostas, menos um cara, que marcou em um catão até o outro chegar. Mas ele acabou errando na marcação do novo cartão, o grande, e resolveu entregar o pequeno mesmo. Nós não havíamos sido orientados a não marcar os dois cartões, ninguém falou que se marcasse o grande, era ele que valeria. Lembra, quando estávamos tentando tirar essas dúvidas, a grossa interrompeu e falou que não ia ter problema nenhum, que estávamos muito estressadas, que era para a gente respirar. Aí o cara ficou uns dez minutos brigando com o fiscal, porque queria que valesse o cartão pequeno. O fiscal também não sabia muito bem o que fazer, estava inseguro, mas tentava afirmar que não podia escolher, que ia ser o grande. E metade da sala ainda estava fazendo a prova.

Pois bem, para começar, o local de realização da prova, difícil acesso para certos tipos de deficiência; não sabiam como organizar as pessoas, jogaram deficientes com necessidades incompatíveis na mesma sala (na hora de fazer a inscrição, havia lá a possibilidade de marcar fotofobia, então não era nem como se eles não soubessem das pessoas nesta condição); depois foram as provas e cartões que vieram em tamanhos errados; e, por fim, os profissionais despreparados (o que nem foi o pior) e grossos.

Péssima experiência. Eu não fui bem na prova (Ok, não foi só pela condição esdrúxula da realização da prova, mas também porque eu continuo não sabendo uma vírgula de matemática).

 

“Eu espio com os meus olhos”. Parte VI.

Me formei. Hora de atacar o mercado de trabalho. Bom, eu fui trabalhar com clínica particular e com docência.

Na clínica, meu problema de visão nunca foi um grande problema. Eu fico a pouca distância do paciente, portanto, consigo enxergá-lo suficientemente bem.

Eu já percebi que ver o rosto do outro com clareza faz diferença em algumas situações sim. Por exemplo, eu não tenho nenhum problema de audição, mas quando pergunto para o motorista do ônibus, por exemplo, se aquele ônibus passa em tal lugar, eu nunca entendo a resposta, mas o meu marido sim. A minha hipótese é que as pessoas normalmente fazem meio que uma leitura labial inconsciente que colabora para que se entenda o que o outro está falando em locais barulhentos ou quando estão falando baixo. Como eu não enxergo o movimento da boca, acabo tendo dificuldade para ouvir o que as outras pessoas falam em certas situações.

Esse, ainda bem, não é o caso no consultório, pois é um lugar silencioso. Além disso, eu já estou adaptada ao meu problema de visão. Eu não consigo ver o branco dos olhos do cliente, mas a minha percepção de alterações no rosto dele me fazem perceber que ele mudou o direcionamento do olhar. Pequenas habilidades adaptativas que são desenvolvidas para lidar com o dia a dia. Esta é mais uma das razões pelas quais os médicos não indicam a cirurgia para a miopia no meu caso. Eu já estou há 27 anos nesse processo adaptativo. A cirurgia não me daria uma melhora tão significativa, mas seria o suficiente para invalidar todas as estratégias que eu desenvolvi até hoje para lidar com a deficiência visual!

No meu trabalho em consultório, acredito que o único momento em que meus clientes percebem que eu tenho algum problema de visão é quando eu tenho que preencher e assinar recibos na frente deles. Como isso ocorre com pouca frequência, eu não me dou ao trabalho de ficar explicando o problema.

Dando aula o buraco é mais embaixo. Não faço grandes cerimônias para explicar o problema, mas sempre tem aquele aluno que começa a falar do nada, sem levantar a mão. Nesses casos, eu tenho duas alternativas: quando eu não estou a fim de falar sobre a minha visão, eu faço uma cara de concentrada e fico olhando para baixo, quando eu estou disposta, eu brinco. “Quem está falando aí? Levanta a mão porque – mais alto! -; isso… agora sim estou te vendo”. Os alunos, às vezes, comentam que eu estou precisando trocar os óculos e eu respondo: “Menina, quem tem tempo para isso? É mais prático e mais barato se vocês levantarem a mão!”

Recentemente eu comecei um treinamento para dar aulas em um lugar novo (ano que vem vai ter post sobre isso!) e, nesses casos, sempre bate a dúvida: faço o discurso da lamentação – ah… eu tenho um problema de visão assim e sei lá mais como… – ou deixo rolar e se der merda eu explico? É uma grande dúvida.

