A Interdição do Suicídio.

Capítulo III    

A partir do século II d.C., Roma começa a se deparar com as tentativas de invasões bárbaras que ameaçam um império sub-povoado atingido pela fome e a peste. Sob a constante ameaça de dispersão do domínio territorial, ganha força a pregação cristã e novas noções de responsabilidade afloram no homem pecador decaído, divido entre a fé e o compromisso ético-político na “comunidade de fato” da ordem temporal. Declina o estoicismo e, com ele, o direito do cidadão de dispor da própria vida. A conduta refletida e racional é substituída pela doutrina da dignidade, de aceitação do destino (Chatelêt, 2000, p.26).

O império, em intensa crise econômica necessita cada vez mais de gente para defender o Estado e para sustentá-lo economicamente. A legislação prevê, então, novas sanções a determinados tipos de suicídio. Antes dessa crise, caso uma pessoa levada a julgamento fosse considerada culpada, além de morrer sob tortura tinha a família prejudicada pela confiscação de seus bens. No entanto, se houvesse um suicídio antes do julgamento, este ficava impedido. Depois do enrijecimento das leis aqueles suicidas não escapam mais à punição, mas sua ação é tomada como confissão de seu crime, portanto são imediatamente considerados culpados e se prosseguem as demais sanções. Endurecem também as penas contra escravos e soldados que atentam contra a própria vida. Isto para que, a partir do século IV d.C., passassem a ser condenados todos os tipos de suicídio e a punição designada a tal ato recaía tanto sobre os familiares quanto sobre o cadáver. Os rituais supersticiosos se estabelecem como pena assim como a confiscação dos bens. (Esse enrijecimento das leis que regiam a conduta foi aplicado a diversas esferas da vida privada. Ou seja, uma série de medidas de controle e organização sociais para tentar fazer com que o império superasse o período das invasões. O que não aconteceu. O grande império romano foi destruído. Eu destaquei aqui, por conta do interesse do trabalho, o endurecimento das penas contra o suicídio, mas o que estava em jogo era um conjunto de ações. Esse conjunto de ações teve como efeito uma outra maneira de olhar para a morte voluntária. Começou a ser criado um estigma em torno da ideia do suicídio que, principalmente no auge do império romano, não era verificado. A gente vai ver no que que isso deu mais adiante).

A doutrina cristã, então já dominante e, conforme declina o império Romano, cada vez mais influente na organização política, ainda que por razões diversas daquelas das do imperador, também demonstra seu repúdio ao suicídio e promove ampla campanha de moralização dos costumes (Góes, 2004, p.172). As atitudes tomadas pela igreja nesse sentido são: o esforço pela revalorização do casamento (e da virgindade), condenação aos desvios sexuais (sexo oral, masturbação), proibição do aborto como método contraceptivo (Áries e Duby, 2006) e a recusa de sepultura cristã para os suicidas. A necessidade dessa oposição seria a princípio devida às atitudes dos cristãos devotos que se entregavam com plena disposição ao martírio[1]. (A própria doutrina cristã estava ameaçada na época por conta do desprendimento da vida dos devotos do cristianismo que chegavam a praticar ações terroristas naqueles primeiros anos. Portanto, houve também, nesse período, a luta pelo estabelecimento da religião católica oficial e de seu código de conduta. Impressionante isso, não é? A luta pelo estabelecimento dos princípios da religião católica na verdade foi uma luta mesmo. Uma batalha de corpos e de ideias, de homens poderes, de riquezas. Não foi o caminho pacífico da iluminação).

As bases para a condenação do suicídio, contudo, não estão expressas nos Textos Sagrados, sendo assim houve dificuldade para a Igreja em assumir uma posição definitiva e coerente perante o ato, que só virá a se firmar por volta do século XI d.C., mesmo assim devido ao contexto histórico e não pela força de seus argumentos. As Escrituras Sagradas não traziam julgamentos do ato, mas, pelo contrário, uma série de exemplos louváveis do mesmo. Razis, cognominado pai dos Judeus, “preferiu morrer nobremente antes de cair nas mãos dos ímpios”, transpassou-as com sua espada, lançou-se animosamente da torre onde se encontrava na multidão de soldados que forçavam sua porta.

