Larissa.

Eu nunca esqueci de você. Eu lembro de tudo que você sofreu. Desculpe por não ter conseguido te fazer se sentir melhor….
Na nossa época não tinha ainda essa história de bullying, então a gente não sabia que isso era errado. A gente achava que quem era feio, chato e burro tinha que ser zoado mesmo. Mesmo quando éramos nós os burros, chatos e feitos.
Hoje em dia eu até consigo olhar para trás e ver que éramos todas crianças sofridas, por um motivo ou por outro. Na época eu não conseguia enchegar muito bem o sofrimento alheio. Principalmente o sofrimento de quem disfarçava a dor que sentia. Eu achava que todo mundo era feliz e só eu que era triste. E eu achava que se eu ficasse ao seu lado eu seria ainda mais infeliz porque você era muito triste e não escondia isso.
Hoje eu sei: você era sensível e sincera. Eu fui medrosa e insegura.
Nem o Facebook conseguiu trazer você de volta para a minha vida, mas eu espero que você consiga olhar para trás e ver a adolescente que eu fui com alguma condescendência e saber que eu amava você. Eu fiz tudo que eu pude na época para te apoiar e ficar ao seu lado. Me perdoe se fui babaca em algum momento.
Ah! Obrigada por ter me apresentado os Ramones. Ouço até hoje e me lembro de você sempre. E obrigada por ter sido minha amiga. Eu nunca vou me esquecer de você. 

Dia de princesa.

Eu já tive alguns dias de rainha.
Um dia de massagem no corpo todo, hidratação de cabelo e limpeza de pele em um SPA no qual passei uma semana com minha mãe.
Meu dia de noiva antes do casamento. Banho de noiva, cabelo, maquiagem…
A sensação é a de ser importante, amada e bem cuidada.
Fomos condicionados a nos sentir dessa maneira em determinadas situaçõesque, que, geralmente, não fazem parte do nosso dia a dia.
O quê do auto-conhecimento e da saiafaçao pessoal é conseguir criar momentos como esses nos mais breves e simples instantes. Poder transformar qualquer dia em um dia de princesa.

Os milhares de braços dos profissionais de saúde. 

“Psiquiatras são assim, cheios de braços. Fazem tudo que der pra ajudar. Se puder tirar a cabeça de um e botar em outro, faz também. Se não der certo, tá bom também”.

Eu ouvi esta frase de um usuário do serviço de saúde mental que estava participando de uma oficina de jardinagem lá no hospital da Nise da Silveira.
Isso aconteceu há meses. Eu anotei essa frase e fiquei com ela guardada sem saber o que fazer com esse duro choque de realidade, expresso em uma frase tão fantástica.
Muitos profissionais de saúde são assim mesmo, cheios de braços. Chegam em cima dos pacientes sem pedir licença, aferindo, medindo, apertando, abrindo, levantando roupas, mandando tossir.
Os psicólogos também vêm cheios de boas intenções e de boas teorias, fazem de tudo para ajudar. E se o paciente não vai bem, a complexidade dos fatores ambientais, psicológicos, sociais e biológicos era simplesmente complexa demais para que fosse possível uma interferência efetiva, ou o paciente resistiu.
Paciente é outro tipo de gente, se é que é gente. Derrepente ele se vê desautorizado a falar do próprio corpo e da própria mente.
Tem muito profissional por aí, contudo, tentando fazer diferente. A gente tem um forte movimento pelo desinstitucionalização da loucura atualmente no Brasil encabeçando essa luta.
Muita gente boa lutando para tirar suas mãos desautorizadas e suas teorias não solicitadas de cima das outras pessoas, sem lhes tirar também o cuidado e a melhor atenção em saúde disponível a que elas têm direito.

Carta a um amigo.

Estamos todos muito preocupados com você.

Não dê esse susto na gente nunca mais.

Se você nos abandonar, com quem vamos partilhar o sofrimento? Com quem se não com você que sofre mais do que todos nós?

Sem as suas poesias, como vamos nos expressar?

É preciso que você fique.

Sem as tuas musas a nossa arte também não tem sentido.

Se não for você a me lembrar dos decassílabos, quem mais?

Nesse mundo da poesia contemporânea, ninguém as conta mais.

Sem a tua fé tremenda nas certezas matemáticas, o meu mundo se torna incerto e cínico.

