“Negro não tem cara de quem gosta de ler”.

Com muito orgulho, mais um post fenomenal de convidados do Encanto (minibio do autor no final).

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Esses dias eu levei meu irmão ao shopping de minha cidade para dar um rolê. Ele tá de férias e eu também, aí quis aproveitar um dia com ele. 

Até aí tudo bem, a gente foi ao shopping com alguns planos do que fazer, pensamos em ir ao cinema e depois comer alguma coisa por lá. 

Quando chegamos no shopping, demos algumas voltas, fomos ver os filmes que estavam em cartaz, mas ele não quis assistir nenhum. Eu achei estranho, porque ele tinha dito que queria assistir “Os Incríveis”, questionei ele sobre o motivo de não querer assistir e ele me disse que não queria assistir filme nenhum, nisso não restou muito o que fazer lá, daí fomos naquele lugar que tem uma par de fliperamas, ele também não quis jogar nada. Aí perguntei o que ele queria fazer, porque eu já estava ficando entediado e ele também. Aí falei para ele que queria ver uns livros e se ele quisesse poderia comprar algum para ele. Quando chegamos na livraria, eu olhei alguns livros, mas nenhum me interessou, foi aí que notei o olhar estranho de algumas pessoas para gente(estranho, mas para mim já é comum ver as pessoas me olhando torto dentro de uma loja), mas nem dei moral, porque não queria que nada estragasse o dia para o meu irmão e para mim. Foi aí que meu irmão me chamou e falou que queria um livro de uma coleção chamada “A Hora do Espanto”, é tipo uma Coleção Vagalume. Eu falei pra ele que tudo bem e perguntei se ele só ia querer aquele, ele me disse que iria procurar outro. Nisso, eu vejo um homem comentar algo com a esposa dele, eu acho que era a esposa, daí os dois ficaram seguindo com o olhar a gente enquanto meu irmão escolhia outro livro. Aí quando eu achei um livro que me interessou, peguei o livro e dei umas folheadas, o cara que tava olhando a gente começou a andar atrás do meu irmão, mas meio que disfarçando. Quando meu irmão foi pegar outro livro, ele colocou o livro que ele tinha escolhido antes em cima de outros para poder alcançar o livro que ele queria, aí o cara foi lá e pegou o livro que ele tinha deixado em cima dos outros e guardou em outra pilha de livros, notei isso e peguei o livro de novo. Meu irmão pegou o segundo livro e me perguntou se poderia pegar um terceiro, eu falei que sim, pq além de incentivar meu irmão a ler, os livros que ele queria estavam na faixa de R$5,00. Quando ele foi pegar o terceiro livro, ele deixou o livro que tinha escolhido em cima de outros livros de novo, aí mais uma vez o cara foi lá e guardou o livro que ele tinha escolhido. Eu olhei bem para a loja para ver se tinha algum vendedor além da moça que tinha me atendido quando entrei na loja e percebi que ela era a única funcionária trabalhando no momento, cheguei no cara e perguntei: Moço, por favor, você trabalha aqui?

Ele me disse que não, aí apontou para a moça que eu sabia que era a vendedora e disse que a moça era a vendedora. Então eu perguntei para ele: Então por que você tá guardando os livros que meu irmão tá escolhendo?

Ele me responde: Eu pensei que ele só estivesse tirando do lugar para ver, porque ele não tem muita cara de quem gosta de ler. 

Eu: Ah, mas não! Ele tá escolhendo os livros que nós vamos comprar! E me fala uma coisa, qual é a cara de quem gosta de ler? Porque assim, eu curso letras e não aprendi isso na faculdade…

Nisso, o cara ficou meio em choque e meu irmão falou pra mim que só queria os dois livros que ele tinha escolhido mesmo. Dei 10 conto e ele foi no caixa pagar.

Aí virei para o cara e falei: Viu, manda um email para reitoria da Unesp e pede para eles colocarem essa matéria de leitura de fisionomia na grade curricular do curso de letras, porque aí a gente aprende a ver quem tem cara de que gosta de ler ou não.