Mesmo que eu não fique me fazendo de coitada quando apresento o problema, as pessoas ficam ou com pena ou com receio. Com receio principalmente se se tratar da sua chefe no trabalho. Então, eu tenho um pouco de medo desse preconceito e acabo deixando rolar no início. Depois eu explico o que eu tenho de maneira que pareça menos uma solenidade.

De um modo geral tenho que jogar as mãos para o céu, pois além do episódio no estágio durante a faculdade que eu já mencionei ao longo do me relato, nunca tive problemas no trabalho por conta da deficiência.

Não sei como seria se eu tivesse tentado entrar no mercado de trabalho empresarial. Tenho a impressão de que não ia chegar muito longe não. Mas isso não me frustra. Eu ia ficar louca se trabalhasse dentro de um escritório. Passei tempo demais ouvindo minha mãe falar: “Filha, procure um trabalho no qual você não fique presa dentro de um escritório. Entrar de manhã cedo, sair já depois de escurecer”. Uuuu… Me dá arrepios só de pensar. Por isso eu odeio o horário de verão, porque tem sol até mais tarde e o calor é exorbitante, e minha mãe ama, porque ela ainda via a luz do sol depois de sair do trabalho.

Temos também os concursos públicos. O povo acha que é moleza fazer a prova com a concorrência bastante reduzida. Isso é verdade mesmo. Mas talvez isso não compense o fato de que as opções de concursos com vagas para deficientes é muito pequena e é quase impossível achar um concurso com vagas para deficientes que pague bem. Então, não se chateiem por não ter a vantagem de competir para as vagas de deficiente.

Bom, de qualquer forma, o meu maior problema para trabalhar não é o trabalho e si, mas é como chegar ao trabalho.

A questão do transporte novamente. Esse, pelo que estou percebendo, vai ser o problema da minha vida.

E eu faço muita coisa, então…

Trabalho com a docência em duas instituições diferentes, em dois consultórios… Os horários também não são fixos, o que torna difícil fazer sempre arranjos de carona. Então eu estou constantemente rodando as ruas do Rio de Janeiro. Ando até os pontos finais para pegar os ônibus, vou até ruas onde só passa aquela linha que serve para mim, caminho meia hora até os metrôs, gasto uma grana com transporte individual, peço milhões de caronas para minha mãe, peço ajuda aos amigos para me colocarem nos ônibus.  

Eu me viro e muita gente me ajuda, mas não vou abrir mão de dizer que é chato, inconveniente e, algumas vezes, triste ter que lidar com qualquer tipo de deficiência.

Por outro lado, não dá para negar, a vida é boa para caralho.  

“Eu espio com os meus olhos”. Parte IV.

Até a terceira série, as zoações dos colegas eram inofensivas para mim. Nada do que eu vivi até este período ficou marcado como especialmente negativo. Tinha um pouco da estranheza, eu acho, da parte das outras crianças em relação a mim, pois eu não via a bola nos jogos de queimado, não via onde caiu a pedrinha da amarelinha, não sabia dizer se o paquera da amiga era bonito ou não, não copiava do quadro, não respondia quando acenavam para mim. Mas as crianças não eram especialmente más nessa época, ou eu era mais resiliente.

O problema começou na terceira série.

Além das zoações inespecíficas, que serviam para zoar qualquer pessoa, eu comecei a sofrer com as zoações específicas e elas me magoavam demais.

Uma coisa era aquele garoto que virava para todo mundo e dizia: “Eu não sei se você tem dente ou trave de gol”. Quando todo mundo estava se xingando de “burro” e você era só mais um a ser xingado da mesma coisa a experiência é uma.

Quando você começa a ser alvo de xingamentos específicos, direcionados única e exclusivamente para você, a experiência de singularização fica mais evidente. Como consequência, eu comecei a ser vista como diferente e isso foi fazendo com que eu ficasse isolada socialmente.

“Cara de peixe morto”; “Abre o olho!”; “Quantos dedos têm aqui?” (com o dedo na minha cara); “Cegueta”; “Cega”; “Ceguinha”; e, além das falas, tinham os comportamentos. Eu geralmente fico com os olhos apertados ou olho pela parte de baixo do olho (como quem usa óculos multifocal tem que fazer), pois isso me ajuda a ver um pouco melhor. Esse gesto que eu fazia para ver melhor era imitado pelas outras crianças.

