Do Renascimento ao Século XVII d.C. Parte III

Capítulo V

 

David Hume trará em seu trabalho algo que mais parecerá uma defesa de toda e qualquer ação do homem, à medida que, segundo ele, todas as suas ações são realizadas de acordo com as leis imutáveis que regem a natureza. Leis que teriam sido criadas por Deus e que garantiriam o seu controle indireto sobre todos os eventos.

 

A providência divina não aparece imediatamente em cada operação, mas tudo governa por aquelas leis gerais e imutáveis estabelecidas desde o início dos tempos. Todos os eventos, em um sentido, podem ser ditos ações do todo-poderoso, todos procedem daqueles poderes com os quais ele dotou suas criaturas. Uma casa que desaba por força de seu peso não é levada à ruína por sua providência mais do que o é uma casa destruída pelas mãos dos homens (…). Quando as paixões incitam, quando o juízo dita, quando os membros obedecem, tudo isso é operação de Deus e, por esses princípios animados, assim como pelos inanimados, ele estabeleceu o governo do universo (Hume apud Puentes, 2008, p.112).

 

Supor que o homem pudesse fazer algo que fosse contra essas leis seria supor que, em alguma medida, ele possuiria poderes e faculdades que não aquelas que seu criador o concedeu. Outro exemplo que poderia ser analisado nesse sentido e que se encontra no quadrante das questões que se impunham a David Hume era o da vacinação. A sociedade francesa da época, por uma superstição religiosa, era levada a ir contra as campanhas de vacinação, uma vez que imaginavam estar indo contra a providência divina ao prevenirem uma doença. Hume pergunta então, por que não seria igualmente ilícito construir casa, abrir estradas e etc. (Minois, 1998, p. 312-313).

Deste modo o suicídio não seria contrário à lei de Deus. Quanto a ele ser contrário à sociedade, Hume afirma que nos foi dada também por Deus a capacidade de chegar a este veredicto. Através dos princípios que ele fez serem característicos da natureza humana, como, por exemplo, o arrependimento e a vergonha. No entanto, segundo o filósofo, o suicídio não seria um mal para a mesma, ao passo que o suicida poderia, no máximo, deixar de fazer um bem para a sociedade, nunca lhe fazer um mal. Por fim, ele também não poderia fazer um mal contra si mesmo, pois um indivíduo só deixaria a própria vida caso ela tivesse se tornado apenas um infortúnio indigno de ser vivido. É indispensável ressaltar, no entanto, que Hume se recusou a publicar este capítulo de sua obra, e parece, segundo Minois, que isto se devia a uma autocrítica, que o levara a tomar seus argumentos por fracos ou banais (op. cit., p. 314). (Eu corri atrás desse tratado para lê-lo. Não estou segura de ter encontrado a versão autêntica do autor. Esse deus que ele apresenta na citação é esse deus das leis naturais. Leis que teriam sido criadas no início dos tempos e que regem e regirão sempre todos os eventos. O homem é totalmente naturalizado aqui, seus emoções, desejos e sentimentos, funcionando como leis mecânicas, me parece. Por isso seriam também determinadas por essas leis eternas e imutáveis. Talvez seja esse o ponto de fraqueza do argumento. Isso resultaria em um potente determinismo. Complicado).

Por outro lado, a título de exemplo, pode-se mencionar uma provocação feita por Berkeley quando este diz que são os “pequenos filósofos” aqueles que se põem em defesa da morte voluntária e aponta com desprezo o fato de não terem coragem para aplicarem suas ideias e se matarem (op. cit., p. 238). (Aeewww! Maior indiretaaaaaaa! Gente, os filósofos diziam umas baixarias em suas discussões intelectuais, eram tão irônicos na discussão. O piro é que eles escreviam isso em seus livros. O mais escrachado? Karl Marx, sem dúvida. Falava atrocidades de seus oponentes. Muito hilárias certas passagens de seus textos).

Não se deve deixar de considerar, contudo, a reflexão política que pautará muitas das discussões filosóficas da época. A recente formação dos Estados e o grande número de pensadores que se dedicaram ao tema do governo colocaram o suicídio em um lugar peculiar de denúncia às condições da vida social. (Esse é um ponto muito sério. Podemos prevenir o suicídio com a melhoria das condições sócias da existência?). Uma consideração a ser apresentada é a de Rousseau. Sua perspectiva é exposta em um romance de sua autoria que trazia várias de suas ideias. Aquelas que diziam respeito ao suicídio eram enunciadas por dois de seus personagens. Pela voz de um deles, Rousseau apresentava argumentos segundo os quais seria lícito o suicídio para, na voz do outro, refutá-los, apontando a falta que este representaria para os seus familiares, a sua comunidade e, por fim, à sociedade como um todo. A oposição de Thomas Hobbes avança no mesmo sentido. Esses autores passaram a considerar o suicídio como uma falta, sobretudo, para com a sociedade, acrescentando a estes argumentos uma novidade: o fato de considerarem ser o dever do Estado e de seus governantes assegurarem uma vida que valha a pena. (Então, seria dever do Estado assegurar as condições mínimas de uma boa vida). Seus argumentos representaram uma crítica à condição da vida social da época, na medida em que, para eles, o necessário seria prevenir as causas do suicídio e não punir o ato. (E as causas do suicídio, para estes autores, teriam raízes sociais. Essa é era uma ideia absolutamente nova na época).

A respeito da ambiguidade dos posicionamentos filosóficos, ela pode ser representada, de um modo geral, por La Mettrie: “A morte é o fim de tudo; depois dela, repito, há um abismo, um nada eterno; tudo está dito e tudo está feito; a soma dos bens e a soma dos male é igual; já não há mais cuidados nem uma personagem a representar; a farsa está concluída” (La Mettrie apud Minois, 1998, p.277). Mas, em outro momento, ele afirma: “Qual será o monstro que, numa dor momentânea, arrancando-se da sua família, dos seus amigos e da sua pátria, não tem como objectivo libertar-se das penas dos deveres mais sagrados?” (op. cit., p. 294). Acerca desses posicionamentos, cabe considerar:

 

(…) nestas condições, porque se deve ainda hesitar? A posição dos filósofos revela-se finalmente mais ambígua. Manifestando pouco gosto pelo suicídio e retirando à morte o seu caráter medonho, apenas podem justificar o desejo de viver através de um balanço positivo da existência, o que não é o caso de todos (Minois, 1998, p.277).

 

(Ok. Eu acho que essa parte não está muito clara. Qual é a ambiguidade? O suicídio, nesta época, séculos XVII e XVIII, passa a ser discutido por fora da esfera religiosa. Céu e inferno não estão muito presentes na discussão filosófica. A morte começa a perder seu caráter medonho, como diz a citação. Começa a se desfazer aquele ar de pecado que dominou a visão acerca do ato na Idade Média. Além disso, a morte passa a ser louvada pelos artistas, romantizada. Por conta dessa mudança na maneira de encarar a morte e o suicídio, se coloca a pergunta: se a morte não é o maior dos horrores, por que continuar vivendo quando o saldo da existência é negativo?). Hobbes, Rousseau, Voltaire, Holbach e outros, contudo, dão um novo desfecho as essas ambiguidades de posicionamento. Eles são aqueles que escolhem o ser, mas na condição de que este ser se dê uma maneira digna, uma vez que este “vale de lágrimas” se torne em uma permanência cheia de alegrias (op. cit., p. 259).

