Era uma vez… Só que não. 

Era uma vez um rei muito rico, belo e poderoso. Seu reinado foi muito logo e próspero, mas seus súditos e os nobres da corte se preocupavam, pois o rei ainda não havia se casado e não tinha herdeiros.
O rei finalmente resolveu se casar com uma jovem princesa de um reinado além-mar.
No entanto, uma feiticeira maligna amaldiçoou a união e, toda vez que a princesa tentava embarcar para encontrar seu amor, uma tempestade terrível impedia sua viajem. Ele resolveu então viajar com seus homens mais valentes para resgatá-la.
Após duras penas, o rei e rainha sentaram-se em seus tronos.
Mas antes que pudessem viver felizes para sempre, o rei foi em busca da bruxa que havia ameaçado a vida de sua amada, para que jamais precisassem se preocupar novamente.
O rei, então, descobriu que cem bruxas malignas se reunião em suas terras para realizar rituais satânicos matando criancinhas e bebendo seu sangue, realizando estes rituais malignos para atrapalhar a felicidade de homens e mulheres tementes a Deus.
Com a ajuda dos anjos o corajoso rei matou noventa e nove bruxas de uma só vez. A centésima ele levou para o seu castelo para servir de exemplo. Lá, ele envios ferros em brasa em sua língua e depois queixou-a viva. E todos os bons cristãos viveram felizes para sempre.

Só que não.

Esse seria mais um conto de fadas bizarro se não fosse uma história real. A história do Rei Jaime IV da Escócia e I da Inglaterra.

Fiquei sabendo dessa história a partir do livro “O Lado Sombrio dos Contos de Fadas”, de Karin Hueck. 

O livro é extremamente interessante, trazendo as versões originais de diversos contos e realizando uma análise de seus conteúdos  a partir dos significados simbólicos e de possíveis relações com eventos históricos reais. 

O fato real narrado no início deste texto, por exemplo,  ilustrativa o modo como os contos de fadas passaram a ser povoados por tantas mulheres malvadas trabalhando sob a influência do demônio. As bruxas começam a se tornar uma ameaça real e constante na vida das pessoas a partir do século XVI, período do reinado de Jaiminho justiceiro. 

Assustador. 

Mas vale muito a pena a leitura. 

Concurseiros.

Éramos um grupo seleto que faria, em poucos dias, a prova para professor substituto de psicologia da UFRJ.

Era exigência da seleção que todos os candidatos estivessem perfeitamente saudáveis. Eu tive que comprar um pacote de adesivos de nicotina para mim.

Quando chegou o dia da prova, descobri que a avaliação consistia em criar uma obra de arte sob o olhar avaliador severo de um psiquiatra.

Comecei a cumprimentar os demais participantes, quando notei um deles sendo levado para uma sala afastada. Era o orientador que o puxava pelo colarinho enquanto ele chorava silenciosamente e bebia de uma garrafa de cachaça.

– O que é que está acontecendo ali? – perguntei. – Para onde o estão levando?

– Então, o problema dele está nos dentes, então vão ter de arrancá-los antes da prova.

No minuto seguinte começaram os gritos. Gritos roucos, que eram rapidamente abafados pelo som de alguma aparelhagem de dentista. Os barulhos dos aparelhos eram altos, barulhos de brocas e sons metálicos, pinças, ganchos e espátulas para raspar as cavidades abertas dos dentes retirados. Em seguida o silêncio. Provavelmente o momento da costura das carnes abertas. O choro virou um leve, mas constante ressonar trêmulo, aflito, resignado, mas enraivecido.

O orientador desponta da câmara de tortura, encharcado de sangue, para resolver alguns problemas burocráticos. Eu achei melhor ir ver como o candidato estava. Quem pensa em competição nessas horas?  

Entrei vagarosamente na sala e lá estava ele com um fio grosso de sangue escorrendo como baba do canto da boca. Não era possível nem mesmo saber o que ele estava vestindo. Naquele momento ele poderia estar nu, que só se veria o sangue cobrindo seu corpo. Estava sentado em uma carteira comum de estudante, ao lado dele, a mesa do professor com os instrumentos de dentista.

Fui chegando perto dele, que fez sinal para que lhe passasse a bebida estendendo a mão na direção da garrafa e grunhindo. Bebeu de um gole o líquido que havia restado e se levantou de maneira estranha, ao mesmo tempo cambaleante, mas passando a impressão de estar seguramente decidido de alguma coisa. Demorei a entender, tentei ajuda-lo a ficar de pé, mas ele se inclinou na direção da mesa da tortura. Tive um insight gelado que percorreu meu corpo como um calafrio.