Tudo isso servi apenas para zoar a mim e a mais nenhuma outra criança.

Até eu faço gozação com o meu problema de visão. Meus amigos fazem. Se a gente não rir de si mesmo está condenado ao sofrimento. Mas ser zoado com amor pelos seus amigos é bastante diferente de ser ofendido por pessoas que afirmam te odiar.

Ainda havia aquelas crianças que, assim como alguns professores, pareciam ficar com raiva do meu problema de visão e demandavam que eu me curasse magicamente.

Por exemplo: havia crianças que não me zoavam por causa do problema de visão, mas que me chamavam de metida, porque eu não as cumprimentava quando passavam por mim. Eu explicava que não cumprimentava porque não as enxergava. Era só elas virem até mim e me cumprimentarem, ou me chamarem a atenção de alguma outra forma, que eu falaria com elas sem problema nenhum. Não era de propósito que eu as estava ignorando. Mas elas não aceitavam muito bem esta situação e ficavam irritadas comigo. Continuavam achando que eu era metida e se afastavam de mim.  

Já me perguntei muito o porquê disso. A melhor explicação que eu consegui encontrar, foi o fato da minha deficiência não ser aparente. As pessoas não conseguem entender isso muito bem: uma pessoa que sofre com um prejuízo tão grande, mas que elas não conseguem enxergar… Essas pessoas acham que eu estou de palhaçada ou de má vontade.

O fato é, eu fui um tipo de criança que já teria sofrido bullying de qualquer forma. O problema de visão só fez com que as coisas ficassem um pouco mais difíceis. Até porque, além do bullying, eu passei por uma série de outras dificuldades.

O incrível é que, mesmo no meio de tudo isso eu consegui encontrar as minhas melhores amigas.

Minhas amigas sempre fizeram tudo que podiam para que eu conseguisse acompanhar as aulas. Desde ir me falando e explicando baixinho tudo que o professor falava, até me ajudar a copiar a matéria que havia sido dada para o meu caderno na hora do recreio. Pensamos de tudo ao longo dos anos. O papel carbono foi uma das nossas melhores descobertas, apesar de ele não permitir que a minha amiga escrevesse dos dois lados da página do caderno dela porque borrava a minha cópia. Então, o prejuízo que os pais delas tinham com caderno era minha culpa.

Elas me ajudaram lendo os menus dos restaurantes, me ajudaram falando quais meninos eram meu tipo e quais não, me ajudaram a atravessar ruas, a pegar ônibus, a não morrer atropelada.

As amizades daquela época fizeram com que as tristezas vividas no sofrimento das chacotas, estejam agora, nas minhas lembranças, permeadas por todas os lados das maiores alegrias e aventuras que a infância pode comportar.

Não vou mentir. Tem uma barra que a deficiência impõe que você vai carregar sozinho e ninguém tem como sentir ou saber como é. Essa solidão não é exclusiva, mas é particular. Cada um tem o seu calo que faz com que só essa pessoa saiba como é andar nos próprios sapatos. A deficiência é assim também. Mas você nunca precisa estar solitário, mesmo quando estiver absolutamente sozinho no seu sofrimento. Não é porque as pessoas não entendem ou não sabem como é sentir o que você está sentindo, que elas não querem estar junto de você para te dar apoio.

 

“Eu espio com os meus olhos”. Parte II.

Meu problema de visão começou a causar transtornos na minha vida escolar no CA.

Na Classe de Alfabetização, começamos a ter que copiar coisas no quadro e foi aí que as coisas começaram a ficar difíceis para mim.

O que fazer com uma criança que não enxerga o quadro se a sua metodologia de ensino é quase inteiramente voltada para esse tipo de exposição do conteúdo? A solução da professora foi colar a minha carteira no quadro para que eu pudesse ver e copiar o que estava escrito. Essa solução falhava em dois pontos: em primeiro lugar, mesmo com a carteira colada no quadro eu só consegui enxergar o que estava escrito da metade do quadro para baixo. Lá no alto eu continuava sem conseguir enxergar. Pois bem, a professora escrevia apenas da metade do quadro para baixo. Em segundo lugar, eu só conseguia ver o que estava imediatamente na minha frente. Os quadros das escolas costumam ser grandinhos. Os professores dividem os quadros em duas ou três partes normalmente. Pois então, eu só conseguia ver a parte que estava imediatamente na minha frente. Esse problema tinha uma solução bastante tragicômica. Quando eu acabava de copiar uma parte do quadro, a professora arrastava a minha carteira e me colocava de frente para a próxima parte que eu deveria copiar.