Todavia, ainda respirando, cheio de ardor, ergueu-se e, embora o sangue lhe jorrasse como uma fonte de suas horríveis feridas, atravessou a multidão numa carreira; em seguida, de pé sobre uma rocha escarpada e já inteiramente exangue, arrancou com as próprias mãos as entranhas que saíam, e lançou-as sobre os inimigos (Macabeus II, 14, 45-46).

(Essa foi outra parte insana do trabalho: percorrer a bíblia atrás dessas citações. Mas o legal da pesquisa é justamente isso. Não era só aprender sobre o suicídio em si, o que por si só era muito interessante, sem dúvida, mas eu sempre gostei também de aprender sobre outros períodos históricos, de saber como as coisas eram no passado. É meio isso mesmo, você começa a perceber que tudo foi construído pelos seres humanos e que as coisas nem sempre foram do jeito que são hoje, portanto, elas podem mudar. Tendo sido criada em uma família católica, também foi particularmente interessante para mim ver como a bíblia trazia ensinamentos diferentes daqueles que eram passados na igreja e pelos que professam essa fé. Foi ficando cada vez mais clara para mim aquela ideia de que a religião é construída por pessoas. Isso faz com que você comece a perceber que a sua religião e a do amiguinho são iguais e as duas merecem respeito. Uma não é melhor do que a outra. Todas são sistematizações da fé que o ser humano é capaz de expressar, são feitas por homens – literalmente falando – na maioria das vezes, e atendem a determinados interesses).

Eleazar, numa façanha arriscada, “projetou então salvar todo o povo e conquistar um nome eterno” atirando-se debaixo do elefante do rei para matá-lo e morreu junto com ele (Macabeus I, 6, 43-46). Sansão, aprisionado e cego pelos filisteus, evoca o nome de Deus rogando-lhe força para se vingar: “Morra eu com os filisteus! Dizendo isso, sacudiu com toda a força o edifício, que ruiu sobre os príncipes e sobre todo o povo (…) Matou pela sua própria morte” (Juízes, 16, 30). Abimelec, gravemente ferido, pede a seu escudeiro que lhe desfira um golpe de espada para que não digam que foi morto por uma mulher (Juízes, 9, 54). (Ok, esse é o exemplo mais idiota). E Saul, derrotado em uma batalha lançou-se sobre a própria espada e seu escudeiro morreu do mesmo modo (Samuel II, 31, 4-5).

A própria morte de Cristo, ato fundador do cristianismo, não teria sido por uma entrega voluntária? Cristo se entrega à própria morte, sem tentar em momento algum dela se evadir. Esta questão ocupa teólogos medievais de maneira mais demarcada até aproximadamente o século V. (A morte de Cristo era muito comparada com a morte de Sócrates pelos teóricos que eu estudei. Os dois teriam tido oportunidade de fugir de seu destino, mas seus ensinamentos não teriam sido levados a cabo se eles tivessem escapado da morte).

De um modo geral, a negação da vida terrena e a aspiração à morte para se aproximar de Deus e da eternidade abrem espaço para predisposição ao suicídio. O bom cristão, a exemplo de seu mestre, é induzido ao sacrifício da própria vida. Conforme os ensinamentos bíblicos “Quem quiser a sua vida perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por minha causa encontrá-la-á” (Evangelho São Mateus 16, 25). No século II, Tertuliano, hostil à latinidade pagã, admite a ideia de uma penitência da alma após a morte, da qual somente os mártires escapariam. Todos os outros teriam um tempo de espera até ao juízo final. (O martírio é caracterizado por uma entrega voluntária à própria morte. Você concorda que essa atitude é abarcada pelo conceito de suicídio? Há muito debate em torno dessas ideias. Mas, geralmente, entende-se que esta é sim uma forma de suicídio. Por isso todo o embaraço dos teólogos perante a necessidade de encontrar bases bíblicas para a condenação do ato).