Saí da loja com o meu irmão e fomos comer. Perguntei para o meu irmão o motivo dele não querer jogar nos fliperamas, porque ele vive em função de jogos de computador e videogame. Ele me respondeu: Pra quê eu vou gastar dinheiro jogando, sendo que eu posso jogar em casa sem gastar nada? Preferi gastar dinheiro com os livros, porque ao menos eu posso ler e guardar eles comigo, igual você faz.


Gente, eu tava tão puto com o cara da loja, mas quando eu vi que ao menos para o meu irmão, eu sou um bom exemplo, toda a raiva que eu sentia se misturou com orgulho e alegria. Voltei para casa com um sentimento muito louco e meu irmão com dois livros novos.


Desculpa o textão, mas eu queria muito compartilhar isso com os outros, porque a gente vive em uma sociedade onde o preto não tem cara de ler, onde a criança preta não tem que ler, onde a criança pobre tem que crescer sem aprendizado para poder trabalhar como mão de obra do rico. Eu juro que isso reforçou todos os motivos para eu querer ser professor. E quem não gostou, só lamento!!!


Rafael é graduando em Letras pela Universidade Estadual Paulista – Unesp campus de Assis.

Relato de uma Trans  fora da marginalidade

Hoje eu tenho o prazer de apresentar mais um texto maravilhoso, forte e sensível ao mesmo tempo, da querida amiga Alexia. Que a luta dela possa ajudar e inspirar a todos!!!

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Em meu entendimento, a transexualidade pode ser conceituada como a condição na qual a pessoa não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer por conta de seu sexo biológico, o qual determina em nossa sociedade papeis de fêmea e macho e, por isso, sente necessidade de fazer a transição para o gênero ao qual ela se identifica. 

Apesar de me ver como uma garota desde que me entendo por gente – tenho memórias desde os 3 anos de idade, meu processo de transição foi bem tardio, pois – além de ter que vencer a resistência de família e sociedade, fugi dessa verdade a vida inteira – até mesmo por uma série de preconceitos que me foram plantados e enraizados ao longo da vida. 

Antes de iniciar a transição, pesquisei e estudei a temática por 2 anos aproximadamente (tenho que dar o exemplo, afinal sou profissional da informação), onde aprendi que gênero e sexualidade são coisas distintas (gênero é o que somos e sexualidade por quem sentimos atração), tomei conhecimento de termos como cisgênero (quem se identifica com o gênero atribuído ao nascer) e transgênero (quem não se identifica com o gênero atribuído ao nascer) e outros. Esse período foi essencial para que eu me despisse dos preconceitos internos, vencesse o acovardamento perante família e sociedade que eu tinha forte e me libertasse. 

Quando consegui entender o que eu sou – uma garota sim mas, por ter nascido em corpo classificado como masculino, sou considerada Transgênera, dei início a terapia hormonal, com acompanhamento de endocrinologista e psicóloga. Mas acredito que, mesmo percebendo transfobia, que antes era velada e agora anda um tanto mais evidente no local de trabalho, iniciar a transição tardiamente (março de 2018 completei 2 anos e meio) me possibilitou ser a profissional bem sucedida que sou hoje. 

De qualquer forma, vejo-me como privilegiada por ainda não ter sofrido violências por parte de pessoas desconhecidas (mesmo assim, ando sempre em estado de alerta em espaços públicos, principalmente quando estou sozinha); a transfobia que recebo costuma partir justamente de pessoas de meu círculo familiar, social e profissional. 

O Conselho Regional de Biblioteconomia, região 7 – CRB-7 (Rio de Janeiro) emitiu uma nota recentemente informando que foi o primeiro Conselho Regional de Biblioteconomia do Brasil a possuir uma bibliotecária transexual registrada a fazer uso de nome social, no caso eu. E agora estou, junto com o CRB-7, pioneira novamente na profissão, por ser também a primeira bibliotecária transexual com retificação de nome e sexo na documentação civil e, por consequência, no registro CRB. 

Muito da falta de conhecimento das pessoas, no geral, é atrelada ao preconceito internalizado da sociedade pois, mesmo o assunto sendo veiculado constantemente em vários canais e mídias, há uma resistência forte de uma grande parcela da população em querer compreender a questão, pois falta de informação e de acesso não é. É algo como “não sei, não quero saber, o que importa é o que eu acho” (sempre fundamentado em falsa moral). E – na boa, não vou pautar minha vida, minha existência, de acordo com crenças  e visão de mundo de gente que é ignorante porque assim o quer permanecer. 

