A intenção da “pintura” de ontem.

Ontem eu fiz um texto psicodélico (não estou mentindo, veja aqui), coisa que eu não costumo fazer.
Quando eu leio narrativas das quais eu não consiga retirar um sentido explícito (algo que faça sentido para mim, não falo nada da intuição do autor), eu fico desconfortável. Sinceramente, prefiro narrativas racionais.

Por isso mesmo acho que o exercício de ontem foi bom e talvez eu faça mais dele no futuro.
Por enquanto eu vou ser indulgente com as minhas necessidades racionalistas e vou discorrer sobre o sentimento que me dominou ontem.

A filha de uma amiga minha de infância adoeceu e, apesar de eu não ter falado com esta amiga nos últimos dias, fiquei apreensiva, torcendo pela saúde da menina e pensando na barra que minha amiga devia estar passando.
Foi quando me dei conta do quanto a gente cresceu.

A gente: a galera que ficava no meu portão comendo brigadeiro caseiro da mesma colher e dividindo uma garrafa Pet de água.

E a gente cresceu muito.

Cresceu e nossos universos sedimentaram de um modo que, ontem, me pareceu total e indestrutível.

Na infância e na adolescência, eu experimentei um milhão de atividades diferentes: dança, luta, língua japonesa, canto e por aí vai. Todas as carreiras e estilos de vida possíveis estavam ao meu dispor.

Conforme eu fui envelhecendo, conforme todos nós fomos envelhecendo, fomos fazendo escolhas aparentemente mais marcantes e duradouras. Fomos deixando de enxergar caminhos possíveis onde antes víamos algo que estava ao alcance da mão.

Acho que ontem, pensando na situação da minha amiga com a filha doente (que já melhorou e está toda serelepe novamente), eu olhei para as nossas vidas, a minha e a dela e de todos nós que crescemos juntos nas últimas décadas e perdi a esperança de que um mínimo dessa liberdade aguada que a gente prova no dia a dia fosse sobreviver ao peso das escolhas que fomos fazendo e das portas que fomos fechando. Como se outras vidas já não fossem possíveis (ou como se achássemos mesmo impossível desejarmos outras coisas).

A salvação foi que eu me lembrei de uma pergunta escrota que fizeram para um colega meu há uns dois anos atrás. Disseram: “Vem cá, o que há para se esperar da vida depois dos trinta além da morte”?

A resposta dele foi digna de um sábio oriental. Ele, com uma extrema sensibilidade, se lembrou das próprias angústias dos vinte e poucos anos, quando ele mesmo achava que era isso aí mesmo que a vida ia ser para sempre. A revelação foi que ele sentiu tudo mudar depois dos trinta. Ele sentiu um ânimo novo e impetuoso. Sentia que a vida estava só começando e que tudo era possível novamente.
Eu acrescentaria ainda, depois de parar para refletir sobre a resposta dele e observar as gerações anteriores a minha, que a vida recomeça a cada nova década.

Passamos por pequenas renovações anuais, mas o que me parece é que as pessoas, ao adentrarem uma nova década de vida, são sempre tomadas por um novo fôlego, um novo olhar para o futuro. E aquela liberdade pálida ganha corpo e se torna um universo de possibilidades tão rico quanto aquele que vislumbramos embasbacados éramos adolescentes.
A diferença é que, quando a gente envelhece, a gente tem talvez ainda mais meios de escolher seguir um desses caminhos que nos der na telha.

O único vilão que temos que combater é a nossa própria prisão mental que nos diz que o mundo aberto da juventude ficou para trás e que estamos presos às escolhas que fizemos pelas responsabilidades que adquirimos ao longo da vida.

Não falo de jogar tudo para o alto irresponsavelmente. Falo de acreditar em si mesmo, avaliar nossos recursos e possibilidades e nunca se deixar convencer de que “é isso aí mesmo e a vida nunca vai ser mais do que isso”.

Tenho o pé no chão ainda que esteja defendendo este discurso de esperança de que tudo vai ficar bem no final. Esse discurso não pode mais ser feito sem pensarmos nos preconceitos: machismo, racismo, LGBTfobia e todos os outros preconceitos que oprimem e matam pelo país afora. Existem posições desfavorecidas na nossa sociedade que dificultam em muito a busca de novos caminhos e alternativas. Dificultam verdadeiramente, sem espaço para o blá blá blá ridículo do “se se esforçar consegue”. Ainda assim, afirmo que há esperança. Esperança que muitas pessoas vão encontrar na luta por melhores condições de vida, igualdade, dignidade; esperança numa revolução. Estes são os agentes da mudança não apenas da vida própria, mas também são agentes de uma mudança há muito devida para todos. O que eu quero defender é que todo mundo tem que ter o direito de tentar ser feliz nesta vida e se sentir realizado de alguma forma.

Portanto, procure saber o que te motiva, se agarre a isso e siga em direção à mudança ou em direção à luta pela possibilidade da mudança. Vai te fazer bem.

Doidera, não é? Mas era este o raciocínio por detrás do quadro que eu gostaria de ter pintado (realmente pintado, com tinta e tudo) ontem e não consegui. Faz sentido para você?