As bases para a condenação do ato são, então, buscadas primeiramente na doutrina platônica, tal como interpretada pelas autoridades eclesiásticas. Santo Agostinho emerge aqui como seu principal representante, utilizando-se também do “não matarás”, que segundo ele interditaria tanto a morte auto-infligida quanto o homicídio. Esta é a primeira aproximação destas duas ações: a de matar a si mesmo e a de matar ao próximo. O suicida é um homicida de si mesmo. O quinto mandamento, no entanto, está longe de ser absoluto, pois é permitido matar os condenados, e os inimigos, tanto da Igreja quanto do Estado. (Olha como as coisas não são assim, preto no branco. Essa discussão é feita em diversos tons de cinza. Como a igreja condenaria de maneira absoluta o assassinato, mesmo que seja o assassinato de si mesmo? Tudo bem que tem um mandamento que proíbe matar, mas a igreja tinha que abrir certas exceções. É aí que você vê a questão dos interesses dos quais eu falei. A igreja tem interesses aliados com os interesses do Estado, especialmente em se tratando de Estados que não eram laicos, a igreja tem interesses econômicos. E, não se engane, nem mesmo os mandamentos são maiores do que esses interesses. Por que motivo você acha que a igreja não está travando uma guerra com o governo dos Estados Unidos atualmente para lutar contra a pena de morte? Pelo contrário, o padre vai lá na cadeia confessar os condenados? Pois essa não é uma briga que interessa para a igreja comprar agora. Assim, como a igreja já precisou fazer muitas guerras para proteger seus interesses, ela não poderia condenar completamente o assassinato e o suicídio, como consequencia). Além disso, a própria doutrina cristã se apresenta como uma dificuldade, por pregar o desprezo a esta vida mundana e enaltecer a vida eterna[2]. As considerações de Santo Agostinho sobre o suicídio estão expostas em A cidade de Deus e se constituem como a primeira demonstração bem articulada que se conhece no Ocidente sobre o tema.  Durante toda a Idade Média, notadamente no período patrístico, sua leitura constituía importância fundamental na formação dos doutores da Igreja, tal como a Bíblia. Em função das controvérsias entre Império e Igreja, era lida a partir de uma perspectiva política. Pois, pretendia indicar as forças malignas que atuavam por meio da luta política, na Terra, através da sede de poder e de glória, sem afirmar, contudo, que o Império estaria destinado à danação. Ele reconhece que na cidade terrena encontram-se vivendo juntos tanto os que pertencem à cidade celeste quanto os que pertencem à cidade da Terra. Em A cidade de Deus, o tema do suicídio, avaliado do ponto de vista da desobediência divina, é tratado a partir de dois ângulos.

No primeiro, prevalece a condenação do suicídio no que concerne à valorização da vida e à consideração desta como dádiva divina. A morte de si poderia ser interpretada como meio para alcançar a dimensão supratemporal da vida eterna que a tudo se sobrepõe. Por essa razão, o filósofo desenvolve argumentos em resposta aos discursos que justificavam a morte voluntária. Seguindo sua argumentação, nenhum cristão teria o direito de causar a própria morte, mesmo que tal iniciativa tivesse como pretexto: evitar cometer mais pecados futuros, preservar a pureza; expurgar pecados passados, buscando uma vida melhor após a morte; martirizar-se para redimir os pecados do mundo. Segundo Santo Agostinho, o suicídio torna impuro aquele que atenta contra si; a vida torna-se necessária para penitência e reparo de pecados passados; o julgamento divino após a morte não concederá uma vida melhor a um pecador e contrai-se um pecado próprio gravíssimo ao matar-se pelo pecado alheio.

No segundo, o filósofo absolve personagens bíblicos e as mulheres santas cristãs que praticaram tal ato, em respeito à Tradição e à autoridade das Escrituras. Diferencia sua argumentação quando são avaliados casos pagãos. Ressalvas ao suicídio só são admitidas em se tratando de valores aplicados àqueles que assumem o cristianismo. Aos pagãos, é previamente estabelecido o rigor do julgamento condenatório. Todavia, não é possível inferir a aprovação à prática de suicídio religioso equivalente ao martírio. Finalmente, porque um juízo de condenação universal poderia pô-lo em contradição com a veneração da Igreja, o filósofo deixa em aberto os casos marcados pela certeza absoluta de uma permissão divina. (Ou seja, pode se matar em alguns casos, algumas vezes o suicídio é mesmo louvável, mas em outros não, sendo o ato considerado extremamente reprovável).