Pesquisa e ações voltadas aos estudos de gênero com foco na diversidade, sexualidade e identidades ainda são um tanto tímidas e o tema ainda é pouco discutido de forma ampla e séria pela sociedade brasileira, sendo mais desenvolvidas em países onde a pesquisa e tecnologia são levadas a sério por parte do Governo, tanto que existe um protocolo elaborado pela Universidade da Califórnia e outro na Europa com orientações sobre terapia hormonal e outros estudos sobre a parte psicológica e social da transexualidade. 

A diversidade existe, as pessoas querendo ou não; gostando ou não e deve ser respeitada, pois o mundo é diverso e não há nada que fundamente nem justifique o ódio e a violência cometida contra quem é diferente.


Alexia de Oliveira é Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Pós-graduada em Gestão de Marketing pelo SENAC-SP e  Bibliotecária-chefe de um Centro Tecnológico no estado do Rio de Janeiro.

Ursão. 

– Caraca, então quer dizer que ele saiu do armário lá na festa da empresa? Quando ele começou a falar eu não acreditei!
– Pois é. Mas você não sabe… Eu tenho um amigo de infância, eu já dormi na casa dele e tudo, nunca, nunca rolou nada, assim, o cara sempre tranquilo. Tinha um jeito, mas nunca fez nada, dormi na casa dele várias vezes, né. Ele casou, teve filho. Aí agora, com quarenta anos, o cara, ele falou para mim isso, ele me contou, que resolveu experimentar.
– Caraca, mano. Sério?
– Não, mas escuta só! Aí ele resolveu experimentar, acabou contratando um garoto de programa.
-Nossa, sério?
É, ele contratou um garoto de programa e gostou do negócio.
-Putz!
-Escuta, escuta! Ele gostou do negócio e tá nessa parada aí. Está indo a várias festas gays. E ele gosta da sacanagem mesmo. Sabe? Briga de espada – altas gargalhadas -. É! Não! Estou falando sério! Ele gosta da sacanagem mesmo! Sabe? Da sacanagem!
-E ele te contou, foi isso?
-Foi! Ele veio me contar.
-E a família dele não sabe!
-Sabe! Sabe sim! Ele contou. Ele falou para a mulher dele, a família toda sabe!
-Que isso, cara!
-E o cara gosta! Ele gosta da sacanagem! Briga de espada! Não! E ele é alto assim, grande. Um pouco acima do peso. E ele é bem peludo, sabe. Então o cara é grande, meio gordo e peludo. E tem nicho para isso. É o ursão! Então ele vai nessas festas e faz sucesso. Em site na internet… Aqui! Aqui! Aqui! Olha aqui uma foto dele! É ele aqui. Esse aí sem camisa.
-Ah… Sei… Mas e Marcinha, hein?
-Então, não vejo Marcinha desde antes do ursão.
-É, né. E aquela empresa lá que você trabalhou?
-Nessa época aí que eu via muito o ursão.
-Ok, cara. Entendi.
-É! Que escroto, né?! O cara, ursão, briga de espada – ri novamente, chacoalhando o corpo, com sorriso largo, enquanto o outro esboça um sorriso de canto de boca, dá os últimos goles no café e se despede.

Poucas e boas. 

Hoje uma mulher negra maravilhosa estava gritando na porta do supermercado Zona Sul em Ipanema:
– Você não me peita não, hein! Eu fui te perguntar uma coisa e você cagou para mim!!! Agora você vai me ouvir!!! Você é gente que nem eu!! Quem você está pensando que é?!?! Meu amooor, eu te perguntei uma coisa e você ca-gou. Quero ver você tratar os outros assim!! Quem que você trata assim? Você cala a boca e me escuta que eu vou te ensinar a ter educação.