Esses questionamentos filosóficos impõem grandes dificuldades aos religiosos que não podem se alinhar nem àqueles que escolhem o ser, nem àqueles que escolhem o não ser, pois “tornar a passagem nessa vida muito agradável é pôr fim à aspiração da salvação eterna no além, que é o motor da moral; autorizar o homem a dispor da sua vida é frustrar o plano divino e suprimir assim as indispensáveis provações que nos permitem alcançar o céu” (op. cit., p.259). (Bizarro. Mas a religião é exatamente assim. Ela tem que manter os fiéis naquela tensão exata entre o desespero absoluto que leva uma pessoa a tirar a própria vida e a felicidade tranquila e despreocupada que faz com que eles esqueçam de temer a deus).

Enfim, além das posições filosóficas que emergem neste período, começa a ocorrer, com os avanços da medicina, um processo de secularização do suicídio e com ele, também, um processo de desculpabilização do suicida, que passa a ser considerado um doente.

Em meados do século XVII, o estado melancólico é re-significado, afastando-se do entendimento medieval e do caráter reflexivo atribuído pelos romanos. Ele passa a ser entendido como uma configuração psicológica do indivíduo. Dentro deste quadro cabe ressaltar a concepção que Robert Burton traz em seu tratado de 1621 Anatomy of Melancholy (op. cit., p. 126), na qual a melancolia impregnaria a natureza de alguns homens, fazendo-os predestinados a um temperamento sombrio. A mudança operada traduz-se pelo fato de que “O desespero é uma noção moral, é um pecado, mas a melancolia é uma noção psicológica, é um desequilíbrio do cérebro” (op. cit., p.125). (Com a ideia de melancolia ocorre a mesma coisa que eu quero mostrar neste trabalho em relação ao suicídio: Não existe uma essência do estado melancólico. Este é um conceito que já foi preenchido por diferentes discursos, que já teve, por horas, seu significado completamente deslocado. Acabamos de mencionar isso. A melancolia foi deslocada para significar possessão demoníaca no período medieval e agora ela passa a ser entendida cientificamente, o que também difere do entendimento antigo, mais racional). Contudo, não se deve perder de vista que o caráter ainda mágico e fantasioso das explicações científicas da época. No momento de seu surgimento, elas não produzem de imediato o ocaso das explicações religiosas. E, principalmente, elas não surgem com um apelo tão grande junto às massas. (Claro, trata-se de um longo processo que se estende ao longo dos séculos seguintes).

Quanto ao tratamento designado para estes homens, ele seria de caráter psicossomático e consistiria na tomada de providências simples: ouvir determinados tipos música, tomar banhos de sol, ter uma vida sexual equilibrada, dedicar-se a estudos que absorvam o espírito, mas sempre de forma moderada, dentre outras atividades deste gênero. (Ainda hoje isso aqui é válido). Um último ponto a se destacar no posicionamento de Burton, que ainda manterá unida a discussão médica e a discussão filosófica da época, é a sua crítica à organização socioeconômica, que ele aponta como uma das causas do agravamento dos estados melancólicos e uma das principais causas dos transtornos psíquicos. (Havia um movimento de crítica social intenso pairando no ar daquela época). Encontramos novamente a ideia do suicídio como uma acusação da sociedade incapaz de assegurar a felicidade de seus membros que preferem o desconhecido a um mundo que, para eles, não valia a pena face aos males que o configuravam.

No decurso deste processo de secularização do suicídio o suicida passa a ser encarado cada vez mais como vítima dos aspectos que o determinam biológica, social e psicologicamente, abandonando o lugar da culpa. Mais tarde, ainda no âmbito da medicina, encontraremos outros pontos de explicação de um tal estado, que enfraquece a alma e torna inconsistente o caráter: a explicação do lunatismo e os diagnósticos de hipocondria e histeria. O primeiro tema levantava reflexões acerca da influência da lua no comportamento das pessoas e na própria fisiologia humana, considerando que em determinadas fases da lua tal ou tal pessoa se torna mais melancólica e, em outras, mais agressiva e assim por diante. (Isso existe até hoje no senso comum. Acredito que é por efeitos do pensamento dessa época sobre o lunatismo que até hoje chamamos certas pessoas de lunáticas). O segundo tema destaca o Treatise of Spleen and Vapours, or Hipochondriacal and Hysterical Affections, publicado em 1725 de Richard Blackmore, que discursará sobre tais patologias e dará a elas um local de bastante relevância (op. cit., p.300). Na hipocondria, o paciente usualmente atentava contra sua vida na tentativa de escapar do que ele acreditava ser o estado irreversível de dor e sofrimento no qual ele se encontrava. Esse estado (existente unicamente na imaginação dos indivíduos) consistia na presença de uma doença grave e incurável.

Forbes Winslow, em seu livro Anatomy of Suicide, publicado em 1840, exemplifica inúmeros outros casos de suicídio tidos como decorrentes de males físicos. Ele expõe em seu estudo (que possui também uma parte histórica), as perspectivas de sua época a respeito do tema. O autor inicia o capítulo VIII de seu livro, que versa sobre as causas físicas do suicídio, dizendo:

 

(…) as causas físicas que são comumente consideradas produtoras de disposição suicida – o clima, as estações, a predisposição hereditária, danos cerebrais, sofrimento físico, doenças do estômago e do fígado complicadas pela melancolia e a hipocondria, insanidade, secreções suprimidas, intoxicação, vício anti-naturais (…)[1] (p. 130).

 

O foco das disputas analisadas pelo autor será o modo como os fatores físicos interagem com os psicológicos e com o meio que cerca o paciente. As formas de tratamento também foram diversificadas. Um paciente que atentava contra a própria vida poderia ser tratado com transfusão sanguínea, internado nos hospitais gerias, submetido a lavagens intestinais ou a sangramentos (quando se realizavam cortes no paciente e deixava-se escorrer quantidades determinadas de sangue). O que se pode verificar de comum nos autores da medicina e da psiquiatria emergente nesse período, é a busca pelo que havia de determinante físico no ato de tirar a própria vida. (E esta é a era dos tratamentos desumanos horríveis que vemos na história da medicina. Nossa! Eram muitos tratamentos monstruosos. Interessante porque hoje em dia agente sabe que certos remédios fazem você passar mais mal do que a doença em si. Esse é um dos pontos da luta atual contra a utilização dos remédios psiquiátricos. Existem profissionais que afirmam que esses remédios fazem mais mal do que bem. O tratamento, nessa época, já era desse tipo, do tipo que faz mais mal do que bem. Às vezes, o paciente sobrevivia à tentativa de suicídio, mas morria do tratamento. Isso gera um grande dilema ético com relação ao tratamento que está vivo até hoje, como eu falei. Basta pensar na questão do suicídio assistido).

Então, em um certo sentido, o que se verifica a partir daí é a banalização da ideia de morte voluntária. Isso pode ser a princípio depreendido dos motivos que surgem nessa época como a causa desse tipo de morte e até mesmo com o início dos relatos sobre aqueles que chegam mesmo a simular um suicídio. Os suicídios por honra passam a ser cada vez menos numerosos, os por motivos econômicos passam a ocorrer cada vez mais, surgem os suicídios por vingança, os suicídios como instrumento de chantagem, enfim, o que se verifica é que esta atitude se torna parte das relações sociais, como mencionado há pouco. Seu caráter de denúncia e de acusação o torna cada vez mais um meio de chantagem e de pressão nas relações interpessoais. Corrobora para essa afirmação o surgimento dos bilhetes dos suicidas.

 

O suicida tende assim a inscrever o seu gesto numa certa lógica, pretende dar-lhe um sentido e um prolongamento para que seu sacrifício tenha consequências imediatas no ambiente ou na sociedade inteira se se trata de um motivo mais geral. Mas essa prática inscreve-se mesmo numa tentativa de racionalização do ato (op. cit., p. 356).