Não me fale mais que cortou os pulsos. Pois toda vez os meus sangram junto com os teus.

Não me fale mais de remédios ou do absinto, pois meu estômago se revira e corrói também.

Você quer que morramos todos juntos?

Nós ainda temos muito o que viver, você e eu.

Saiba que é muito cruel o teu grito de socorro.

Mais cruel ainda é saber que você sofre tanto e que nada do que fizemos é capaz e aliviar o teu sofrimento.

Eu sei o que você vai pensar:

– É melhor que eu morra, então, assim eu não causo mais sofrimento a eles.

Eu sei que você sabe lá no fundo que não há nenhum pensamento mais equivocado do que este.

As tuas ameaças são o ferro em brasa que se aproxima e se afasta da nossa pele. A tua morte será a hora em que esse ferro finalmente nos queimará a pele que arderá durante dias e ficará mercada para sempre.  

“Sair da vida para entrar na história”. Logo você, tão inteligente, não aprendeu nada com seu professor de história do ensino médio? O suicídio não é a absorção pelo esquecimento, é muito pelo contrário, a sua marca indelével na vida daqueles ao seu redor.

 

 

Nos comportamos de acordo com o que pensamos. 

Nossas crenças limitantes e nossos pensamentos negativos são capazes de fazer um estrago em nossa vida.
Em 2012 eu recebi uma bolsa de estudos do instituto Goethe para passar um mês na Alemanha fazendo um curso intensivo de alemão.
Fiquei obviamente extremamente empolgada. Primeira viagem internacional, primeira vez que viajaria sozinha, havia recebido um reconhecimento importante ao conquistar a bolsa de estudos.
Eu iria aproveitar ao máximo a viagem! Só tinha um problema. Sempre fui meio anti-social, meio tímida e insegura. Corria o risco de eu viajar muda e voltar calada. Sem ter trocado uma palavra com os colegas de classe, sem fazer novos amigos, sem treinar o idioma.
Não. Não dava para deixar isso acontecer.
Como evitar esse cenário catastrófico?
Simples. Teria que conversar com as pessoas. Só que isso nunca havia sido simples para mim.
Foi uma terapia de choque. Quando eu cheguei em Freiburg, cidade na qual realizaria o curso, pensei: ok. Que desculpa eu tenho para falar com alguém neste momento? Minha consciência retrucou: mas agora? Precisa mesmo? Não dá para esperar um pouco não? Eu respondi veementemente: Não! Tem que ser agora! Virei para o lado e falei (em alemão): com licença, como eu faço para chegar ao local tal? Pronto. Consegui iniciar minha primeira conversa com um casal de alemães! Ou era isso que eu esperava.
O casal a que eu me dirige, era um casal de idosos franceses que sempre iam passar um tempo na Alemanha todos os anos. Por sorte, eu estava com o francês fresco na cabeça naquela época e pude conversar um pouco com eles. Acompanhei-os ajudando com as malas até o hotel onde se hospedariam.
Ao sair do hotel eu estava ainda mais nervosa. Seria necessário puxar assunto com desconhecidos ainda mais uma vez. Fiz de novo. Sem nem pensar. Era uma moça, que era mesmo alemã dessa vez (ufa! Eu já estava ficando sem repertório de línguas estrangeiras). Ela solidarizou muito conigo, pois a filha dela tinha acabado de viajar para a França em condições muito parecidas com as minhas. Ela me ajudou com a minha mala, pagou minha passagem no trem de rua que eu tinha que pegar para chegar ao hostel, me deixou quase na porta.
Depois dessas ocasiões eu ainda puxei assunto com muita gente. Todas as vezes que eu precisava chegar a algum lugar eu pedia ajuda (como desculpa para conversar mesmo, muitas vezes eu já sabia o caminho), puxei assunto com colegas de classe, pedi isqueiro para os jovens na rua etc. Consegui conhecer bastante gente.
Nenhuma das vezes foi fácil iniciar a conversa. Eu tinha que tomar a decisão de “falar e ponto” em todas as vezes que puxei assunto. Eu pensava: se eu não tonar a iniciativa, não vou conversar com ninguém hoje. Eu evitei refletir muito ou pensar no que poderia dar errado. Só pensei no meu objetivo: praticar alemão e conhecer pessoas desse país.
Foi muito bem sucedido o meu propósito na viagem.
E a mudança do meu comportamento foi duradoura.
Eu já havia passado situações desagradáveis por não conseguir falar certas coisas ou puxar assunto com as pessoas, desde ter que jogar comida em restaurante fora porque estava ruim e eu não conseguia reclamar, até ter feito poucos amigos e colegas ao longo da vida.
Eu ainda sou um pouco anti-social e insegura (percebi que não sou tímida, eu apenas parecia tímida por conta desses dois fatores), mas, se eu quiser por qualquer motivo ou precisar falar com alguém atualmente, eu já não tenho problemas.
Esse é o poder das nossas crenças e dos nossos pensamentos negativos. Se eu tivesse dado espaço aos pensamentos que eu calei na Alemanha, não teria conhecido ninguém.
Os pensamentos, depois eu tive tempo de analisá-los com calma, eram: e se eu falar com algum neonazista que odeia sul-americanos e ele me matar? E se eu falar o alemão todo cagado? E se a pessoa me ignorar? E se ninguém gostar de mim? E se não houver nenhum assunto em comum e a situação acabar sendo constrangedora?
No lugar de ceder a estas preocupações eu apenas pensei no que eu desejava e agi de acordo com isso. Mudei o meu comportamento e a flexibilização emocional veio a reboque.