Os brancos da zona sul passavam em volta horrorizados. Eu passei com uma amiga e comentei:
– É isso que está faltando na minha vida.
Quanta gente por aí que eu queria meter o dedo na cara e gritar: “Cala a boca agora porque quem vai falar sou eu! Eu confiei em você, me entreguei nessa relação e você cagou para mim! Ca-gou. Eu fui muito otária mesmo para você me tratar desse jeito, mas não vai ser mais assim não, amor. Você vai aprender a me respeitar. Tu tá pensando o quê?? Tá pensando o quê?!?! Eu sou gente também. E não me peita não, hein; não me peita não, que agora você vai me ouvir. Eu te tratando direito e você tirando uma comigo?! Você abusando e abusando. Entorta tanto que uma hora quebra, meu bem. Minha paciência a-ca-bou. Eu cansei de ser usada e você cagando para mim. Só quer saber do venha a nós! E nada do vosso reino?! Eu vou te ensinar agora o que é respeitar uma pessoa”.
Um dia eu vou chegar lá.
Com relação a mulher, eu parei para perguntar se estava tudo bem. Ela disse que a tinham ignorado e tratado mal quando ela quis ir ao banheiro lá. Mas ela havia feito compras como todos outros clientes. Por ser negra e pobre, contudo, foi tratada com hostilidade pelos funcionários que, ela afirmava, eram tão pretos e pobres quanto ela e tinham que aprender a respeitar as pessoas na mesma condição.

Deficiente é tudo igual, não é?

No último domingo, dia 19/11/17, eu fiz o concurso público da UFRJ, concorrendo para a vaga de Assistente Administrativo.

Como o número de vagas era “alto”, havia vagas para deficientes e eu concorri a uma delas.

Foi a primeira vez que fiz prova para um concurso que abriu vagas para deficientes. Infelizmente, só tenho coisas ruins a relatar.

As salas reservadas para os deficientes eram bastante isoladas e distantes. Antes disso, eu não sei como eles selecionam o lugar no qual as pessoas realizarão a prova, mas seria de se imaginar que iriam colocar os deficientes para realizar provas em locais próximos das suas casas. Tinham dois lugares onde seriam realizadas provas da UFRJ na minha rua e, ainda assim, me jogaram para o Fundão.

Quando eu finalmente cheguei ao Fundão e depois da jornada para encontrar a sala (tudo acompanhada da minha mãe), tive a agradável surpresa de que a sala era, na verdade, um auditório. A princípio, parecia que os problemas haviam terminado. Sala confortável, boa iluminação. Mas foi neste ponto que os problemas recomeçaram.

Colocaram na mesma sala pessoas que só enxergavam com muita claridade e pessoas com fotofobia, como eu. Foi um desespero de abre persiana, fecha persiana, chama o técnico para ver se consegue dar um jeito. Que jeito? No auditório em que estávamos, havia vários conjuntos de lâmpadas diferentes. Três, pelo que eu pude perceber. De modo que era possível acender qualquer um dos conjuntos de lâmpadas isoladamente ou os três de uma vez.

O primeiro conjunto de lâmpadas ficava na parte da frente do auditório, iluminando o tablado e deixando o resto da sala numa semipenumbra. Delicinha. Sabe aquelas palestras nas quais você dorme a sono solto? Então. Havia um segundo conjunto de lâmpadas espalhadas em fileiras ao longo do auditório. Entre uma fileira de lâmpadas e outra deveria haver um espaço de aproximadamente dois metros. Enquanto as luzes que iluminavam o tablado eram amarelas, arredondadas e bem fortes, este segundo conjunto era de lâmpadas compridas que pareciam se esconder em dobras do teto. A luz que emanavam era branca e sutil. Com estes dois conjuntos de lâmpadas acesas a sala estava perfeita para mim. O terceiro conjunto de lâmpadas ficava no espaço de dois metros que mencionei, formando uma nova fileira. As lâmpadas aí eram como as que iluminavam o tablado. Quando este terceiro conjunto era acendido, a iluminação era projetada em cima das mesas onde iríamos escrever e praticamente me cegavam. Então, era necessário acender estas lâmpadas para os que precisavam de muita luz, mas desafrouxar aquelas que ficam em cima das mesas dos fotofóbicos para que não acendessem. Foi um troca-troca de lugar, um senta levanta de dar dor de cabeça até que todos pudessem se ajustar.