 

(Eu nunca tinha parado para pensar sobre isso antes. Até o período da alfabetização das populações não tinha essa de bilhete de suicídio. Hoje em dia, a gente fica ainda mais devastado quando aquele que se mata não deixa um bilhete, uma carta, qualquer coisa. A nossa experiência atual do suicídio ainda é essa de querer inseri-lo em uma lógica que se encaixe na vida do suicida). Essa lógica na qual é inserido o suicídio é uma lógica humana, que sustenta as causas do ato no âmbito da motivação consciente; o que está em jogo é a manifestação do indivíduo ele mesmo. É claro que, a partir destas, inúmeras leituras para o ato serão propostas. Deste modo a discussão a respeito da morte de si começa a se fazer em campos cada vez mais diversificados e não somente no que tange a moral.

A imprensa, por sua vez, teria um importante papel a desempenhar nesse momento, pois é frequente a publicação destes bilhetes nos jornais, juntamente com a história da vida do suicida, que é narrada muitas vezes de maneira romantizada ou escandalizante.

Dentre todos esses debates, cabem agora (breves) considerações acerca da jurisprudência com relação ao ato de matar-se a si mesmo.

Aos poucos, o direito vem sendo cada vez menos influenciado pela religião e cada vez mais pelas concepções filosóficas e, posteriormente, pela medicina. Deste modo, observa-se um recuo crescente da condenação do suicídio.

Segundo Minois, a cada momento o processo de julgamento de um caso de suicídio se torna mais demorado e criterioso. Em alguns casos chega a se verificar a duração de mais de dois anos para que o processo se conclua; durante esse tempo o corpo permanece preservado para que se proceda, ao final do julgamento, a pena ou o enterro. O processo constitui uma narrativa detalhada da maneira pela qual ocorreu a morte, das condições em que foi encontrado o morto, dos testemunhos e, por fim, o veredicto, seguido (quando for o caso) do estabelecimento da pena a ser executada. Não se pode deixar de observar que esse tipo de procedimento gera situações até mesmo absurdas, que vão desde a tentativa de dissimulação da família da ocorrência da um suicídio à presença do cadáver em putrefação às audiências de seu julgamento[2]. (Isso mesmo. Existem relatos de corpos de suicidas que passaram até dois anos preservados em sal grosso, período que durou o julgamento. E o corpo, quando necessário, era levado ao tribunal).

Por conta desses e outros fatores, como no caso referido de demora da conclusão do processo, a exposição, nas praças das cidades, de cadáveres em tal estado, começam a ocorrer queixas contra a exposição dos mesmos, o que, além de causar repúdio moral, ainda representava um prejuízo aos ares da cidade e à saúde local (op. cit.,).

Nesse sentido, o higienismo tem um papel importante a desempenhar, uma vez que os conhecimentos da medicina passam a influenciar não só no direito (demanda dos pareceres médicos), mas também na própria organização das cidades (necessidade de ventilação dos grandes centros urbanos, higienização dos espaços públicos, determinação do modelo familiar saudável e das obrigações nos cuidados com as crianças). O tratamento dos suicidas não foi deixado de lado, passou a ser um caso de saúde pública.

 

 

[1] Tradução livre realizada pela autora.

[2] A exposição do processo de um desses julgamentos é fornecida por Minois (1998, p.348-349)

Do Renascimento ao Século XVII d.C. Parte II

Capítulo V (Vou dividir o capítulo, na verdade, em três partes, para tornar a leitura mais palatável).

 

Quanto ao quadro geral do número de suicídios encontrado na época, cabe apontar para o seu aumento significativo. No entanto, este fato deve ser tomado apenas como demonstrativo de uma maior eficiência dos relatos deste tipo de morte e não como um aumento de fato da ocorrência do suicídio. (Ou seja, a ideia então é que não houve um aumento real do número de pessoas que tiram suas vidas ao longo de diferentes períodos históricos. O número de suicídios sempre foi estável proporcionalmente em relação a população absoluta).

Os relatos de morte por suicídio feitos por volta e a partir do século XVI começam a ocorrer com considerável eficiência e em maior número. Para que isso fosse possível não se deve deixar de considerar o já mencionado surgimento da imprensa, o grande número de jornais e folhetos que passam a circular cotidianamente, a maior facilidade da circulação de informações e a maior frequência e disponibilidade das traduções.

Pode-se atentar também para o que Foucault observou: o fato de que, neste período, começa a ocorrer um maior interesse do Estado em manter um controle mais rigoroso de toda sorte de eventos (1998). Surge nesse período o que ele denominou poder disciplinar, que encarna o interesse pelo controle minucioso dos corpos de todos os cidadãos. O próprio surgimento da estatística é apontado pelo autor como um instrumento desse controle. Começam a ser controladas as taxas de natalidade e mortalidade, o número de suicídios e assim por diante. Enfim, o que se verifica é o surgimento de diversos índices que favorecem o conhecimento e o controle dos indivíduos. Quanto ao controle do número de suicídios, especificamente, Minois cita à exaustão exemplos de todo tipo de listas ou locais nos quais as relações de causa e morte eram apresentadas, salientando que haviam aquelas dedicadas exclusivamente à morte voluntária (Minois, 1998, p.229 e 230).

Chegamos então ao momento oportuno para a introdução dos debates filosóficos a respeito do tema. E, mesmo que não fossem em grande número, os filósofos que fizessem deste um de seus principais temas, a grande maioria deles deu a sua contribuição para o debate (op. cit.).

Em um primeiro momento, a loucura emerge como um foco para o pensamento, na medida em que se apresenta como “refúgio, fuga e explicação” da sociedade e de tempos tão conturbados como os séculos XV, XVI e XVII, nos quais inúmeras guerras, pestes, intensos conflitos religiosos, mudanças na configuração política e econômica dos Estados, colonização de novas terras e muitas outras mudanças perturbam a consciência da época e, misturado com ela, sendo obscuro o limite que dela o separa, se encontra o suicídio.

O entendimento da loucura passa por uma brusca mudança em um curto período. As posições de Sébastien Brant e Erasmo de Rotterdam, tal como demonstrado por Minois (op. cit., p.100), exemplificam muito bem essa mudança, que se daria entre o entendimento da sabedoria e da loucura. A exemplificação mencionada seria feita pela apreciação de duas sentenças, cada uma de um dos autores: “procurar a morte é uma loucura, pois a morte sempre nos encontrará” – enunciada por Sébastien Brant – e “Quem são aqueles que por desgosto da vida se entregam à morte? Não estarão eles mais próximos da sabedoria?” – enunciada por Erasmo de Rotterdam. (Disputas intelectuais da época. O suicida é são ou louco? Qual é o sentido atribuído ao ato de tirar a própria vida? Essa é uma pergunta com a qual nos debatemos até hoje. A distância entre o pensamento dos gregos e o atual é bastante evidente em certo sentido, no que diz respeito ao debate do suicídio no ocidente. Mas com as discussões que surgem já aqui no renascimento é bem fácil se identificar. Já existem muitas ressonâncias com o modo de pensamento atual). O primeiro afirma então que é necessário ser louco para querer se matar e o segundo que é necessário ser louco para querer ficar vivo. O último ainda completa:

 

Basta ver todas as calamidades a que está sujeita a vida dos homens, a miséria e obscenidade de seu nascimento, a dificuldade da educação, as violências a que está exposto na infância, os medos a que está submetido na idade madura, o fardo da velhice, a dura necessidade de morrer, porque sempre ao longo da vida sofrerá todas as doenças que o assaltam, os acidentes que o ameaçam, os males que lhe caem em cima, os rios de fel que envenenam todas as coisas, sem falar dos males que o homem inflige ao homem: pobreza, prisão, desonra, vergonha, torturas, armadilhas, traição, injúrias, velhacarias (…). Como vê, penso eu, o que se poderia esperar se os homens fossem mais sábios: seria preciso outro barro e um novo Prometeu para o modelar (ibidem).