Guerra contra a felicidade.

Eu estou longe de poder ser parabenizada pelo meu amor aos clássicos da literatura (ou por ter lido uma boa quantidade destes), mas eu já passei tempo suficiente conversando com gente cult para saber que escritores clássicos e as tais pessoas cult não gostam muito de felicidade ou de gente feliz.

Portanto, a felicidade se tornou, já há muito tempo, coisa de gente simples e ignorante.

É um suposto fato cientificamente sustentado que as pessoas humildes, pouco educadas, geralmente pobres, sofrem menos, pois elas processam emoções de maneira menos complexa do que as pessoas que possuem mais recursos intelectuais.

O resultado histórico da mistura de todas essas opiniões é a de que a felicidade e as histórias de amor com finais felizes são malvistas, clichês, e feitas para o povão, para a massa, que “procura entretenimento rasteiro para se distrair”.

Eu até concordo que não abundam os filmes e as histórias românticas de boa qualidade, mas isso pode ser explicado pelo fato de os bons escritores, cineastas, poetas, dramaturgos etc., serem todos cult e nós já estabelecemos que gente cult odeia felicidade.

Essa guerra contra a felicidade e as pessoas felizes tem um viés acadêmico que se soma ao viés artístico.

Acadêmicos e intelectuais tendem a olhar com maus olhos esse papo de metas e de vida equilibrada, dos hábitos das pessoas altamente eficazes e da busca pela felicidade sustentável. Eles nos dizem que essas pessoas querem varrer as emoções negativas para debaixo do tapete. Afirmam que os estudos que comprovariam os benefícios e a eficácia deste novo estilo de vida e dos métodos que devemos empregar para alcançá-lo, não passam de pseudociência, de um discurso vazio e pouco profundo, que geraria, na verdade, um ideal de felicidade inatingível.

Isso tudo é realmente muito melancólico, pois é possível perceber, a partir desse discurso, o quanto as pessoas realmente se sentem tristes ou, não exatamente tristes, mas também não muito felizes de um modo geral; isso tudo a ponto do discurso da busca da felicidade parecer uma ameaça ou uma imposição insustentável, inatingível e dolorosa.

Na verdade, a gente já gastou grande parte dos recursos artísticos, intelectuais e culturais da humanidade relatando e estudando as trilhões de maneiras de sermos miseráveis. Os tratados e obras sobre a felicidade é que rareiam.

Mas o interessante é que elas sempre existiram. Desde a Antiguidade, passando pelo renascimento e chegando aos tempos atuais – nos quais elas se multiplicam – algumas mentes se arriscaram a proferir algumas palavras e a dar algumas pinceladas em homenagem à vida feliz.

Claro que existem os exagerados, aqueles que dizem que devemos ser felizes a qualquer custo e que têm horror das tais emoções negativas, mas generalizar essa postura é um grande preconceito.

O que algumas pessoas começam a buscar não é uma maneira de decepar o lado negativo, bastante rico e construtivo sim, da nossa vida emocional, mas apenas entortar a balança para o outro lado e falar mais de amor e esperança para variar.