Depois desse desespero, ainda aconteceu o problema dos tamanhos das provas. Todos na sala haviam pedido prova ampliada e metade das provas veio em tamanho normal, inclusive os cartões-resposta. Começou um fuzuê tão grande que os fiscais foram chamar uma supervisora. A mulher chegou já pisando duro e perguntando: “O que que foi, gente? O que é que está acontecendo?” Nossa, que mulher grossa! Grossa com os fiscais e grossa conosco que faríamos a prova.

Todos estavam preocupados porque a mulher grossa disse que iria buscar as provas e os cartões ampliados, portanto nós deveríamos nos acalmar e começar logo a prova, mas e aí? Como faríamos com dois cartões? Isso não ia dar problema? Correria o risco de sermos desclassificados? Ela praticamente falou que éramos uns escandalosos preocupados à toa, mas, como veremos adiante, deu problema sim, então a agitação era justificada. A mulher não deu nem previsão do tempo que levaria para que chegasse o novo material.

Enfim, começamos a fazer a prova com uns quarenta minutos de atraso. Eu já estava estressada, com vontade de ir ao banheiro (eu pedi, mas não pude sair enquanto as discussões estavam rolando).

Durante a prova ainda ocorreram diversas interrupções. As duas mais desagradáveis merecem destaque. A primeira foi quando a supervisora veio entregar os cartões. Como já havia transcorrido mais de uma hora de prova, eu fui marcando o meu cartão. Vai que a mulher não chega nunca ou chega já nos últimos minutos… “Melhor pintar essas minúsculas bolinhas do que não conseguir preencher tudo ou fazer correndo e acabar errando depois”, pensei premonitoriamente. Por isso eu não me manifestei quando ela perguntou quem havia solicitado o negócio, mas a mulher atrás de mim, querendo ajudar, falou que eu havia solicitado um. Eu me manifestei:

– Não, obrigada. Não precisa mais não – pois eu não queria nem pegar o cartão não estando confiante de que não daria problema.

Aí a babaca me faz um comentário completamente dispensável em voz super alta para todo mundo ouvir – Ah, então não era necessário, não é.

Cara, foi bate e volta, eu levantei a cabeça na hora e respondi – Era muito necessário, mas deveria ter estado aqui antes da prova começar.

Fiquei muito orgulhosa por não ter deixado passar aquele comentário. Já era a segunda vez que eu me estressava com ela. No início, quando estavam distribuindo as provas, eu tive uma dúvida, perguntei a um dos fiscais e ela veio se intrometendo e me dando patada. Eu reclamei do jeito que ela estava falando comigo e ela ficou fazendo sinal de joinha na minha cara.

Eu fico sensível em momentos de estresse. Eu estava sensível naquele momento sim, mas não era só eu que estava puta com o comportamento dela. Foi só a mulher sair que todo mundo reclamou. Estavam todos legitimamente tentando adequar suas deficiências à situação da prova. Aconteceu um monte de merda no meio do caminho e a pessoa que está ali para resolver fica te tratando mal?! Porra!

A segunda interrupção foi justamente por causa do cartão. Parece que todos que estavam com o cartão pequeno, esperaram o grande para começar a marcar as respostas, menos um cara, que marcou em um catão até o outro chegar. Mas ele acabou errando na marcação do novo cartão, o grande, e resolveu entregar o pequeno mesmo. Nós não havíamos sido orientados a não marcar os dois cartões, ninguém falou que se marcasse o grande, era ele que valeria. Lembra, quando estávamos tentando tirar essas dúvidas, a grossa interrompeu e falou que não ia ter problema nenhum, que estávamos muito estressadas, que era para a gente respirar. Aí o cara ficou uns dez minutos brigando com o fiscal, porque queria que valesse o cartão pequeno. O fiscal também não sabia muito bem o que fazer, estava inseguro, mas tentava afirmar que não podia escolher, que ia ser o grande. E metade da sala ainda estava fazendo a prova.