Essa solução não foi viável por muito tempo. Na verdade, tinha um terceiro problema com ela: a segregação que eu comecei a experimentar por ficar tão exposta na frente das outras crianças.

Então, na primeira série, essa técnica foi abandonada (haja braço também da professora, ela nem me esperava levantar para arrastar a carteira).

Idas e vindas ao oftalmologista, certo dia um deles me receitou um monóculo. Uma espécie de binóculo, mas para um olho só. A ideia era que eu o usasse para copiar do quadro. Dois problemas surgiram novamente.

O primeiro problema foi o fato do monóculo ter feito o maior sucesso! Quando eu o tirava da bolsa todas as crianças queriam usá-lo. Eu, envaidecida e cega pela fama e a atenção, emprestava-o sempre. O negócio rodava a sala inteira e, quando voltava para mim, o quadro já tinha sido apagado. Mesmo quando a novidade passou, contudo, o monóculo causava alguns transtornos. O tempo que eu demorava para copiar com ele era muito maior do que o tempo que se leva normalmente para copiar do quadro. Era muito cansativo e pouco prático usar aquele negócio. Eu acabava perdendo a explicação porque ainda estava terminando de copiar; a professora mandava eu parar e copiar depois e não dava tempo, enfim. Ajudava, mas não era perfeito.

Na época do monóculo eu estava na segunda série. Nesse tempo, o problema de visão me causava ainda apenas transtornos sociais. As notas mesmo eram altas nessa época.

Foi na mudança da quinta série que o bicho começou a pegar.

Muitos professores, para começar. Cada um tinha uma postura diferente quando a minha deficiência visual.

Alguns cagavam, outros pegavam alguma criança e a obrigavam a sentar comigo e me ajudar a copiar a matéria, outros acreditavam que eu simplesmente não queria nada com a vida e não era deficiente porra nenhuma, era fresca mesmo.

Veja bem, isso é um problema bizarro que vem com o fato de você ter uma deficiência que não é aparente. Eu sou só um pouco estranha, eu aperto o olho quando estou olhando para alguma coisa. Só isso. Aminha deficiência é meio invisível. Então, muitas pessoas com quem cruzei ao longo da vida simplesmente não acreditavam que eu era deficiente.

Abandonando a cronologia por um momento, eu gostaria de dar alguns exemplos disso que acabei de dizer.

Certa vez uma professora, depois que eu saí da sala para o intervalo, fez o seguinte comentário: “Essa aí, eu aposto que se conversasse menos enxergava mais”. É o tipo de comentário que você faz quando acha que a outra pessoa está de palhaçada. Eu já estava no ensino médio quando isso aconteceu. Meus amigos me contaram o que a professora tinha dito e eu fui falar com a psicopedagoga sobre a situação. Foi ridículo o que aconteceu depois que eu reclamei.

A psicopedagoga foi na sala de aula fazer um discurso horroroso de que nós temos que ajudar os desfavorecidos, necessitados, sei lá. Que eu precisava da ajuda e da compreensão de todos.

Ok. O problema não é pedir ajuda. Ajuda é o que eu pedi a vida inteira. O problema é a posição de inferioridade e incapacidade na qual as pessoas colocam frequentemente os deficientes. Você sente que os outros estão com pena de você. E nem eu nem ninguém precisa desse tipo de sentimento. Qual foi o resultado? Por um dia eu fui tratada que nem uma rainha. Teve gente que fez duas cópias do quadro e entregou uma para mim e me explicaram a matéria timtim por timtim; todo mundo me chamando para sentar junto. No dia seguinte, tudo voltou ao normal e ninguém mais tinha disposição para me ajudar e eu continuava deficiente.