 

Outros aspectos desse debate se encontram nos estudos feitos por Montaigne. Ele afirma que o suicídio não é uma questão de moral abstrata, não podendo ser pensado em absoluto e valorado por posições universais. (Amo esse filósofo)! Apenas o indivíduo por si mesmo, perante uma situação particular poderia avaliá-la e a todas as possibilidades que apresenta, chegando por tal avaliação à saída que lhe pareça mais razoável, sendo apenas neste nível o suicídio passível de valoração.

A razão desponta neste momento como aquilo que deve iluminar qualquer sorte de reflexões e o suicídio não será considerado por outro prisma por Descartes. O filósofo não se deterá no tema, mas esclarecerá seu posicionamento em algumas de suas correspondências pessoais (op. cit., p. 202). A razão não nos diz nada sobre a morte, se existe ou não algo depois dela. Cometer suicídio seria, então, trocar o certo pelo incerto, o que constitui um erro. O suicida não é, nesta perspectiva, um pecador, mas alguém que comete um erro de juízo; e aquele que erra pune a si mesmo. (Deu para ver muito isso com o meu estudo. A galera não necessariamente se debruçava sobre o tema do suicídio, mas tinha que dar um pitaco).

Cabe observar que esta posição não deve ser tomada como representativa da dos racionalistas de um modo geral, assim como a posição de Hume, a seguir apresentada, não reduzirá de modo algum a dos empiristas. Pelo contrário, o que se encontra comumente é uma intensa discordância entre os filósofos e uma ambiguidade muito grande das posições particulares. (Justamente porque era uma discussão muito viva. Poucos grandes tratados filosóficos foram produzidos sobre o tema da morte e do suicídio especificamente por esses filósofos pops, mas eles sempre tinham algo a dizer. Sobre tudo; na verdade, eles sempre tinham algo a dizer. Falo isso com um pouco de amargor e ressentimento porque a academia, tal como eu a experimento, é muito rigorosa quanto a quem pode dizer alguma coisa. Como se a senioridade ou o título assegurassem que tudo que sai da boca de alguém são pérolas de sabedoria. Esses filósofos falavam cada absurdo. Leia os textos do Kant sobre mulheres, por exemplo, e você vai saber do que estou falando. Observação: se você acompanha meus textos, sabe que eu não perdoo crueldade e babaquice por conta do período histórico em que uma pessoa viveu, então não venha me dizer que era outra época. A “vida” sempre foi a “vida” e o ser humano sempre apenas teve uma destas e muitas mulheres morreram por causa dessas ideias e práticas e não voltarão à vida nunca mais. A gente fica pagando pau para as ideias dos filósofos, tentando salvá-los de suas atrocidades intelectuais e morais, mas resiste em ouvir os jovens, vivos, que querem gritar e expressar suas ideias. Se é para ouvir babaquice eu prefiro ouvir de alguém com quem eu consiga gritar de volta e não das páginas de um livro reverenciado escrito por um velho morto. Essa é a ideia. Parece que o caminho da graduação para o pós- doutorado é o caminho do “rejuvenescimento” do autor que você estuda. Como assim? Na graduação, a maioria dos autores que eu estudei eram senhores veneráveis que morreram velhos já há muitos anos, no mestrado, eu já comecei a estudar uma galera mais atual, se não o autor principal, pelo menos os comentadores, um ou outro vivo ainda. Agora, no doutorado eu estudo muita gente que está viva ainda e produzindo e que está na casa dos cinquenta anos! No pós-doc eu devo conseguir conhecer e debater com algum intelectual que regule comigo. É isso. Você tem que ir galgando degraus para ser ouvido. O problema é que você aprendeu a calar por tanto tempo, que quando chega a sua hora de falar, o que te resta a dizer já não carrega a potência da revolta da juventude, que sempre foi o que fez avançar o mundo. Eu vou parar por aqui hoje, porque acho essa ideia muito importante e quero que você medite sobre ela. Qualquer coisa discuta comigo nos comentários. Para a sua sorte, eu estou viva e você não é obrigado a baixar a cabeça para falar comigo :P).

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

Do Renascimento ao Século XVII d.C. Parte I

Capítulo V

 

(Como este capítulo ficou grande, vou dividi-lo em duas partes. Na verdade, ele não ficou grande. Este foi o único capítulo que saiu com o tamanho padrão de uma monografia. As monografias geralmente são compostas por três capítulos, cada um com dez páginas. Eu acabei fazendo vários microcapítulos, o quinto foi o maior e ficou com onze páginas). Por volta do século XV d.C., alguns eventos se destacam e assumem considerável relevância no que diz respeito ao presente tema. Tanto na defesa do direito à morte voluntária, pelo questionamento da moral religiosa vigente, operada pelos humanistas, quanto na oposição à mesma, operada agora tanto pelo cristianismo quanto pelas religiões filhas da Reforma. (Período difícil de estudar assim, com uma varredura teórica sobre um tema específico, pois são muitas vozes diferentes em conflito. O que fizemos foi pegar um autor de referência e correr atrás dos autores que ele menciona).

Os primeiros humanistas redescobrem toda a riqueza moral do pensamento pagão e o retomam, o que impulsiona uma busca pela grandeza que pode estar por trás do ato de matar a si mesmo. Essa retomada se torna mais marcante e relevante, sobretudo, no âmbito da arte, da literatura e das peças teatrais (Minois, 1998). As duas últimas, no que diz respeito ao questionamento da visão comum sobre o suicídio, se tornam especialmente importantes. A literatura, graças a uma série de avanços tecnológicos do período, como, por exemplo, o surgimento da imprensa, passa a ter um alcance muito maior, difundindo mais rápida e facilmente as ideias da elite intelectual. Já as peças teatrais as difundiam inclusive no meio das grandes massas.

Por outro lado, as religiões emergentes da Reforma – luteranos, calvinistas e, mais tarde, anglicanos – apesar de trazerem consigo intensos questionamentos da Igreja católica, possuem uma visão sobre o suicídio que não se mostrará tão diferente e, sem dúvida, não será menos rigorosamente depreciativa. Para aqueles o suicídio seria um ato cometido pelo próprio demônio, sendo, deste modo, o suicida um possuído que passaria a ser exorcizado caso sobrevivesse a uma tentativa de suicídio. A redução do número de casos de suicídio no seio da própria comunidade se torna extremamente importante para cada uma dessas religiões na medida em que a estatística do suicídio traduz um índice de “satanização” da mesma. (A religião parece começar a adotar aqui essa postura mais paternalista, pensar no fiel como um reflexo do que prega a religião e do que prega a própria igreja. Antes isso não importava tanto. Esse negócio do exemplo do “bom cristão” não valia para o povão”).

Dentre as mudanças operadas pelos questionamentos dos protestantes, no entanto, podem ser citadas algumas bem relevantes. É realizada a primeira tradução da Bíblia, o que faz com que sejam dispensáveis para a sua leitura a missa ou grandes encontros, nos quais a presença das autoridades eclesiásticas era necessária. (O que foi um avanço, convenhamos). A prática religiosa acaba por se tornar algo muito mais particular, passando a valorizar a livre interpretação das Escrituras pelo indivíduo. A relação do fiel pode agora se estabelecer diretamente com Deus, sem a necessidade da mediação da Igreja. Estas novas práticas religiosas acabam dando lugar a um individualismo que se apresentará de maneira crescente na Europa. E para isso irá corroborar também a mudança da organização econômica dos Estados. O mercantilismo e a ascensão da burguesia trarão consigo um individualismo creditário de novas formas de competitividade, de organização do trabalho e da produção, além de novos valores e metas econômicas e políticas. Em decorrência desses fatores, o que se observa é o aumento da lista de razões que levavam ao suicídio, na qual se incluem agora os suicídios por falência, desemprego, alcoolismo e outros fatores ligados às condições econômicas. (Eu também sempre tive um pé atrás nessa coisa de “um aumento no número de razões” para se matar. Certa vez, numa aula de história da psicologia na faculdade, estávamos discutindo produção de subjetividade. Um garoto levantou a mão e disse: “Mas então quer dizer que na Grécia não tinha tanta produção de subjetividade, pois lá não tinha moda, shopping, televisão, ou seja, existiam menos fatores que se entrecruzavam, dando origem ao que chamamos de subjetividade. Não! Os gregos tinham “tanta subjetividade” quanto nós, mas suas experiências eram bastante diversas. Eu penso mais ou menos assim, eles deveriam ter tantos motivos para tirar a própria vida quanto nós, mas eram motivos absolutamente diferentes. Se no século XVII surgia o problema do desemprego, talvez na Grécia uma pessoa se matasse pensando que Zeus estavam descontente com ela. Não se trata de um maior ou menor número de motivos, mas de experiências diversas).