Com Santo Agostinho, houve uma tendência à “unificação doutrinal” que permitiu reunir a pluralidade do pensamento grego, constituindo um conjunto teórico capaz de nortear as condições de acesso à verdade sob um mesmo solo.  Essa unificação se estende à prática quando prescreve condutas mediadas por procedimentos de purificação e “combate à concupiscência” (Foucault, 1984, p. 221).

Por volta do século XI d.C., uma nova medida é adotada pela Igreja para tentar impedir o suicídio: a confissão passa a ser obrigatória para todos os fiéis pela sua sacramentalização. Por essa medida, pretendia-se aliviar a consciência dos fiéis pelo recebimento imediato do perdão divino de seus pecados, graças ao poder intercessor da Igreja. Deste modo esperava-se aplacar o desespero do suicida diante da grandiosidade de suas faltas e a incerteza da misericórdia divina.

Já ao longo da primeira metade do século XIII, São Tomás de Aquino, diretamente influenciado por Aristóteles, representa o apogeu da escolástica medieval quando aproxima a fé da razão e a filosofia da teologia. Dilui oposições entre as verdades da razão natural e as verdades divinas reveladas, esclarecendo que a razão divina seria a expressão plena da razão humana. Para tal projeto, lança mão do método escolástico da disputa para analisar se matar a si mesmo seria lícito ou não. Este método consistia em apresentar argumentos retirados de fontes reconhecidas pela Igreja contra e a favor de algo para que, em decorrência da quantidade ou do peso dos argumentos, se chegasse a um veredicto quanto ao assunto. Primeiramente, São Tomás de Aquino apresenta cinco argumentos segundo os quais seria lícito se matar para em seguida apresentar três argumentos segundo os quais seria ilícito se matar: o suicídio seria contra a natureza, pois toda coisa amaria a si mesma, logo destruir-se seria contra uma inclinação natural. Em segundo lugar, ele seria contra a sociedade, na qual cada um teria um papel a desempenhar. Por último, seria um pecado contra Deus que, tendo-nos dado a vida, seria o único que possuiria o direito de dispor da mesma. Contudo, pela necessidade de justificarem os suicídios cometidos por figuras caras à Igreja, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino admitem que, por um apelo divino, o suicídio poderia ser com glória executado. (Nossa, cada volume da Suma Teológica é um livrão, não é. Eu ficava com dor nas costas de carregar aquele negócio para cima e para baixo na hora de estudar esses argumentos).

Por fim, o que se percebe de uma maneira geral é que, na medida em que o Império Romano decai e a Igreja católica se torna extremamente influente no governo, se alinham as forças do Estado e da Igreja contra a morte de si mesmo. Observa-se então que, neste momento, as necessidades sociopolíticas e econômicas se aliam à moral.

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1]A exemplo do movimento donatista, grupo religioso extremista de dissidentes da Igreja oficial e do Império, em geral de classes desfavorecidas que praticavam atos de terrorismo espalhando horror e derramando sangue em Roma. Era costume entre os membros do grupo tirar a própria vida arrogando para si a glória do martírio, seja entregando-se aos soldados do império, constrangendo pessoas a matá-los  sob ameaças de matá-las ou jogando-se do alto de rochedos. Esse ímpeto donatista surge como fruto da crise econômica e política. Sua violência e extravagância poderiam ser interpretadas por uma ânsia de participação social (Góes, 2004).

[2]Segundo as Sagradas Escrituras “Se alguém vem ter comigo e não me prefere ao seu pai, mãe, esposa, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida não pode ser meu discípulo” (Evangelho de São Lucas 14, 26.)

Resenha: “Assassinato no Expresso do Oriente”.

Aviso: este texto contém spoilers.