Saí correndo da sala. Tentei puxar o orientador dele, que ria e batia papo com outros adjuntos, para alertá-lo do que estava para acontecer. Ele se desvencilhou e me censurou por qualquer motivo, eu já não estava mais prestando atenção. Eu olhava em volta e começava a incitar o resto dos candidatos a saírem do prédio. O meu orientador, surpreendentemente, nos acompanhou.

Quando o candidato saiu da sala, ainda cambaleando, carimbando as paredes ao redor de sangue cada vez que se apoiava nelas e se lançava na direção do seu próprio orientador, eu reparei que este me olhou e eu gritei já do lado de fora do prédio:

– Eu ia te avisar que ele estava indo te matar!

O tempo que o orientador levou para me direcionar um olhar de incredulidade foi fatal. Num último impulso o rapaz havia se jogado contra o orientado e enfiado em sua garganta uma broca de dentista.

Todos começaram a gritar e correr para todos os lados, mas uma voz foi ficando cada vez mais clara no meu ouvido.

– Acorda, vamos lá, acorda, amor. Você acabou dormindo, mas está na hora de voltar a estudar. A prova já está chegando. Falta só mais um pouco.

 

Vocês conhecem Anna Pappenheimer?

Anna Pappenheimer morava na Baviera e tinha 59 anos em 1600, quando foi condenada por bruxaria. Ela era casada, teve sete filhos, quatro deles morreram. Três meninos ficaram vivos. Sua família pertencia às classes mais inferiores que existiam na época; ela era filha de um coveiro e seu marido limpava valas.

Acontece que, no ano de 1.600, um criminoso condenado acusou Anna e sua família de praticarem bruxaria. Nós todos já sabemos como essa história termina, não é? Anna e sua família foram levados a julgamento. Negaram todas as acusações. Após sofrerem inúmeras torturas – todos sabem nomear de cabeça uma ou outra tortura famosa daquele tempo, não é verdade? – a família confessou ter cometido assassinatos de mulheres e crianças, roubos, incêndios e toda sorte de atrocidades. A pena? Anna teve seus seios arrancados e enfiados em sua boca e na de seus dois filhos mais velhos, seu marido teve os braços quebrados e foi empalado pelo ânus, por fim, foram levados por um cortejo formado por pessoas comuns como eu e você, membros da igreja católica e outras autoridades até o local no qual seriam queimados vivos. Ao final do cortejo e antes da fogueira, contudo, tiveram que se ajoelhar perante uma cruz e confessar todos os seus crimes. No caso de Anna alguns deles eram: ter voado em um pedaço de pau ao encontro do satanás, ter tido relações sexuais com ele, ter cometido assassinatos e roubos por meio de bruxarias, ter se utilizados dos cadáveres de bebês não batizados para a fabricação de unguentos e por aí vai. Alguns relatos dizem que Anna ainda estava viva quando começou a ser envolvida pelas chamas e contam que seu filho menor assistiu a todo o espetáculo da ira divina. Ele tinha 10 anos na época e foi morto três meses depois acusado de ter cometido, ele mesmo – com a ajuda de satã é claro – mais 18 assassinatos.

Primeiro eu me pergunto qual é a importância de tomar conhecimento desse tipo de história? Claro. Esse conhecimento pode funcionar como um memorial do holocausto, esfregando na nossa cara as atrocidades que a humanidade põe em prática. De um ponto de vista mais romântico penso que isso é tudo que eu posso fazer por essas pessoas. Não falo pelas que sofrem atualmente e pelas quais eu tento de fato fazer alguma coisa, estou falando de quem já morreu mesmo. E quem já morreu há muito tempo atrás… A única coisa que dá para fazer é saber alguns nomes, conhecer o que a história nos permite saber sobre suas vidas, tomá-las como inspiração para algum dos meus textos. Essas pessoas morreram e ponto. E sim, sou muito sensível quando o assunto é a morte. Quando o assunto é um jovem assassinado na favela ou uma mulher queimada na inquisição. E não. Eu não desculpo a época. Não respeito o período histórico no qual eles viveram. Era um bando de filho da puta de merda que nem sei se acreditava na asneira que pregava. Não importa a época, a crença, não importam os costumes.

Mas não se precipitem na hora de me condenar por essa postura. Tampouco eu respeito a nossa época. Por que, os pós-modernos que me perdoem, mas a tortura e o assassinato apenas mudaram de roupa. A essência é a mesma. Nós temos os nossos julgamentos teatrais, os nossos, carrascos, as cruzes diante das quais devemos confessar nossos pecados – sem falar que a igreja católica ainda está aí.

A única coisa que havia de real em todo esse teatro – que existe ainda – era o sofrimento das vítimas.