O que queremos é, mesmo tendo consciência das mazelas da humanidade e sentindo dor e sofrimento em alguns momentos, reivindicar o direito de vivenciar o que há de verdadeiramente bom na vida e lutar para multiplicar os momentos de felicidade, aprendendo a valorizá-los.

A busca da felicidade é absolutamente legítima. E ela não é um desrespeito ao sofrimento.

A gente conhece muito mais meios de tortura, do que meios de fazer uma pessoa sorrir. E já é hora de mudar isso.

Escrita terapêutica de ano novo. 

Eu já falei algumas vezes no Blog sobre escrita terapêutica.
Hoje eu gostaria de trazer uma sugestão de exercício de escrita para começar o ano.
Eu sugiro que você construa alguns textos a partir dos motes que eu vou sugerir (claro que você pode trocá-los, fazer modificações ou substituí-los para que sejam mais adequados às suas experiências).
Ao escrever estes textos (que não possuem tamanho determinado, você escreve o quanto julga suficiente para relatar suas experiências, a maneira como se sentiu etc.) você vai elaborar um panorama de como está a sua vida nesse momento.
Esse exercício nos ajuda a não nos esquecermos, a mantermos em perspectiva, os acontecimentos que vêm constituindo nossa vida e influenciando o modo como vivemos. Tanto positiva quanto negativamente.
Separe um tempo para fazer esta reflexão.

Os motes são os seguintes:

*Os melhores momentos do ano de 2017 foram…
*As coisas mais importantes que aconteceram comigo em 2017 me ensinaram que….
*No ano de 2017 eu me senti frustrada por….
*Eu me senti triste por…
*Os momentos mais difíceis do ano foram….
*No ano de 2017, contudo, eu me senti feliz por….
*Os meus principais motivos de alegria e felicidade foram…
*De um modo geral o ano foi…
*Agora em 2018 eu gostaria de….
*Eu espero que 2018 seja um ano de/em que…
*Neste ano eu pretendo…
*A melhor coisa que pode acontecer comigo este ano é…

Boa reflexão e boa escrita!

A vaca mandou o boi pastar.

Havia na terra do meu avô, lá para os lados do rio Tatuamunha, em Alagoas, um boi e uma vaca que eram casados.

Viviam os dois muito bem, até que o boi fez amizade com um outro boi que se mudou para a região.

Desde que essa amizade começou, a vaca não via mais o boi em casa. Ele estava sempre de papo por cima da cerca com o vizinho. Foi aí que a vaca percebeu que seu marido, que antes ela acreditava ser mudo, uma vez que nunca havia pronunciado palavra sequer, sabia falar e muito bem. Pôs-se a vaca a escutar a conversa dos dois e se encantou com os assuntos de seu cônjuge bovino.

Certa vez, ela se arrumou e esperou o companheiro com um belo prato de feno e uma noite inteira de delícias e conversas planejadas.

Quando o marido chegou em casa e sentou à mesa para comer, ela puxou assunto. Havia pesquisado intensamente sobre os temas de interesse do marido: sabia o nome de todos os touros vencedores dos últimos campeonatos de BFC – bovino’s fighting club –, os últimos modelos de carro de boi e tantos outros que interessavam os bovídeos machos daqueles dias. Mas o boi foi monossilábico em suas repostas. Só voltou a tagarelar no dia seguinte com seu amigo.

A esposa fez outras tentativas frustradas de iniciar conversas com o companheiro.

Certo dia, estando muito triste com o que ela sentia ser uma intensa indiferença do marido em relação a ela, foi até a beira do rio e começou a chorar amargamente. Sentia-se desprezada, desinteressante. Se ele falava tanto com o amigo, porque não conversava com ela?

A certa altura, ouviu uma voz rouca e grave saindo do rio a sua frente:

– Boa tarde, senhora. Por que choras? Qual o motivo de tanta tristeza?

– Ah! É meu marido que não gosta de conversar comigo – disse a vaca levantando os olhos e vendo um belo peixe-boi com sua pele cinza cintilando à luz do sol dentro da água fresca.

– Não fique assim. Pare de chorar. De hoje em diante prometo que venho conversar com você todos os dias.

E assim foi. Todos os dias, enquanto o boi ia conversar com seus amigos, a vaca ia até a beira do rio conversar com o peixe-boi.