O filme Assassinato no Expresso do Oriente é irresponsável.
É importante deixar claro que eu não li o livro. Falo especificamente do filme. Mas, se o diretor usou da sua liberdade artística para fazer modificações no enredo ou se ele não usou dessa liberdade, os dois casos são igualmente lamentáveis.
No filme, o investigador Hercule Poirot, após resolver rápida e miraculosamente o caso do roubo de uma relíquia religiosa em Jerusalém, é convocado numa nova missão que o leva a pegar o trem Expresso do Oriente em direção a Londres.
A certa altura da viagem, que duraria vários dias, um homem é misteriosamente assassinado. A tensão aumenta pois, além do assassinato, o trem sofre com um descarrilhamento após ser atingido por uma avalanche de neve.
A tarefa de investigar o assassinato antes do trem alcançar seu destino final recai sobre o investigador.
A partir daí, acompanhamos os interrogatórios conduzidos por Hercule Poirot com os passageiros. Começa a vir à tona, a partir de pedaços de informações garimpadas dos discursos dos doze passageiros a bordo do trem, a história de um outro crime ao qual muitos dos passageiros pareciam estar conectados. Tratava-se do sequestro e assassinato de uma criança.
Ao final do filme a trama chega ao clímax quando o bigodudo confronta de uma só vez os doze passageiros. Numa cena pretensamente comovente, descobrimos que todos estavam mancomunados na execução do crime.
No fim das contas o assassinado havia sido o suposto perpetrador do sequestro e assassinato da criança, o que, de uma forma ou de outra, afetou a vida de todos os passageiros do trem.
Hercule Poirot se defronta com um grave dilema moral: o investigador acusava os doze pela execução brutal de um sequestrador e assassino de crianças ou encobria a vingança? Afinal, os doze eram pessoas de bem, não eram assassinos por natureza, apenas pessoas amargurados que haviam sofrido uma terrível injustiça, que tiveram suas vidas paralisadas ou destruídas há muitos anos atrás e que buscavam, uma vez que a polícia havia falhado em encontrar o culpado da violência sofrida pela criança, fazer justiça com as próprias mãos.
Poirot “decide com o coração” e ignora os fatos que havia descoberto, encobrindo a verdade, para que aquele grupo de pessoas pudessem seguir suas vidas e tentar viver em paz dali em diante.
É verdade que a discussão a respeito de se o que é ilegal é necessariamente errado é longa e tem as suas nuances. No entanto, há casos em que o convívio social já avançou satisfatoriamente. O fato de considerarmos o assassinato uma coisa errada, tanto do ponto de vista legal quanto social, é uma das coisas positivas do avanço da organização dos seres humanos em sociedades (pena de morte também discutida a parte em outro momento). O que o filme faz é glorificar e romantizar uma prática extremamente reacionária, retrógrada, atitude que já deveria ter sido superada há anos. Essa atitude, no filme, se torna ainda mais grave porque vem encarnada na figura do personagem que representa a razão universal e a força da moralidade humanista.
Isso sem contar com o fato de que o filme deixa completamente de lado a exploração do caso da criança. Se tratou apenas do uso deliberado de uma violência brutal apenas para colocar em cena outra violência brutal. A criança em si foi apenas um peão completamente esvaziado de vida.
Em segundo lugar, a própria vingança foi “necessária” pois a investigação oficial do caso não levou a lugar nenhum. Foi malfeita, corrupta e descuidada. De modo que o filme não convence o expectador curioso em relação à trama de que o homem assassinado no trem era de fato o culpado do assassinato da criança. Esse descuido com a fundamentação do enredo de uma história tão séria faz com que o sentimento incitado na plateia seja o de aceitação inquestionável da culpa do suposto vilão e da validação da premeditada vingança com requintes de crueldade.
O filme não nos leva a refletir sobre os limites dessa prática de linchamento. É muito fácil odiar um assassino de crianças, mas a história está cheia de supostos assassinos de crianças, bruxas, comunistas, judeus etc. que foram perseguidos e mortos por cidadãos de bem sem direito às mínimas garantias da sociedade liberal a um julgamento justo e ao respeito pelo valor intrínseco da vida humana.
E nós ainda podemos ir além. Se cruzarmos o limite ético da proibição do assassinato onde iremos reestabelecer este limite?
Mataríamos apenas assassinos de crianças? E os assassinos dos adultos? Resolveríamos estender a concessão a eles também? Os assassinos passionais se distinguiram ainda dos premeditados? E os assassinatos culposos, e as mortes decorrentes de falhas humanas, e os médicos que receitam remédios para pessoas que acabam utilizando-os para cometer suicídio? Pode ser que você, leitor, considere este último caso absurdo, mas talvez a mãe de um jovem que usou a medicação prescrita pelo psiquiatra que falhou em salvar a vida do filho dela veja as coisas de outra forma.
E aquelas pessoas que ficam muito, muito, muito irritadas quando são assaltadas? Pode ser que elas passem a achar justo matar os ladrões (que vira e mexe já são linchados).
O sentido da nossa argumentação não é moralista. É perfeitamente compreensível que uma pessoa que teve seu ente querido assassinado seja tomada por um desejo de vingança. Não estamos nem discutindo a questão da vingança em si. O que é inadmissível é que a figura de autoridade, a lei, julgue tais crimes de maneira parcial, fora do que a lei permite. E é exatamente isso que acontece no filme, a figura do investigador que representa a integridade ética social cede à barbárie e valida um crime meticulosamente arquitetado, deixando livre e nos fazendo sentir uma piedade acrítica por uma gangue de assassinos linchadores.