Teve uma outra ocasião que ficou bem marcante para mim. Aconteceu já na faculdade de psicologia. Um menino da minha turma veio falar comigo algumas vezes sobre o problema de visão, vamos chamá-lo de Solícito. Não sei se Solícito falava sério ou se estava zoando mesmo, mas Solícito me perguntava se eu fazia análise, pois o meu problema de visão poderia ser um sintoma histérico. Problemas psicológicos são reais e podem ser extremamente debilitantes, levando até mesmo à morte, mas eu dizia a Solícito que este não era o caso. Exames físicos demonstravam o problema e tal, expliquei tudinho a ele. Mas Solícito parecia querer insistir em dizer que eu não estava curada porque eu não tinha corrido atrás. Não havia feito o trabalho psicológico necessário. Numa outra ocasião, Solícito veio me falar para meditar. “Muitas pessoas encontram a cura na meditação”. Meditar com a intensão de aliviar o estresse, dormir melhor, ajuda mesmo. Pouco. Mas ajuda sim. A visão fica mais embaçada quando estamos estressados e cansados. Solícito não sabe que, às vezes, quando você quer ajudar uma pessoa, você tem que pedir licença e perguntar se a sua ajuda é bem-vinda. Ou melhor, você deve perguntar o que você pode fazer para ajudar o outro e fazer o que foi pedido se for algo possível para você no momento. Eu não tenho que ficar aturando alguém vir me dizer um milhão de coisas que eu tenho que fazer para me curar. Tinham outras coisas, algumas bastante estapafúrdias, que Solícito achava que eu deveria fazer. Como a vez em que ele ficou sabendo de um filósofo do século XVII chamado Hume que havia escrito um texto sobre a visão. Solícito veio me sugerir ler este texto, pois poderia ter alguma coisa de útil para mim ali, se eu não o lesse, poderia estar perdendo a oportunidade da cura.

Solícito e o da professora incomodam, pois são pessoas que tornam levianas as dificuldades que eu enfrento: é só falar menos, é só meditar. Não! Não é só nada. É foda. E já tem um milhão de coisas que eu faço para lidar com isso. Eu me cuido. Não preciso das pessoas ao redor assumindo coisas a respeito da minha condição e me dizendo o que devo fazer. Sou eu que estou “andando nesses sapatos” há anos.

Bom, como eu ia dizendo, lá atrás, na quinta série, já existiam essas figuras que achavam que eu estava mentindo. Esses professores brigavam comigo para que eu copiasse do quadro.

Eu com a caneta e o papel na mão, o quadro a dois metros de distância e, ainda assim, um abismo intransponível entre os meus olhos e as letrinhas embebidas em conhecimento que o professor escrevera no quadro. Ainda assim, uma voz alucinante dizia: pula! Vai! Está esperando o que? Quem você quer ser na vida desse jeito?

Esses eram os professores que chegaram a reabilitar aquela metodologia antiga do CA, lembra? Na quinta série eu voltei a ficar destaca do resto da turma, uma fileira à frente de onde as outras carteiras estavam posicionadas, tendo que me arrastar ao longo do quadro. No CA, eu ficava nessa posição do início ao fim do dia escolar. Na quinta série começou uma confusão só.

Quando o professor descrente saía de sala, entrava algum outro professor que me agrupava com alguma criança para que esta pudesse me ajudar. Na época, isso significava ver o caderno da criança depois que ela terminava de copiar. Sim, depois, porque, enquanto uma pessoa está copiando eu também não consigo ver. Para enxergar de livros ou cadernos, eu tenho que ficar com o rosto a uma distância de mais ou menos dez centímetros do papel. Ninguém conseguia copiar com a minha cabeça no meio do caminho.

Aí vinha o terceiro professor. Esse já não tolerava conversas. E eu conversava com a pessoa que estava me ajudando. Conversávamos sobre a matéria: “Olha, foi esse X aqui que o professor apontou. Agora ele está falando desse Y aqui. Ele trouxe aquele X para cá”. A criança que me ajudava também narrando a aula para mim e ia apontando no caderno para que eu acompanhasse.

Ninguém está dizendo que é santo aqui. Claro que eu conversava sobre a vida também, mas assim faziam todas as outras crianças. Bom, mas o professor que acabou de entrar em sala não gostava. Então, eu era separada novamente da amiga. E fico eu olhando para o teto pelos próximos cinquenta minutos.

