“Por onde andam meus pés”? Dia 3.

Talvez eu devesse agradecer aos meus pés pelos caminhos que percorro todos os dias. É que os pés são tão fáceis de ignorar… É mais fácil racionalizar e julgar sempre que a cabeça é a grande estrela da vida. A muito custo ela divide o palco com o coração. O estômago às vezes também marca presença, pelo menos o meu, mas os pés…. Mesmo quando andamos muito quem dói são as pernas.
E foi graças ao fato de estar prestando atenção aos meus pés que eu notei hoje, perto de casa, uma jabuticabeira.

Quando eu era mais nova eu gostava muito de andar à esmo pela cidade. Naquelas ocasiões eram verdadeiramente, de maneira inegável, meus pés que guiavam o caminho. Eles confabulavam com o vento e para onde apontavam eu ia. Perdi esse costume e passei a ignorar meus pés.

Eu devia ter percebido a dica quando li “Mulheres que Correm com os Lobos”. Se trata, na verdade, de seguir os próprios pés. Essa é a verdadeira sabedoria.

Acusamos certas histórias, morais e exortações de serem clichés. Pois bem, todas as histórias, as morais e as exortações orientais que atualmente são populares no ocidente tentam nos mostrar que a verdadeira sabedoria não está na cabeça e nós ainda não aprendemos.

A última que ouvi foi de um jovem monge que se preparou por três anos para sua última prova de sabedoria, quando deixaria de ser o aluno para se tornar o mestre. Ele estudou todos os segredos do universo e tinha certeza de que ia se sair magnificamente bem. No caminho para o templo onde realizaria o exame, repassou todo o conteúdo em sua mente. Sabia tudo. Chegou em silêncio, respeitosamente, e ajoelhou-se diante de um tablado. Depois de um instante o mestre que estava a sua espera disse: “Está um belo dia lá fora. Quais são mesmo as cores das flores na entrada do templo”? O jovem monge se deu conta de sua estupidez e partiu para se preparar por mais três anos e repetir o teste.

A moral cliché? “Stop and smell the flowers.” (Pare e cheire as flores). Ou seja, pare e preste atenção à vida ao seu redor. Mais cliché impossível. Mas nós ainda não estamos cheirando as flores.

Talvez se o monge estivesse prestando mais atenção aos próprios pés, ele tivesse passado no teste.

“A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena”.

Claro. Qualquer texto sobre vingança tem que começar com esta frase. Se não, não se trata de um texto sério.

Estou fazendo alguma piada? Não.

Eu ouvi o Seu Madruga repreender o Chaves por querer dar uma martelada na cabeça do Quico afirmando que: “a vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena”.

Mas… em outras trocentas vezes, o Chaves fazia merda, o Quico reclamava, a Dona Florinda acudia e achava que a culpa só podia ser da “gentalha”, ela batia no Seu Madruga – a gentalha – e este ia atrás do Chaves e dava um cascudo nele enquanto vociferava: “é tudo culpa de quem?!”. E eu ficava: “whaaaaat?”.

Eu recebi mensagens confusas do Chaves durante a minha infância em relação a essa história de vingança. Afinal, é bom ou ruim?

Fiquei anos me debatendo, em crise de consciência, por conta dos desejos de vingança que me assolavam e os perdões que eu não conseguia emitir.

Eu realizei vários tipos de vingança ao longo da vida:

– eu já escrevi coisas horríveis a respeito de certas pessoas nos meus diários;

– eu já escrevi o nome da pessoa que eu não gostava em uma folha de papel e queimei a folha;

– eu já surrupiei pequenos objetos de lojas para me vingar do sistema capitalista;

– eu já falei mal de alguém pelas costas;

– eu já esfreguei mentalmente os meus feitos na cara de outras pessoas, imaginando;

– eu já escrevi textos com finais horríveis para pessoas horríveis.

– eu traí meu “companheiro” em relacionamentos pretensamente amorosos.

Bom, essas dentre outras coisas. E depois de cada uma delas eu me sentia um pouco mal e um pouco bem.