“The Good Place”.

Depois de passar momentos maravilhosos assistindo a esta série resolvi fazer uma recomendação.
The Good Place é uma série do Netflix que está, atualmente, na metade da segunda temporada.
A outra metade da segunda temporada está prevista para retornar na metade de janeiro de 2018.
A série conta a história de um grupo de quatro pessoas que, após a morte, vão para um bom lugar, o paraíso. Uma lugar no qual serão reunidas com suas verdadeiras almas gêmeas e serão felizes por toda a eternidade.
Uma dessas pessoas, contudo, acredita que está no lugar errado. Após ter levado uma vida bastante questionável, a personagem Eleanor, percebe que foi mandada para o lugar bom por engano. A partir de então, ela começa a ter aulas de ética com sua suposta alma gêmea, que era um professor de ética e moral na universidade.
A série é centrada nos conflitos éticos que se apresentam para a personagem que terá o apoio de sua alma gêmea até uma grande reviravolta, quando descobrimos algo de inacreditável sobre o lugar bom.
Com muita filosofia e muitas menções a pensadores ilustres, a série consegue ser bastante inteligente e divertida.
Para quem procura uma série de comédia que tem o mérito de nos fazer pensar muito sobre a vida e a morte de uma maneira leve e profunda na medida certa, esta é a indicação ideal.

“De S. a K.”.

Já escrevi alguns textos no blog sobre blackout poetry. Você pode vê-los  aqui e aqui.

Pois é… Hoje eu tive um dia bem tenso e estressante e não estava me sentindo muito bem quando cheguei em casa depois de passar o dia inteiro na rua cumprindo obrigações que eu ainda não sei muito bem a qual propósito vão servir na minha vida. Quando cheguei em casa, pensei no blog e eu ainda não tinha preparado o texto de hoje. O que melhor para se fazer, depois de um dia estressante, do que passar algum tempo fazendo algo que vai te fazer se sentir bem? (Lembra do texto de ontem? Eu realmente uso aquele modelo de tabela para pensar sobre a minha vida. Com o hábito, eu já nem sempre preciso desenhá-la no papel, eu apenas mantenho-a em mente para avaliar os meus dias). Tendo isso em visto, eu pensei que o texto de hoje deveria ser especialmente terapêutico para mim.  Neste momento tive um insight! Vou cutucar a minha dissertação!

Eu sei! Não parece nada terapêutico! Mas isso é porque você ainda não fez blackout poetry na sua dissertação. Foi libertador!

Eu ainda pretendo fazer nela inteira. Hoje foi só o primeiro passo.

E eis como ficou o resumo da minha dissertação… (Orientador, caso o senhor esteja lendo isso, saiba que a blackout poetry não é desrespeitosa com o texto, pelo contrário: é uma forma potente de apropriação da escrita do autor. E deus sabe que os estudantes universitários sofrem com o sentimento de desconexão em relação ao resultado dos seus trabalhos acadêmicos. Eu ainda vou realizar uma oficina com ex-estudantes de pós-graduação só para fazer trabalhos artísticos terapêuticos com as teses e dissertações. Quem tiver interesse… inbox!).

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de s a k