Outras violências.

Ainda no pescoço! Direto no pescoço. Era sempre onde você me atacava. Mas agora tem gente para ver e essas pessoas, essas testemunhas não vão permitir que você me convença, como você fazia quando éramos só você e eu, de que os enforcamentos, os chutes nas costas, os roxos no braço, não eram sinais de violência e agressão física. Você fez muito bem mesmo. Nunca me deu um tapa na cara e por isso conseguiu me fazer acreditar por muito tempo que eu não sofria de violência doméstica. Você se recusou a acreditar. Lá no fundo, eu sempre desconfiei. Você fingia que não existia essa minha desconfiança. Como é para você? Saber que, no fim das contas, você foi traído? Que eu te enganei e te enganei bonito? Que eu aprendi a jogar tão bem o seu jogo que eu pude me mover por entre o pântano que você criou ao meu redor e escapar e esconder um amante bem debaixo do seu nariz? Eu aposto que você se sente completamente estúpido agora. Como é para você saber que eu sou mais inteligente? Que eu tenho mais desejo? Que eu estou mais viva do que você? E, quando por tristeza eu minguava, você adorava. Adorava que eu fosse preguiçosa, adorava que eu estivesse semidesfalecida, jogada na cama enquanto você cuidava da sua vida. Você adorava ter que cuidar de mim, tão fraca, para poder reclamar depois, me punir e se sentir superior. Mas mesmo com a sua presença nociva, seus comentários devastadores, mesmo com o meu mal-estar e seu narcisismo, eu consigo ver agora que você era fraco desde o início. Tão fraco. Fraco, sozinho e amedrontado. A única força que você tinha mesmo era a força bruta dos membros masculinos. Nas pernas e nos braços, no caso, em outros departamentos você tinha a maciez de um marshmallow.

Quem vai ficar com a televisão? 

– Eu quero a minha TV de volta.
– E eu quero o meu tempo de vida de volta!!! Eu quero todo o tempo que você roubou de mim. Todo o tempo que eu passei cozinhando para você enquanto você estudava, todo o tempo que eu passei lavando sua roupa enquanto você trabalhava, todo o tempo que eu passei trepando com você enquanto você me humilhava.
– A sua comida nem era tão boa assim, as roupas não ficavam tão cheirosas ou bem passadas e trepar era obrigação mesmo. Ainda assim, eram essas coisas que faziam de você uma mulher decente e digna do meu amor. Mas agora eu vejo que o que tinha de melhor em você era falso. E logo agora que eu ia finalmente te pedir em casamento. Você não devia ter feito isso. Você perdeu o único homem que ia te tratar com decência apesar de você ser desse jeito. Agora, devolva a minha televisão!
– Não! Não devolvo porra nenhuma!
– Eu devia imaginar que além de tudo você ainda era ladra. Não tem palavra. Mas eu não sei o que eu esperaria de uma pessoa como você mesmo. Todas os encartes dos meus preciosos CDs estão mercados com as suas digitais, algumas capas estão com os dentes quebrados, tudo isso apesar de eu ter dito explicitamente a você que não queria que fosse retirado o plástico protetor com o qual eu encapei cuidadosamente cada um dos meus CDs, muito menos que você os escutasse. Há linhas que foram puxadas dos colarinhos das minhas camisas por conta do seu desleixo. Boa sorte encontrando um outro homem para aturar esses seus defeitos.
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– Ela é uma ladra. Não tem palavra, nem honra. Uma vadia que me enganou se passando por Santa.
– O que que ela fez que te deixou assim tão chateado? Vocês terminaram brigados?
– Ela ficou com a TV.
– Que TV?
– A que eu comprei para o apartamento.
– Tá de sacanagem?
– Foi imoral da parte dela, exatamente.
-Não! Tá de sacanagem você! Você me falou que hoje em dia se arrepende, mas que chegou a agredi-la! E ficou puto porque ela te devolveu todas as suas coisas, mas quis ficar com a TV?! Ela devia ter te denunciado! Você devia estar atrás das grades! Você é um agressor de mulheres! Olha, rapaz, acho que não vai dar para a gente continuar junto não. Tava muito bom, a gente tava se conhecendo, mas essa conversa de hoje foi esclarecedora e me abriu os olhos.
– Eu entendo. Hoje em dia é muito difícil encontrar uma mulher decente…
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– Então, o babaca te contou que agrediu a namorada e tava puto por causa da TV e meia dúzia de caixinha de CD quebrada?!
– Pois é! Aí eu falei que era melhor a gente não se ver mais e ele começou a me humilhar, sabe? Dizendo que não tem mulher decente no mundo além da própria mãe dele.
– Ui!
– Exato! Ele já estava querendo me enredar naquele joguinho de culpa como se ele fosse o maioral. Discursinho machista que ele deve te usado para aprisionar a ex dele, coitada.
– Surreal…
– Mas aí, amiga, você não vai acredita no que aconteceu depois!
– O que?
– Ele virou para ir embora cheio de si, não é, satisfeito porque tinha me colocado no meu lugar. Só que tinha essa rua lá que ele estava atravessando quando eu gritei mandando ele ir tomar no cú. Menina… ele virou de súbito na minha direção, eu tive certeza de que ele ia partir pra cima de mim e me enfiar a porrada, mas estava vindo um ônibus em alta velocidade que atropelou ele e o partiu em mil pedaços.
– Caramba, amiga! Imagina como é que você deve ter ficado!
– Fiquei muito puta, né!?
– Hm?
– A mão dele não foi separada do corpo com a violência da batida e não foi me voar na minha cara!
– Mentira!
– Te juro!