Esse clima insano da quinta série me tirou dos eixos. Some a isso tudo que eu já descrevi o fato das matérias terem se complexificado, o que me levou à recuperação de umas três matérias, no mínimo, eu já não me lembro mais quantas exatamente.  

Eu comecei a considerar a escola um ambiente extremamente hostil. Olha que estamos ainda na quinta série e eu ainda não falei das consequências do problema de visão para a socialização com as outras crianças.

“Eu espio com os meus olhos”. Parte I.

“A capacidade que as pessoas possuem de transformar dinheiro em qualidade de vida é bastante variável.”
Me surpreendi quando li essa afirmação, outro dia, no texto do economista, vencedor do prêmio Nobel em 1988, Amartya Sen.
Parei para refletir sobre a minha própria condição. Não foi surpreendente quando, algumas páginas depois, Amartya Sen afirmou que os deficientes estão entre as pessoas que possuem maior dificuldade em realizar esta conversão.
Quando você não tem dinheiro, não tem como converter dinheiro em qualidade de vida. Óbvio. E isso é uma merda, todos concordamos.
A questão é que quando você tem dinheiro, mas possui algum tipo de deficiência, pode não ser tão fácil assim converter qualquer quantia que seja em qualidade de vida. Lembra d’Os Intocáveis? Mais ou menos isso: cara podre de rico, mas miserável. O dinheiro dele não garantia uma vida boa.
Digo eu, com argumento de autoridade, enquanto deficiente visual, habitando o Rio de Janeiro.
Tem muitas coisas que eu gostaria de compartilhar a respeito das minhas experiências com o meu problema de visão que eu vou desmembrar em alguns textos.
Começarei hoje pelas apresentações: minha deficiência visual nem é das piores. Eu tenho uma má formação no nervo ótico. Mais especificamente, uma desmielinização do nervo ótico. Isso quer dizer que eu tenho falhas na bainha de mielina que reveste este nervo. Isso faz com que o impulso elétrico se dissipe ao longo do percurso até o cérebro, o que torna a minha visão deficiente. Esta má formação é bilateral, quer dizer que afeta os dois olhos. Esse é um problema congênito e estável – eu nasci com ele e não vai piorar nem melhorar. Além disso, estou com um pouquinho mais de sete graus de miopia em cada vista e tem um astigmatismozinho aí também. Então, eu uso óculos, por causa da miopia, mas eu não consigo me adaptar porque o óculos briga com o problema no nervo ótico.
Pensa assim: imagina que você tem um canudo cheio de furinhos. Dá até para beber, mas vem muito pouco líquido. Aí você começa a chupar com força. Beleza, vem mais líquido. Mas em dois minutos você está exausto. Eu uso óculos e melhora um pouco. Não o suficiente para aturar a dor de cabeça que sinto ao usá-lo por muito tempo.
Tenho 20% da visão com a correção máxima, isto é, com o óculos. No dia a dia, não faz muita diferença a qualidade de visão que ele me proporciona.
O nome é visão sud-normal, você pode falar baixa visão que dá no mesmo.
Perspectiva de cura? Cirurgia com célula tronco com o objetivo de reconstruir a bainha de mielina. Ainda não existe previsão para que este tipo de cirurgia esteja disponível como tratamento viável e acessível.
Adaptação? Estou eu aqui, não estou?
Mas… quando eu digo para vocês que eu brincava de inventar figuras em provas de matemática (veja aqui), não era simplesmente porque eu era uma aluna “relaxada” (o que também não seria mal algum, vamos problematizar esse ideia aí depois. Mas o caso é que se uma criança gosta de estudar isso é um mero acaso, não é a escola que incentiva essa postura). O fato é que eu nunca consegui enxergar o quadro. Isso tornava matemática uma matéria especialmente complicada. Matérias exatas de um modo geral, na verdade, e biologia também, pois os professores usavam demais o quadro.
Cara, se a escola já é insuportável quando você consegue, estando a fim, aprender alguma coisa, acompanhar a aula, imagina ficar horas e horas morrendo de sono, sem poder falar com seu amigo, que está do seu lado, olhando o professor apontar coisas no quadro, sendo que você não consegue nem ver que tem alguma coisa escrita no quadro. Imaginou? Agora imagine-se fazendo isso durante doze anos. Foi foda. Tirando os inúmeros babados que rolavam…