Mas, ainda com relação aos posicionamentos religiosos, não se pode deixar de observar a contra-investida católica, que não será de afrouxamento da condenação, mas de promoção de certos modos de espiritualidade que pregam o completo desprezo por si mesmo, o próprio corpo e suas necessidades, e pelo mundo. Dentre essas práticas se destacam a “espiritualidade do aniquilamento” ou a “abnegação de si”. Cabe observar que, na realidade, esta emerge com Mestre Eckhart no século XIII. Segundo seus ensinamentos há um caminho a ser percorrido pelo homem que se inicia no recolhimento daquelas energias que são dispensadas as coisas, retirando delas a importância que possuíam; essa é a abnegação do mundo. A seguir, esse homem deve desprender-se de si mesmo, encontrando aí a paz e a serenidade. A abnegação, deste modo, quer chegar ao nada de modo que “entre a perfeita abnegação e o nada não pode haver coisa alguma” (Weischedel, 2006, p.116). A essência autêntica do homem se realizaria precisamente aí, no alcance desse nada que é o fundamento de sua alma, no qual se estabelece uma relação direta com Deus. Pode-se concluir daí que “toda nossa essência não reside em nada mais que um aniquilar-se” (ibidem). Essa forma de espiritualidade se apresentaria como uma segunda opção ao suicídio físico e restaria às almas melancólicas, obrigadas a recusar o mundo ainda que condenadas a suportar a existência. (Ainda hoje em dia eu reparo experiências que se assemelham a esta filosofia em certo sentido. Existem pessoas que, em momentos de melancolia perdem a fome, a vontade de realizar qualquer tipo de atividade, perdem o sono, o prazer. Parece que começam a viver em um estado de abnegação de si e do mundo). Seria uma espécie de suicídio espiritual, um aniquilamento simbólico que teria como repercussão prática um afastamento do mundo. Nas palavras de Minois:

 

Recusa do mundo, recusa da vida pessoal, recusa da consciência individual, vontade de se fundir no grande todo a que uns chamarão nada e outros Deus, deixar de ser eu mesmo, apagar-me inteiramente: eis outras tantas características comuns com o suicídio físico. (1998, p. 207)

 

De um modo geral, essas duas formas de relação com o próprio corpo e com o mundo negarão ao indivíduo o prazer mundano e o interesse por si próprio, estabelecendo uma preocupação única, que seria a negação de tudo aquilo que pode desviar a alma do caminho árduo da salvação. A grande ambiguidade dessa prescrição é o fato de que esse afastamento completo ainda mantém interdito o suicídio, a alma deve padecer de todo esse sacrifício, nunca o abandonar em prol da salvação sob a ameaça de afastar-se dela no momento em que, segundo considera, a ela se entrega. (Loucura, não é? Realmente a religião costuma ter uma postura de desprezo em relação ao corpo e a esta vida mundana. Você não pode se entregar aos prazeres, tem de viver sempre em contrição, mas se ausentar da vida você não pode de jeito nenhum. Ela, ainda assim, tem um propósito que deve ser cumprido).  Os relatos de morte por inanição dos adeptos deste tipo de vida são inúmeros, ocorrendo, principalmente, entre os eclesiásticos.

Seria importante ressaltar então a obra de John Donne, o Biathanatos escrito em torno de 1610, como uma obra filosófica importante deste período que avança, se não no sentido da afirmação do direito ao suicídio, pelo menos na imposição de inúmeras ressalvas àqueles que o condenam. A grande ousadia de sua defesa é o fato de ela se fazer inteiramente dentro da teologia cristã. Donne não recorre, como os outros filósofos, aos exemplos gregos e romanos que embasam as posições favoráveis ao mesmo, mas àqueles argumentos que a própria moral cristã disponibiliza. Seu livro é organizado em três partes, as quais correspondem a três questionamentos: seria o suicídio contrário à Lei da Natureza?; à Lei da Razão?; ou à Lei de Deus? Ele chega à conclusão de que não se dispõe de argumentos que permitam afirmar que “algo é tão mal que não possa nunca ser bom”. (Wow! Eu penso no que isso significa até hoje). Não se encontra univocidade nas exposições de exemplos históricos, leis, ou textos que permita seguir em um sentido contrário a essa afirmação.

O autor, não só aí, mas também em muitos de seus escritos literários, tematizou a morte e o suicídio, como se pode verificar no trecho a seguir de uma de suas poesias: (Fantástico esse poema. Eu conheci esse autor na nas pesquisas para a monografia e depois me apaixonei pelos poemas).

 

Morte, não te orgulhes, embora alguns te provem

Poderosa, temível, pois não és assim.

Pobre morte: não poderás matar-me a mim,

E os que presumes que derrubaste, não morrem.

Se tuas imagens, sono e repouso, nos podem

Dar prazer, quem sabe mais nos darás? Enfim,

Descansar corpos, liberar almas, é ruim?

Por isso, cedo os melhores homens te escolhem.

És escrava do fado, de reis, do suicida;

Com guerras, veneno, doença hás de conviver;

Ópios e mágicas também têm teu poder

De fazer dormir. E te inflas envaidecida?

Após curto sono, acorda eterno o que jaz,

E a morte já não é; morte, tu morrerás.

 

A esse exemplo se segue o de Jean Duvergier de Hauranne, um eclesiasta que afirma que em certos casos não é apenas lícito, como constitui uma obrigação entregar a própria vida. É o exemplo do sacrifício feito em prol da vida do rei. De qualquer modo ele coloca a seguinte questão: “dado que existem tantas exceções para o homicídio, porque não as aceitar em relação ao suicídio?” (op. cit., p. 124). (Excelente pergunta. Vemos que é esta pergunta, exatamente a mesma, que inquieta autoridades há séculos).

Em contrapartida, os teólogos e moralistas empreendem uma oposição cada vez mais rigorosa. De qualquer forma, as dificuldades que encontraram foram inúmeras, assim a ambiguidade de seus posicionamentos se torna mais demarcada. O exemplo dos casuístas ilustra muito bem esse aspecto.