Pois bem, para começar, o local de realização da prova, difícil acesso para certos tipos de deficiência; não sabiam como organizar as pessoas, jogaram deficientes com necessidades incompatíveis na mesma sala (na hora de fazer a inscrição, havia lá a possibilidade de marcar fotofobia, então não era nem como se eles não soubessem das pessoas nesta condição); depois foram as provas e cartões que vieram em tamanhos errados; e, por fim, os profissionais despreparados (o que nem foi o pior) e grossos.

Péssima experiência. Eu não fui bem na prova (Ok, não foi só pela condição esdrúxula da realização da prova, mas também porque eu continuo não sabendo uma vírgula de matemática).

 

“Eu espio com os meus olhos”. Parte VI.

Me formei. Hora de atacar o mercado de trabalho. Bom, eu fui trabalhar com clínica particular e com docência.

Na clínica, meu problema de visão nunca foi um grande problema. Eu fico a pouca distância do paciente, portanto, consigo enxergá-lo suficientemente bem.

Eu já percebi que ver o rosto do outro com clareza faz diferença em algumas situações sim. Por exemplo, eu não tenho nenhum problema de audição, mas quando pergunto para o motorista do ônibus, por exemplo, se aquele ônibus passa em tal lugar, eu nunca entendo a resposta, mas o meu marido sim. A minha hipótese é que as pessoas normalmente fazem meio que uma leitura labial inconsciente que colabora para que se entenda o que o outro está falando em locais barulhentos ou quando estão falando baixo. Como eu não enxergo o movimento da boca, acabo tendo dificuldade para ouvir o que as outras pessoas falam em certas situações.

Esse, ainda bem, não é o caso no consultório, pois é um lugar silencioso. Além disso, eu já estou adaptada ao meu problema de visão. Eu não consigo ver o branco dos olhos do cliente, mas a minha percepção de alterações no rosto dele me fazem perceber que ele mudou o direcionamento do olhar. Pequenas habilidades adaptativas que são desenvolvidas para lidar com o dia a dia. Esta é mais uma das razões pelas quais os médicos não indicam a cirurgia para a miopia no meu caso. Eu já estou há 27 anos nesse processo adaptativo. A cirurgia não me daria uma melhora tão significativa, mas seria o suficiente para invalidar todas as estratégias que eu desenvolvi até hoje para lidar com a deficiência visual!

No meu trabalho em consultório, acredito que o único momento em que meus clientes percebem que eu tenho algum problema de visão é quando eu tenho que preencher e assinar recibos na frente deles. Como isso ocorre com pouca frequência, eu não me dou ao trabalho de ficar explicando o problema.

Dando aula o buraco é mais embaixo. Não faço grandes cerimônias para explicar o problema, mas sempre tem aquele aluno que começa a falar do nada, sem levantar a mão. Nesses casos, eu tenho duas alternativas: quando eu não estou a fim de falar sobre a minha visão, eu faço uma cara de concentrada e fico olhando para baixo, quando eu estou disposta, eu brinco. “Quem está falando aí? Levanta a mão porque – mais alto! -; isso… agora sim estou te vendo”. Os alunos, às vezes, comentam que eu estou precisando trocar os óculos e eu respondo: “Menina, quem tem tempo para isso? É mais prático e mais barato se vocês levantarem a mão!”

Recentemente eu comecei um treinamento para dar aulas em um lugar novo (ano que vem vai ter post sobre isso!) e, nesses casos, sempre bate a dúvida: faço o discurso da lamentação – ah… eu tenho um problema de visão assim e sei lá mais como… – ou deixo rolar e se der merda eu explico? É uma grande dúvida.

Mesmo que eu não fique me fazendo de coitada quando apresento o problema, as pessoas ficam ou com pena ou com receio. Com receio principalmente se se tratar da sua chefe no trabalho. Então, eu tenho um pouco de medo desse preconceito e acabo deixando rolar no início. Depois eu explico o que eu tenho de maneira que pareça menos uma solenidade.

De um modo geral tenho que jogar as mãos para o céu, pois além do episódio no estágio durante a faculdade que eu já mencionei ao longo do me relato, nunca tive problemas no trabalho por conta da deficiência.