Banheiro térreo do prédio da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Eu estava matando aula no teatro de arena. Cochilei e acordei com vontade de fazer xixi. Rodei um pouco pelo magnífico casarão que comporta a Escola de Comunicação da UFRJ e achei um banheiro razoável. Sem sabão, sem papel, mas limpo e eu tinha lencinhos na bolsa. Entrei no box do banheiro, fechei a porta, abaixei a calça e a calcinha até a altura do tornozelo. Inclinei um pouco o quadril para trás e fiquei olhando pelo meio das pernas para ter certeza de que o xixi ia cair no lugar certo e porque acho difícil mirar as cegas. Quando não olho, ou o xixi acaba escorrendo pelas pernas ou ele bate na tampa do vaso e acaba respingando nojentamrnte em mim.

Quando deu cinco horas encontrei meu ex-namorado no pátio. Ficamos jogando conversa fora até que eu mencionei o tal banheiro, apenas por alto, pois queria falar de uma lanchonete que tinha ali perto. Mas à menção do banheiro ele se contorceu. Seu rosto se alongou e os lábios se viraram para baixo ele ficou vermelho e seus dentes se afilaram enquanto ele gritava que eu era uma puta! Eu era louca e não o respeitava. Comecei a sacudir a cabeça para os lados em negação daquelas acusações. Eu não sabia do que se tratava ainda, mas primeiro eu negava, sempre negava e pedia perdão. “Não! Pelo amor de Deus! Por que você está falando isso? Eu não fiz nada! Pelo amor de Deus me perdoa! Do que você está falando? Depois da habitual humilhação pre-explicação ele me disse que aquele banheiro era devassado. De um certo ponto do corredor em oposição ao banheiro do outro lado de um jardim para o qual se abria a janela do mesmo, era possível ver dentro das três cabines. Meu coração disparou. Que argumento usarei para combater uma acusação de um crime que foi o de, inadvertidamente, abaixar as calças e a calcinha até o tornozelo e olhar no meio das pernas para direcionar o xixi, dentro do box de um banheiro, que poderia estar sendo observado por um voyeur posicionado a uns 30 metros de distância?

As vítimas da minha dissertação. Parte II: saúde mental.

Na defesa eu vou arrumada, vou receber “críticas construtivas” que vão ser muita bem recebidas e consideradas. Virão de homens sábios e de barba, provavelmente. E o que eu tenho a ver com esses senhores, meu deus!? Porra nenhuma. Vê porque preciso pedi anteriormente desculpas pela grosseria? Um dos meus grandes problemas emocionais é depender da aprovação dos outros. Todo meu esforço de me desvencilhar disso vai por água abaixo toda vez que escrevo. E está piorando. Porque cada vez luto mais para me safar. Ou luto menos, sei lá. A angústia já não me abandona e estou chata. Muito chata. Completamente chata. Cativa, cheia de medo, encurralada e chata. Quando eu comecei a ler, quando era nova ainda, achei que eu ia crescer e ser uma pessoa triste. E a minha tristeza ia ser magnífica. Como a do Edgar Allan Poe.  Uma melancolia profunda, sábia, produtiva e admirável. Mas eu cresci, fiquei deprimida e impotente. Uma depressão clínica, psiquiátrica, sem cor e sem brilho. Daquelas para se calar com remédio, pois ninguém mais a minha volta atura. Esse estado mental, não o atingi sozinha. A dissertação me deu as mãos e me levou. Se eu tivesse enlouquecido ainda vá lá. Loucura é um sucesso literário. Mas eu fiquei com o clichê da mulher morta. Um corpo inerte e acessório na história de outra pessoa, ou, no meu caso, eu sou o corpo inerte que dá vida à dissertação.