A casuística era um método que consistia em comparar cada caso particular com um caso paradigmático, para que então se estabelecesse um juízo. (A gente usa muito isso no senso comum até hoje)! Ao aplicar tal método à reflexão sobre o suicídio, na tentativa de passar em revista todas aquelas situações que podem levar um indivíduo a cometê-lo, os casuístas se deparam com casos extremamente delicados, na medida em que se impõem ao questionamento não só os casos de suicídio direto, mas também aqueles nos quais o indivíduo se expõe voluntariamente a alguma situação que pode colocar em risco a sua vida. Por exemplo: deveria ser condenada a mulher que se dedica ao cuidado do marido vítima de uma doença mortal e contagiosa? Ou então: é negada, àquele que pula de um prédio em chamas, sabendo que pode não resistir à queda, a salvação? No primeiro caso é lícito o cuidado da esposa; já a situação contrária, o marido que cuida da mulher doente, constituiria um pecado (op. cit., p.152). (Sério isso?! Mas a nossa discussão atual não é sobre machismo, certo?).  No segundo caso, a atitude é ilícita, pois não é permitido cometer pecado algum para salvar a própria vida (op. cit., p.154). O embaraço dos casuístas ao responderem a esse tipo de questão gera a ambiguidade anteriormente mencionada. Mas, embora sua oposição não se destaque em termos de consistência, este episódio não deixa de colaborar marcadamente para o debate da época. (Compreensível. Os caras se perdiam debatendo um trilhão de caso contingentes. Você não tira nenhuma regra universal daí, mas eles eram como que gurus da sabedoria, pois sabiam falar de muita coisa e certamente sabiam argumentar).

Cabe observar que a estes três fatores, quais sejam, os questionamentos humanistas, as intolerâncias moralistas e religiosas e as consequências das relações econômicas, somam-se as novas e cada vez mais fortes influências dos estudos médicos, psicopatológicos, psicológicos, sociológicos, dos posicionamentos filosóficos em geral e as novas influências da medicina no direito[1]. Em torno dessas referências se desenvolvem as discussões acerca do suicídio a partir do século XVII. Observa-se também que algumas dessas influências se dão de maneira crescente enquanto outras de maneira decrescente. As explicações emergentes então se tornam cada vez mais determinantes das visões acerca do tema, ao passo que as religiosas e moralistas o são cada vez menos. (E eu vou cortar aqui o capítulo, porque agora vamos mudar um pouco o escopo da discussão).

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1]Minois faz a distinção desses campos de saber a propósito dos temas aos quais marcadamente se referem, não considerando uma possível constituição formal destes na época.

Desespero e Pecado na Idade Média.

Capítulo IV

O início da Idade Média é marcado pela repressão ao suicídio e a crescente influência do cristianismo no regimento do território e das almas. Dante narra em seus infernos, sétimo círculo, II parte, que os culpados por praticarem violência contra suas vidas, privando-se do mundo terreno, estão condenados a transformar-se em árvores que “as negras harpias dilaceram”, causando “intensa dor que rompe em voz plangente”. (Um dos meus maiores orgulhos bestas durante a adolescência era o fato de ter lido A Divina Comédia no primeiro ano do ensino médio. Não entendi ab-so-lu-ta-men-te na-da do livro. Eu fui lendo pela sonoridade das palavras e pelas figuras maneiras. Eu ia para a biblioteca com uma amiga no recreio para lê-lo. Eu não entendia porque era difícil mesmo de acompanhar a narrativa em certo sentido – um sinal disso é que a edição que eu comprei da obra, anos depois, tinha mais notas explicativas do que texto mesmo, a edição da biblioteca era velha e não tinha nota nenhuma. Foi meio nostálgico voltar a esse livro na confecção do trabalho monográfico. Eu queria ter colocado as ilustrações aqui na mono. Na verdade, eu pesquisei muito os trabalhos artísticos do fim da Idade Média, passando pelo renascimento e chegando ao romantismo que tratavam do tema do suicídio e da morte de um modo geral. Não sou entendida no assunto, mas fui seguindo o raciocínio de alguns autores. Nas apresentações que eu fiz em congressos desse tema do suicídio, eu sempre incluía uma parte com essas imagens. Nem sei se eu as tenha mais no computador atualmente…).

O homem medieval não questiona a bondade da sua existência, uma graça divina. O suicídio é facilmente assumido como resultante de uma tentação diabólica pelo desespero ou como um ato de desrazão. Para o primeiro caso começam a se estabelecer gradativamente diversas penalidades que variavam de acordo com o local e a época na qual o suicídio era cometido, como arrastar o corpo do suicida pela praça ou pelas estradas e depois pendurá-lo, deixando-o apodrecer sem sepultura e sem nenhum ritual póstumo em sua homenagem. A prática da confiscação dos bens também se verifica.

Na análise de tais punições, que poderiam sob uma visão apressada ser consideradas despropositadas, cabe uma reflexão um tanto mais cuidadosa, a começar pelas relações entre alma e corpo entendidas na época. A relação estreita entre ambos atribuía uma grande significação a tais práticas, na medida em que elas visavam à humilhação e à incapacitação do corpo do suicida para que o espírito deste não pudesse encarná-lo novamente para importunar os vivos. A prática da condenação do corpo possui, como já mencionado, origem nos costumes de caráter supersticioso que, em sua maior parte, derivam daqueles praticados na Antiguidade pagã. (Naaaaaaaãoooo… O cristianismo se apoderando e resinificando práticas pagãs?! Quem diria! O que aconteceu aqui, foi que meros costumes supersticiosos se tornaram punições oficiais. Eu achei esse movimento extremamente interessante. Ainda me fascinam esses desenvolvimentos históricos). Além disso, algumas punições impostas ao cadáver do suicida podem mesmo impedir um indivíduo de cometê-lo, como se observou no caso das jovens de Mileto. (Bizarro esse caso). Tomadas por uma intensa fúria, várias jovens teriam cometido suicídio por enforcamento até que fosse declarado que a próxima que o fizesse seria carregada inteiramente nua pela cidade, tendo seu corpo exposto por dois dias. Imediatamente cessa a onda suicidária, conforme narra Plutarco (Cassorla, 1981, p. 5). (Essa era uma das grandes tristezas de tentar ser uma pesquisadora numa universidade brasileira com poucos recursos. Como eu queria ter tido acesso a alguns dos textos que nós mencionamos aqui no original, poderia ser traduzido para o português, mas eu queria ter lido esse relato diretamente dos escritos do Plutarco. Mas não tivemos acesso a esse material. Você pode reparar que o autor que eu referencio é o Cassorla, A impressão que fica é que não poderia ter existido um Foucault brasileiro. Que fica na biblioteca da própria universidade “descobrindo” vários textos fodas, pouquíssimo conhecidos ou estudados para trabalhar. No lugar disso, aqui no Brasil, nós estudamos o Foucault. Nós não temos incentivo para fazer coisas inteiramente novas, somos encorajados a repetir as coisas que os grandes autores estrangeiros disseram, a compreender o que eles pensavam, no ligar de imitarmos suas ações e sua metodologia inovadora de pesquisa e produção, replicamos seus achados e seus textos).

Já quando era atestada a loucura, o cadáver recebia indulgência. Cabe deter-se um instante na análise destes casos. Em primeiro lugar deve-se salientar o fato de que, não raramente, o suicídio dos nobres, na intenção de ser preservada a honra da família, era escondido por um atestado de loucura. Em segundo lugar, apesar da legislação se mostrar extremamente rigorosa com relação à condenação do suicídio, na prática, não se verificava tamanha rigidez.

