A corrupção estrutural e a corrupção cotidiana, ou o jeitinho brasileiro.

Estão dizendo por aí que é o “jeitinho brasileiro” a origem da corrupção que vemos nos nossos governantes.

Se você realiza uma pequena ação errada no seu dia a dia, você não é diferente do político que rouba do hospital, causando indiretamente a morte de milhares de pessoas, ou daquele que rouba o dinheiro da merenda das escolas e deixa criancinhas passarem fome.

Outro dia eu estava revendo uns episódios antigo de The Big Bang Theory. Até que um episódio ilustrou perfeitamente o absurdo que é ancorar a corrupção estrutural na “corrupção cotidiana”.

Existe um salto qualitativo entre colar em uma prova e deixar crianças passarem fome, entre sentar no assento preferencial e roubar o dinheiro do pagamento dos médicos. 

No episódio da série que eu mencionei, Leonard chega dois dias mais cedo de uma viagem de trabalho que durou três meses. No lugar de voltar direto para seu apartamento e encontrar seu amigo Sheldon, ele vai para a casa da namorada, Penny, escondido. Se Sheldon o descobrisse lá, Leonard passaria maus bocados. Contudo, Sheldon, após uma rápida interação com Penny, enquanto ela tenta se desvencilhar do amigo que a convida para jantar, desconfia. Ele acredita que Penny estava acompanhada, mas, sem saber da volta do amigo, ele acredita que ela está traindo Leonard.

Sheldon retorna para seu apartamento e, mais tarde, encontra sua namorada, Amy. Sheldon começa a levantar alguns argumentos para justificar sua crença da infidelidade de Penny. Amy, a princípio cética, descarta os argumentos de Sheldon. É um desses argumentos que Amy descarta que chama atenção e é relevante para a presente discussão.

A certa altura, Sheldon afirma que, certa vez, ele e Penny estavam em um “concurso de encarar” (uma brincadeira infantil: duas pessoas se encaram fixamente, quem piscar primeiro perde) e Penny teria batido palmas muito alto e feito Sheldon piscar. Ou seja, ela teria trapaceado no jogo. O personagem então afirma que era uma questão de dar um pequeno passo entre trapacear em um jogo e a infidelidade sexual. (Esse foi um dos argumentos rejeitados por Amy). 

O fato de Penny ter trapaceado na brincadeira não fala absolutamente nada da sua postura ética em relacionamentos amorosos.

Ao tomar decisões éticas em sua vida, uma pessoa normalmente considera uma série de fatores. O resultado de suas ações é um destes fatores. Se uma pessoa avalia que suas ações não trarão consequências negativas em aspectos importantes, ela pode acabar realizando esta ação a despeito de considera-la errada.

Nada disso tem o objetivo de justificar as coisas erradas que fazemos em nosso dia a dia, o importante é esclarecer que essas atitudes nada têm a ver com a corrupção política.

A corrupção política, como dito anteriormente, é estrutural. Sabe quando a gente diz “que a política corrompe as pessoas”, “os honestos não sobrevivem lá dentro”? Isso sim é verdade. Quem é honesto quando entra na política ou é corrompido, desiste, ou nunca vai conseguir hegemonia no comando do Estado. Os jogos de poder do governo são sustentados nas alianças, interesses do capital e batalhas ideológicas. É esse frágil equilíbrio de forças que tem como um de seus componentes essenciais a corrupção.  

Figurativamente falando, a bancada do governo é como um balcão de atendimento para os negócios dos ricos. Os grandes banqueiros e empresários chegando até o governo com interesses que nada têm a ver com as demandas do povo brasileiro e recebem favores em troca de grandes quantidades de dinheiro.

Toda essa sujeira tem que escoar para algum lugar para que a nossa revolta não seja direcionada para o lugar certo. E é aí que entra o “argumento da legalidade”: dividir para conquistar. O argumento da legalidade é caracterizado pela culpabilização individual daqueles que escapam da norma de alguma maneira. Os problemas do país são vistos dessa forma como a soma dos resultados de cada ação individual fora da lei, por menor que ela seja. O problema e que o todo é sempre maior do que a soma das partes. Todas as pequenas ações ilegais somadas não justificam ou explicam o problema da corrupção.

Se nenhum brasileiro saísse do escopo da legalidade a corrupção dos corruptos governantes do nosso país apenas iria brilhar intacta e inalterada.

Se não entendermos isso seremos os motoristas de ônibus que expulsam aqueles que não têm dinheiro para voltar para casa depois de um dia de trabalho e que acabam dormindo na rua, acreditaremos que a passagem de ônibus está cara por causa da gratuidade, seremos os vizinhos que acreditam que a luz está cara por causa daqueles que têm gato, seremos aqueles que acreditam que as taxas do cartão de crédito estão altas por causa da inadimplência.

O problema é: um Estado cujos membros vivem completamente dentro da lei é mais utópico do que o comunismo. Isso quer dizer que, enquanto não aprendermos a driblar o argumento da legalidade e entendermos que a culpabilização individual serve apenas para desviar a nossa atenção dos verdadeiros culpados dos nossos problemas, vamos atacar uns aos outros fazendo o trabalho sujo dos governantes.

Para finalizar, uma reflexão. Existem as pequenas ações ilegais que são verdadeiros atos de resistência. Não vamos esquecer dos “pulões” de 2013, quando os manifestantes seguravam as portas traseiras dos ônibus abertas para que as pessoas conseguissem entrar de graça. Essa ação é ilegal e altamente recomendada. O objetivo dessas ações é sempre o de criar uma pequena rachadura no sistema favorecendo o povo no lugar dos empresários.