Não sei como seria se eu tivesse tentado entrar no mercado de trabalho empresarial. Tenho a impressão de que não ia chegar muito longe não. Mas isso não me frustra. Eu ia ficar louca se trabalhasse dentro de um escritório. Passei tempo demais ouvindo minha mãe falar: “Filha, procure um trabalho no qual você não fique presa dentro de um escritório. Entrar de manhã cedo, sair já depois de escurecer”. Uuuu… Me dá arrepios só de pensar. Por isso eu odeio o horário de verão, porque tem sol até mais tarde e o calor é exorbitante, e minha mãe ama, porque ela ainda via a luz do sol depois de sair do trabalho.

Temos também os concursos públicos. O povo acha que é moleza fazer a prova com a concorrência bastante reduzida. Isso é verdade mesmo. Mas talvez isso não compense o fato de que as opções de concursos com vagas para deficientes é muito pequena e é quase impossível achar um concurso com vagas para deficientes que pague bem. Então, não se chateiem por não ter a vantagem de competir para as vagas de deficiente.

Bom, de qualquer forma, o meu maior problema para trabalhar não é o trabalho e si, mas é como chegar ao trabalho.

A questão do transporte novamente. Esse, pelo que estou percebendo, vai ser o problema da minha vida.

E eu faço muita coisa, então…

Trabalho com a docência em duas instituições diferentes, em dois consultórios… Os horários também não são fixos, o que torna difícil fazer sempre arranjos de carona. Então eu estou constantemente rodando as ruas do Rio de Janeiro. Ando até os pontos finais para pegar os ônibus, vou até ruas onde só passa aquela linha que serve para mim, caminho meia hora até os metrôs, gasto uma grana com transporte individual, peço milhões de caronas para minha mãe, peço ajuda aos amigos para me colocarem nos ônibus.  

Eu me viro e muita gente me ajuda, mas não vou abrir mão de dizer que é chato, inconveniente e, algumas vezes, triste ter que lidar com qualquer tipo de deficiência.

Por outro lado, não dá para negar, a vida é boa para caralho.  

Isso é gordofobia?

Eu sempre me achei gorda. Mesmo quando eu era magrinha durante a adolescência. Hoje em dia, realmente estou com sobrepeso.
Felizmente, os diversos tipos de preconceito então ganhando cada vez mais espaço nos debates atuais. De machismo eu já entendo um pouquinho, pelo menos. Agora estou precisando entender um pouco mais sobre a gordofobia, pois acho que tenho sofrido com isso também.
Hoje entrei no ônibus às 20h voltando do trabalho. Ainda estava cheio.
Eu fiquei encostada na roleta até uma senhora me chamar e falar em alto e bom tom: “Senta aqui! Você está grávida!” Ok. Pensei: eu digo que não estou grávida e dou um golpe na minha autoestima (infelizmente seria isso que aconteceria) ou eu acaricio meu abdômen cheio de estrogonofe e tomo o lugar desta pessoa bem-intencionada?
Minha escolha foi sentar. Esfreguei a barriga, dei o nome de Alfredo ao estrogonofe semi-digerido e falei que Alfredo estava para nascer já daí a dois dias! A mulher ficou espantada! Se já estava de nove meses eu estava era magrinha. Pois é, moça. Alfredo vai nascer com todas as regalias a que tem direito. Parto de cócoras e dentro d’agua. Isso que eu chamo de parto humanizado.

A intenção da “pintura” de ontem.

Ontem eu fiz um texto psicodélico (não estou mentindo, veja aqui), coisa que eu não costumo fazer.
Quando eu leio narrativas das quais eu não consiga retirar um sentido explícito (algo que faça sentido para mim, não falo nada da intuição do autor), eu fico desconfortável. Sinceramente, prefiro narrativas racionais.

Por isso mesmo acho que o exercício de ontem foi bom e talvez eu faça mais dele no futuro.
Por enquanto eu vou ser indulgente com as minhas necessidades racionalistas e vou discorrer sobre o sentimento que me dominou ontem.

A filha de uma amiga minha de infância adoeceu e, apesar de eu não ter falado com esta amiga nos últimos dias, fiquei apreensiva, torcendo pela saúde da menina e pensando na barra que minha amiga devia estar passando.
Foi quando me dei conta do quanto a gente cresceu.

A gente: a galera que ficava no meu portão comendo brigadeiro caseiro da mesma colher e dividindo uma garrafa Pet de água.