Certo dia, a vaca e o peixe-boi estavam tão engajados na conversa que ela não voltou para casa a tempo de fazer o jantar antes do boi chegar. Naquele dia, ele ficou com a pulga atrás da orelha incomodando-o a noite inteira. A pulga, que já habitava atrás da orelha do bovino há muitos anos e, muito sábia e perspicaz, já entendia perfeitamente o que estava acontecendo, falou para o boi:

– Você tem que dar mais atenção à vaca. Não percebe que ela vem tentando se aproximar e você a ignorou todas as vezes que ela quis conversar?

– Deixa disso, pulga! Você não sabe o que fala! Ela gosta de conversar sobre assuntos de vaca: que cor tem a grana mais macia, qual é o melhor momento para pastar, o cuidado dos bezerros etc. Eu não sei nem me interesso por nada disso.

– Veja bem, boi, ela está se afastando.

– Calado! A única coisa que me importa é que ela tem atrasado com o jantar! Eu vou dar um pito nela!

– Pois faz muito mal!

O boi foi tolerante com os descuidos da vaca nos afazeres da casa por mais alguns dias, durantes os quais foi acumulando uma raiva crescente. Até que ele estourou e começou a gritar com a vaca, dizendo que esposa dele não ia ficar saracoteando por aí enquanto o marido passava fome. Ela não via que aquilo era um absurdo? Que ele não toleraria tal comportamento e que os outros animais já começavam a falar?

A vaca escutou tudo sem esboçar reação. Quando o boi parou de tagarelar ela levantou-se e disse:

– É uma pena que quando você finalmente resolveu conversar comigo, tenha sido para falar um monte de besteiras. Pois saiba que esta foi a nossa primeira e última conversa.

Naquela noite, ela juntou todas as suas coisas e foi embora. Quando ela estava saindo pela porta, o boi esbravejou:

– Você não pode ir! Quem vai fazer a janta?

– Não me interessa! Vá pastar com seus amigos.

– Volte! – o boi continuou gritando desesperadamente, sem acreditar que sua esposa partiria realmente.

Depois disso, ninguém nunca mais viu a vaca.

Algumas aves, que sobrevoavam a fazendo do meu avô em suas migrações de verão, dizem tê-la visto, alguns quilômetros rio acima, morando numa bela cabana junto d’água e conversando com um galante peixe-boi.   

 

 

***Texto escrito em coautoria com Juliana Santos.

 

Errata

No dia 11 de janeiro de 2018 eu acidentalmente republiquei o texto do dia anterior. Fui alertada pelos meus leitores e peço desculpas pelo ocorrido. O título dos textos não coincide, pois eu cheguei a escrever o texto do dia 11 e o título publicado está correto, mas na hora de passar o corpo do texto do Word para o Blog (como eu trabalho com muitas abas abertas), eu acabei copiando o texto errado sem perceber. Corrigirei este equívoco o quanto antes.

Resenha: “Assassinato no Expresso do Oriente”.

Aviso: este texto contém spoilers.