O julgamento das autoridades, na maior parte das vezes, era bastante indulgente, de modo que qualquer sinal que pudesse apontar para a loucura era comumente aceito como prova da mesma. Qualquer sinal de grade irritação, fúria ou agitação, relatos de que o suicida estava tendo delírios ou alucinações era usado como prova daquilo que se conhecia como frenesi. (O controle das populações, como o próprio Foucault coloca, não era característico desse período. Aqui importava mais o governo do território do que das pessoas e dos grupos. É isso mesmo? Ainda lembro bem? Portanto a lei não intervinha singularmente em cada caso, esse não era o principal interesse). Em terceiro lugar, aquele suicídio conhecido na Antiguidade como suicídio filosófico ou suicídio por taedium vitae tem simplesmente seu sentido reflexivo desconsiderado e passa a ser entendido como um tipo de loucura, não mais como um estado de espírito, mas um estado físico causado pela melancolia. Este termo deriva do grego e significando “humor negro” designa uma bílis negra que, quando em excesso, escurece o cérebro causando pensamentos sombrios. (Outro ponto que me causa extrema fascinação. Vou tentar explicar. O objetivo desse trabalho era mostrar que não existe uma essência do suicídio. Eu acho que esse ponto é um dos mais poderosos nesse sentido. Pois todo um campo da vivência emocional das pessoas foi sumariamente desconsiderado nesse período histórico. O suicídio por desprezo da vida, aquele que seria levado a cabo pela reflexão de que a vida não vale apena ser vivida, desapareceu. Aquele suicídio verdadeiramente deixou de existir. As pessoas não mais reconheciam, ou não sabiam nomear, essa experiência de desvalor da vida. Pelo contrário, com o sentimento de que a vida é uma dádiva divina, aqueles que sentiam algo como desprezo pela vida tinham uma experiência completamente diferente da dos antigos. Aqui a gente vê que não tem nada de essencial em jogo aí. Só o que sobrou foi o ato bruto de tirar a própria vida – nem o nome suicídio existia ainda –, mas a experiência do ato de se matar, foi completamente ressignificado).

Durante a Idade Média, em contraste com a Antiguidade, quase não se observam suicídios de grandes nomes. Para isso podem-se apresentar alguns prováveis motivos. O principal seria a ocorrência de muitos suicídios indiretos. Estes não seriam propriamente suicídios, mas a exposição voluntária a situações que pusessem em risco a vida do indivíduo. (Esse assunto: suicídio, para-suicídio, comportamento de risco, é um ao qual eu gostaria de dedicar um texto a parte). A aristocracia medieval, e principalmente ela em comparação com a nobreza de outros períodos, se valeria então de uma série de dispositivos que serviram como “substitutos” para o suicídio. Seriam estes: a caça, as guerras, as Cruzadas, a rendição ao inimigo em combates, os suicídios lúdicos – como era o caso das mortes em duelos – e outros. (Ou seja, o povo era criativo em se tratando de achar jeito de morrer). Que seja observado que estes tipos de “suicídio” são considerados nobres e louváveis. O que também prova que, além da indulgência comum dos julgamentos, também havia uma falta de linearidade por parte do clero e da aristocracia entre as ideias que professavam e o modo como agiam. (Pois é, não é. Se está messe trabalho aqui é porque algum autor fez essa análise. Eu não me arriscava a tirar muita coisa da minha própria cabeça desse período. Agora que eu estou me autorgando o direito de fazer isso, eu diria que tenho um pé atrás com esta avaliação. Trata-se justamente de saber se podemos chamar esta exposição ao perigo como suicídio. Algumas dessas formas de exposição nem voluntárias são. Ir para a guerra, por exemplo. O que acontecei quando o cara desertava? Não era de boa. Como você vai colocar o exemplo do cara que morre na guerra como um suicídio em alguma escala, memso que seja uma to heroico, individual de bravura, no qual uma pessoa, ou uma tropa, “se martirizaria” em prol do cumprimento de uma estratégia de batalha? É uma questão de não ter muita opção. A caçada. Se você é convidado para uma caçada e se recusa? O que acontece? Sei lá. Mas enfim, eu também não tinha tempo na época para procurar bibliografia e discutir esses argumentos. Na verdade, esse não é muito o objetivo de uma monografia Noramalmente, nas monografias que tratam de tema teóricos nas humanas, você não coloca dois autores para conversar. Isso já é algo mais da ordem de um mestrado. Na monografia você escolhe um tema ou um autor e tenta entender um pouquinho daquilo ali.). E a estes tipos de suicídio se opõe o da população em geral, geralmente executado por afogamento ou enforcamento. O que irá caracterizar então um suicídio como direto, covarde e egoísta ou como indireto, nobre e altruísta são os meios e os motivos pelos quais ele se realiza. E é a moral dominante, marcada por um ideal cavaleiresco e a busca pelo sacrifício cristão, que sanciona esta diferença.

Quanto ao suicídio dos eclesiásticos, estes recebem um julgamento especial, que não era realizado pela justiça civil. O corpo de um eclesiasta suicida devia ser entregue ao membro da igreja responsável que executaria os devidos rituais de acordo com a lei da Igreja. Mas deve-se ressaltar que mesmo o suicida sendo um civil ou um membro do clero, muitas vezes há brigas entre a justiça civil e a eclesiástica, principalmente no que diz respeito à confiscação dos bens do suicida. (Claro. Dinheiro todo mundo quer. Eu tive um professor de história no ensino médio, que dizia que a parte mais sensível do corpo humano é o bolso)!

Duas últimas categorias de suicídios medievais seriam as dos suicídios heréticos ou judaicos. Os primeiros devidos a perseguições religiosas ou disputas territoriais. Os hereges, ao se verem ameaçados pela cobiça lançada sobre suas terras, para escapar a morte pelas mãos de seus inimigos, matam-se pelas próprias; por outro lado, ao serem colocados perante a escolha de abjurar sua fé ou morrer, eles “avançavam alegres e decididamente para a fogueira” (Minois, 1998, p. 26). Não devemos deixar de observar que enquanto os martírios voluntários dos cristãos constituíam um mérito, pois estes eram inspirados pelo amor a Deus, os suicídios dos hereges eram inspirados pelo diabo e não eram dignos de nenhum valor ou admiração (o que não impediu que alguns eclesiásticos os admirassem apesar das condenações oficiais). (Eu queria ter colocado as citações aqui! Vários textos da galera do clero relatando viagens das cruzadas, falando desses suicídios heréticos com a maior admiração! O pensamento da Igreja em inúmeros momentos não era o pensamento dos homens que compunham a instituição. Isso é uma condição geral em se tratando do Estado, das religiões etc., mas é interessante ver exemplos pontuais de como essas coisas acontecem e tentar entender como surge a visão da coletividade uma vez que há tanta discordância entre as partes. É o movimento dialético vivo no seio da história. Demais). Os suicídios judaicos, por sua vez, foram devidos, principalmente, às perseguições religiosas e cometidos em grandes números (muitas vezes por terem sido cometidos em massa) durante as cruzadas.

A partir do século XIII d.C. começa a ocorrer um retorno ao direito romano[1]. Deste modo, no que diz respeito à legislação, principalmente a partir do século XV d.C., com a intensificação dessa retomada e os novos questionamentos que emergiram influenciados pelo redescobrimento, operado pelos humanistas, da moral pagã, começa a aparecer alguns sinais oficiais de indulgência. (Eu não gostei desse capítulo. Mas foi um capítulo difícil de fazer. A gente se perdeu na leitura de várias coisas sem noção de teologia e de direito medieval que não tinha como aproveitar – e muitas vezes não dava para compreender muito bem. Faltava base para fazer essa parte da pesquisa. Pensando em trabalhar esse texto para uma possível publicação, eu não sei se daria para aproveitar este capítulo).

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1] Ocorrem uma série de transformações na arte, economia e política. Maurice Gandillac denomina esse episódio como “prelúdio do renascimento dos séculos XV e XVI, onde há coesão relativa de expressão estética e atividade cultural”. Refere-se ao progresso do comércio, decadência da nobreza feudal, o primeiro esboço das monarquias nacionais, impulso da ciência médica, reformas monásticas e mudanças nas línguas. (1995, p.40)

 

História do Suicídio. Introdução.