E a gente cresceu muito.

Cresceu e nossos universos sedimentaram de um modo que, ontem, me pareceu total e indestrutível.

Na infância e na adolescência, eu experimentei um milhão de atividades diferentes: dança, luta, língua japonesa, canto e por aí vai. Todas as carreiras e estilos de vida possíveis estavam ao meu dispor.

Conforme eu fui envelhecendo, conforme todos nós fomos envelhecendo, fomos fazendo escolhas aparentemente mais marcantes e duradouras. Fomos deixando de enxergar caminhos possíveis onde antes víamos algo que estava ao alcance da mão.

Acho que ontem, pensando na situação da minha amiga com a filha doente (que já melhorou e está toda serelepe novamente), eu olhei para as nossas vidas, a minha e a dela e de todos nós que crescemos juntos nas últimas décadas e perdi a esperança de que um mínimo dessa liberdade aguada que a gente prova no dia a dia fosse sobreviver ao peso das escolhas que fomos fazendo e das portas que fomos fechando. Como se outras vidas já não fossem possíveis (ou como se achássemos mesmo impossível desejarmos outras coisas).

A salvação foi que eu me lembrei de uma pergunta escrota que fizeram para um colega meu há uns dois anos atrás. Disseram: “Vem cá, o que há para se esperar da vida depois dos trinta além da morte”?

A resposta dele foi digna de um sábio oriental. Ele, com uma extrema sensibilidade, se lembrou das próprias angústias dos vinte e poucos anos, quando ele mesmo achava que era isso aí mesmo que a vida ia ser para sempre. A revelação foi que ele sentiu tudo mudar depois dos trinta. Ele sentiu um ânimo novo e impetuoso. Sentia que a vida estava só começando e que tudo era possível novamente.
Eu acrescentaria ainda, depois de parar para refletir sobre a resposta dele e observar as gerações anteriores a minha, que a vida recomeça a cada nova década.

Passamos por pequenas renovações anuais, mas o que me parece é que as pessoas, ao adentrarem uma nova década de vida, são sempre tomadas por um novo fôlego, um novo olhar para o futuro. E aquela liberdade pálida ganha corpo e se torna um universo de possibilidades tão rico quanto aquele que vislumbramos embasbacados éramos adolescentes.
A diferença é que, quando a gente envelhece, a gente tem talvez ainda mais meios de escolher seguir um desses caminhos que nos der na telha.

O único vilão que temos que combater é a nossa própria prisão mental que nos diz que o mundo aberto da juventude ficou para trás e que estamos presos às escolhas que fizemos pelas responsabilidades que adquirimos ao longo da vida.

Não falo de jogar tudo para o alto irresponsavelmente. Falo de acreditar em si mesmo, avaliar nossos recursos e possibilidades e nunca se deixar convencer de que “é isso aí mesmo e a vida nunca vai ser mais do que isso”.

Tenho o pé no chão ainda que esteja defendendo este discurso de esperança de que tudo vai ficar bem no final. Esse discurso não pode mais ser feito sem pensarmos nos preconceitos: machismo, racismo, LGBTfobia e todos os outros preconceitos que oprimem e matam pelo país afora. Existem posições desfavorecidas na nossa sociedade que dificultam em muito a busca de novos caminhos e alternativas. Dificultam verdadeiramente, sem espaço para o blá blá blá ridículo do “se se esforçar consegue”. Ainda assim, afirmo que há esperança. Esperança que muitas pessoas vão encontrar na luta por melhores condições de vida, igualdade, dignidade; esperança numa revolução. Estes são os agentes da mudança não apenas da vida própria, mas também são agentes de uma mudança há muito devida para todos. O que eu quero defender é que todo mundo tem que ter o direito de tentar ser feliz nesta vida e se sentir realizado de alguma forma.

Portanto, procure saber o que te motiva, se agarre a isso e siga em direção à mudança ou em direção à luta pela possibilidade da mudança. Vai te fazer bem.

Doidera, não é? Mas era este o raciocínio por detrás do quadro que eu gostaria de ter pintado (realmente pintado, com tinta e tudo) ontem e não consegui. Faz sentido para você?