O filme Assassinato no Expresso do Oriente é irresponsável.
É importante deixar claro que eu não li o livro. Falo especificamente do filme. Mas, se o diretor usou da sua liberdade artística para fazer modificações no enredo ou se ele não usou dessa liberdade, os dois casos são igualmente lamentáveis.
No filme, o investigador Hercule Poirot, após resolver rápida e miraculosamente o caso do roubo de uma relíquia religiosa em Jerusalém, é convocado numa nova missão que o leva a pegar o trem Expresso do Oriente em direção a Londres.
A certa altura da viagem, que duraria vários dias, um homem é misteriosamente assassinado. A tensão aumenta pois, além do assassinato, o trem sofre com um descarrilhamento após ser atingido por uma avalanche de neve.
A tarefa de investigar o assassinato antes do trem alcançar seu destino final recai sobre o investigador.
A partir daí, acompanhamos os interrogatórios conduzidos por Hercule Poirot com os passageiros. Começa a vir à tona, a partir de pedaços de informações garimpadas dos discursos dos doze passageiros a bordo do trem, a história de um outro crime ao qual muitos dos passageiros pareciam estar conectados. Tratava-se do sequestro e assassinato de uma criança.
Ao final do filme a trama chega ao clímax quando o bigodudo confronta de uma só vez os doze passageiros. Numa cena pretensamente comovente, descobrimos que todos estavam mancomunados na execução do crime.
No fim das contas o assassinado havia sido o suposto perpetrador do sequestro e assassinato da criança, o que, de uma forma ou de outra, afetou a vida de todos os passageiros do trem.
Hercule Poirot se defronta com um grave dilema moral: o investigador acusava os doze pela execução brutal de um sequestrador e assassino de crianças ou encobria a vingança? Afinal, os doze eram pessoas de bem, não eram assassinos por natureza, apenas pessoas amargurados que haviam sofrido uma terrível injustiça, que tiveram suas vidas paralisadas ou destruídas há muitos anos atrás e que buscavam, uma vez que a polícia havia falhado em encontrar o culpado da violência sofrida pela criança, fazer justiça com as próprias mãos.
Poirot “decide com o coração” e ignora os fatos que havia descoberto, encobrindo a verdade, para que aquele grupo de pessoas pudessem seguir suas vidas e tentar viver em paz dali em diante.
É verdade que a discussão a respeito de se o que é ilegal é necessariamente errado é longa e tem as suas nuances. No entanto, há casos em que o convívio social já avançou satisfatoriamente. O fato de considerarmos o assassinato uma coisa errada, tanto do ponto de vista legal quanto social, é uma das coisas positivas do avanço da organização dos seres humanos em sociedades (pena de morte também discutida a parte em outro momento). O que o filme faz é glorificar e romantizar uma prática extremamente reacionária, retrógrada, atitude que já deveria ter sido superada há anos. Essa atitude, no filme, se torna ainda mais grave porque vem encarnada na figura do personagem que representa a razão universal e a força da moralidade humanista.
Isso sem contar com o fato de que o filme deixa completamente de lado a exploração do caso da criança. Se tratou apenas do uso deliberado de uma violência brutal apenas para colocar em cena outra violência brutal. A criança em si foi apenas um peão completamente esvaziado de vida.
Em segundo lugar, a própria vingança foi “necessária” pois a investigação oficial do caso não levou a lugar nenhum. Foi malfeita, corrupta e descuidada. De modo que o filme não convence o expectador curioso em relação à trama de que o homem assassinado no trem era de fato o culpado do assassinato da criança. Esse descuido com a fundamentação do enredo de uma história tão séria faz com que o sentimento incitado na plateia seja o de aceitação inquestionável da culpa do suposto vilão e da validação da premeditada vingança com requintes de crueldade.
O filme não nos leva a refletir sobre os limites dessa prática de linchamento. É muito fácil odiar um assassino de crianças, mas a história está cheia de supostos assassinos de crianças, bruxas, comunistas, judeus etc. que foram perseguidos e mortos por cidadãos de bem sem direito às mínimas garantias da sociedade liberal a um julgamento justo e ao respeito pelo valor intrínseco da vida humana.
E nós ainda podemos ir além. Se cruzarmos o limite ético da proibição do assassinato onde iremos reestabelecer este limite?
Mataríamos apenas assassinos de crianças? E os assassinos dos adultos? Resolveríamos estender a concessão a eles também? Os assassinos passionais se distinguiram ainda dos premeditados? E os assassinatos culposos, e as mortes decorrentes de falhas humanas, e os médicos que receitam remédios para pessoas que acabam utilizando-os para cometer suicídio? Pode ser que você, leitor, considere este último caso absurdo, mas talvez a mãe de um jovem que usou a medicação prescrita pelo psiquiatra que falhou em salvar a vida do filho dela veja as coisas de outra forma.
E aquelas pessoas que ficam muito, muito, muito irritadas quando são assaltadas? Pode ser que elas passem a achar justo matar os ladrões (que vira e mexe já são linchados).
O sentido da nossa argumentação não é moralista. É perfeitamente compreensível que uma pessoa que teve seu ente querido assassinado seja tomada por um desejo de vingança. Não estamos nem discutindo a questão da vingança em si. O que é inadmissível é que a figura de autoridade, a lei, julgue tais crimes de maneira parcial, fora do que a lei permite. E é exatamente isso que acontece no filme, a figura do investigador que representa a integridade ética social cede à barbárie e valida um crime meticulosamente arquitetado, deixando livre e nos fazendo sentir uma piedade acrítica por uma gangue de assassinos linchadores.