INTRODUÇÃO

 

No presente trabalho pretende-se realizar uma discussão acerca de argumentos filosóficos, médicos e teológicos que influenciaram fortemente a noção de suicídio através do período compreendido entre os séculos IV a.C. e XVIII d.C., pondo em questão a própria definição do suicídio e tomando-o como base para reflexão sobre temas pertinentes a esses momentos históricos. (Este trabalho foi várias vezes apresentado na Jornada de Iniciações Científica da UFRJ. Ele sempre passava para a segunda fase, quando geralmente caía em uma mesa na qual os professores moderadores eram historiadores e eles sempre, sempre, sempre, implicavam com a abrangência histórica do trabalho). Dessa forma é preciso alcançar suas diversas áreas de constituição e validade, compreendendo seus modos de uso e a multiplicidade dos campos teóricos dos quais partem. Não se trata de uma história da interdição ou liberação da morte auto-infligida e sim da investigação de como esta insurge enquanto problema para o pensamento, regida por uma intensa relação de forças que em nada se aproxima da totalização e naturalização de fatos necessários que se organizem rumo a um sentido final. Também não se trata de buscar a proveniência do suicídio, sua essência, de forma exata, inabalável pela exterioridade e acaso. Entendem-se as definições a serem discutidas como redes de singularidades entrecruzadas de começos inumeráveis que demarcam aspectos inéditos sobre o tema, captando acontecimentos que compõem seu caráter dispersivo e heterogêneo.

Sob a perspectiva das indicações historiográficas de Michel Foucault, referimo-nos ao surgimento histórico, ou emergência de nosso objeto, como o ponto onde forças discursivas entram em conflito fazendo aflorar acontecimentos. (Portanto, fica claro que o nosso não era um trabalho de historiografia tradicional. Em parte, isso já justificava a abrangência do nosso recorte temporal).

Em diferentes períodos históricos, certas posições acerca do tema do suicídio despontaram dessas batalhas conceituais e se tornaram emblemáticas de seu tempo por constituírem campos de saberes dominantes. Tais posições acerca da prática da morte de si foram tomadas como marcos de reconhecidos momentos históricos, como discutiremos a seguir, a título de limitação metodológica. Todavia, a diversidade da rede de discursos minoritários, ou murmúrios, que perpassam a constituição dos grandes campos de saber desestabilizam a tentativa de estabelecer uma ideia original ou universal do suicídio. (Essa ideia de murmúrios é muito interessante. É como se, do debate teórico, sempre despontasse uma voz dominante, aquele que grita mais alto do que os outros, enquanto todos os outros estudiosos, e, principalmente, as estudiosas, ficam ali murmurando ao redor, baixo demais para que possamos ouvi-los. Precisamos de muita atenção para poder distingui-los. Vale ressaltar que se destaca quem grita mais alto mesmo, no sentido de quem ganha o jogo de poder, e não necessariamente aquele que está mais correto). Por essa razão, são levantadas algumas problematizações, antes de tudo para demonstrar a luta entre diferentes perspectivas, que não constituem uma ideia simples e totalizante, produto de aprimoramento progressivo, mas sim um objeto que traz consigo descontinuidades, rupturas, convergências e subversões de si mesmo. (Essa é a tentativa de ouvir os murmúrios). A demonstração da pluralidade na dimensão das práticas, dos saberes e dos jogos de poder tem por efeito dispersar o “gradiente de abstração” responsável pela conservação da ideia pura de suicídio, que resiste aos acontecimentos sob diferentes máscaras através dos tempos. (Esse conceito “gradiente de abstração”, poderia estar mais bem explicado. Foucault fala sobre isso em seu livro Arqueologia do Saber. Onde ele afirma que “a história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua elaboração” (p. 5). Entende-se que um conceito é algo abstrato. Essa característica garante que ele não seja influenciado pelas contingências, aquilo que acontece na realidade não tem efeito sobre os conceitos. Isso faz com uma determinada ideia permaneça aparentemente inalterada através dos séculos, que ela pareça eterna e imutável. Na verdade, há os tais jogos de poder por detrás da aparente univocidade dos conceitos. Quando ouvimos os murmúrios, o conceito de suicídio, por exemplo, se racha em mil pedacinhos).

A luz dessa referência metodológica, utilizamos como principal fonte pesquisa e ponto de partida para demais investigações o livro de Georges Minois (1998): História do Suicídio. Este estudo apresenta a problemática do suicídio, não como demográfica, mas religiosa, moral, cultural e filosófica que pode revelar modos segundo os quais os indivíduos vivem, se relacionam e auto-representam característicos de uma sociedade. (O recorte histórico que seguimos, foi o recorte feito por este autor).

Uma análise da morte voluntária implica, portanto, em restituir sua dimensão acidental e principalmente por em discussão suas noções parciais ou discursos de diferentes ordens. Os saberes a respeito desse tipo de morte colocam-se em relação de complementaridade com suas práticas e produzem verdades a respeito das mesmas. Nesse sentido, qualquer conhecimento produzido sobre a morte auto-infligida e seus modos de execução dizem respeito ao seu comprometimento político, histórico e social.

A exemplo da parcialidade dos discursos, podemos refletir sobre a significação da própria palavra suicídio.

O termo suicídio indica uma conotação claramente política e um compromisso moral de desprestigiar o ato associando-o ao homicídio, em razão de seu contexto histórico. A palavra suicidium, formada pelo prefixo ‘sui’, pronome possessivo e ‘caedere’, ato de matar, não foi usada antes do século XII por razões léxicas e gramaticais, pois a língua romana recusava compostos com prefixo pronominal. O termo foi forjado pelo teólogo Gauter S. Vitor, na obra Contra Quator Labyrinthos Fraciae, e claramente carregava o propósito moral supracitado, tal como foi proposto por Santo Agostinho. (Pois foi Agostinho que aproximou o ato do suicídio daquele do assassinato). O termo foi abandonado durante séculos por tais razões linguísticas e por volta do século XVII retoma importância, sendo difundido através da língua inglesa, que nessa época admitia barbarismos e neologismos, antes rejeitados pela língua escrita (Góes, 2004). (Por essa anomalia gramatical é que o certo em português é falar: “Fulano suicidou” e não “Fulano se suicidou”. Mas soa estranho sem o se mesmo).

Apresentaremos agora uma breve análise ressaltando alguns períodos históricos que remontam a diferentes usos da morte voluntária e inúmeros argumentos que a atravessam a fim de demonstrar a diversidade e riqueza de seus saberes e práticas.

 

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

Divulgação Científica.

Os trabalhos acadêmicos geralmente são engavetados depois de entregues (trabalhos de conclusão de disciplina, monografias, dissertações e teses) e grande parte deles jamais torna a ver a luz do dia.

Nós, os autores, ficamos nos prometendo que voltaremos a eles algum dia porque “ainda dá para tirar um artigo dali”. Mas dificilmente voltamos.

Resolvi aproveitar o projeto do blog para finalmente colocar em prática a proposta de retomar os trabalhos acadêmicos que já produzi. Despretensiosamente. Para me refamiliarizar com os estudos do passado e avaliar se algum é, de fato, promissor.

Aos poucos vou postando os trabalhos que já produzi (divididos em partes conforme eu os for relendo), fazendo comentários ou aprimoramentos nos mesmos, como um primeiro passo para recauchutá-los e, quem sabe, vir a publicá-los. Vou tentar me lembrar de sempre destacar os acréscimos ou correções sublinhando-as.

E ainda, é claro, um objetivo não menos importante, quero dar uma arejada nesses textos. Deixá-los mais disponíveis, acessíveis para além da comunidade acadêmica.

Farei isso sem pressa. Aos poucos e no ritmo que o meu coração ditar.

A começar pela minha monografia. A minha monografia teve origem no trabalho final da matéria Tópicos Especiais em Psicologia Social K, da qual fui monitora. A disciplina era sobre o tema do suicídio. O trabalho foi, em grande parte, feito em dupla, com Mhyrna Boechat.

 

REFERÊNCIA DO TRABALHO:

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.