Várias lições de moral ficavam ecoando na minha cabeça e me deixando tonta e com mais raiva.

Já tentei perdoar também. Repetir mantras positivos, desejar o bem a quem me fez o mal. Me prometeram que perdoar significava se livrar dos sentimentos negativos e seguir adiante com a própria vida, quem sabe até esquecer. Foi então que eu aprendi que perdoar é difícil para caralho, ou eu tenho uma mega de uma falha moral de nascença que me impede de conseguir perdoar.

Com o tempo, contudo, o que eu pensava sobre perdão e sobre vingança mudou completamente.

Existem vários graus diferentes de intensidade e de repercussão do comportamento vingativo e do perdão também.

Eu sei que eu já me vinguei muito nessa vida e eu me lembro mais das vinganças em si – que foram prazerosas ou emocionantes – do que do acontecimento ou da pessoa de quem eu estava me vingando. Simplesmente não é verdade que a vingança consome a pessoa que quer se vingar. Às vezes ela alivia a sua frustração e o seu sentimento e você pode seguir em frente com a sua vida. E quanto ao perdão, algumas vezes é tão difícil perdoar, é necessário fazer tanto esforço para conseguir perdoar, que você acaba se sentindo consumido pelo fato que não sai da sua cabeça, além de se sentir incapaz e essencialmente mau por falhar na tarefa de perdoar quem te ofendeu.

Categorizar tanto a vingança quanto o perdão como algo simplesmente bom ou ruim é um erro. Nada nesse mundo é tão preto no branco. (Se a sua mente já foi parar nos psicopatas, segura! Eu não vou falar sobre isso neste texto. Prometo um para o futuro).

A vingança pode ser positiva e o perdão pode acabar sendo negativo.

Sim!

O problema é que quando pensamos em vingança logo imaginamos algo bastante sanguinário e violento. A vingança, na maioria das vezes não é assim. A vingança pode ser simples e libertadora.

Primeiro podemos dividi-la entre pública ou privada.

A vingança pública ocorre quando nossa ação vingativa tem efeitos diretos ou indiretos sobre outras pessoas: por exemplo, quando você fala mal de outra pessoa ou quando você dá um soco em alguém.

A vingança privada ocorre quando você realiza algum tipo de ritual privado que satisfaz o seu desejo de vingança: por exemplo, falar mal de uma pessoa em seu diário.

Afirmo que a vingança privada é saudável e tem um potencial para desencadear algum efeito maléfico próximo do zero.

Quanto ao primeiro tipo de vingança ao qual me referi, a vingança pública, precisamos ainda categorizá-la quanto ao grau de impacto que ela causa.

Acredito que ela tem cinco graus de impacto no que diz respeito a publicização em si da vingança. De mais leve para o mais grave esses graus seriam: a sua ação afeta a pessoa que é alvo da sua vingança, mas ninguém jamais descobre ou fica sabendo, nem mesmo a própria pessoa (por exemplo, aquela vingança mítica em filmes de Hollywood de cuspir no copo de outra pessoa. A pessoa foi afetada, pois vai beber o seu cuspe, mas ela nunca vai saber. Nem ela nem ninguém). No segundo grau, outras pessoas ficam sabendo da vingança, mas não aquela que é alvo da ação (quando se fala mal de alguém pelas costas). No terceiro grau, a pessoa fica sabendo da vingança de que foi alvo, mas as outras pessoas não (quando você xinga uma pessoa em particular). No quarto grau, a pessoa que é alvo da vingança, bem como terceiros ficam sabendo do que aconteceu (quando você faz um post maldoso no facebook jogando merda no ventilador e dando nome aos bois). Finalmente, no quinto grau, há violência física envolvida na vingança (não importa se se trate de um soco ou de um assassinato).

O quinto grau que eu descrevi acima acredito ser essencialmente mau. Independentemente da gravidade da agressão. Eu sou contra a agressão física na vida real. (Não precisa dizer o óbvio, não é? Lógico que euzinha mesma prefiro levar um soco do que ser assassinada, mas esse é um tipo de relativização que tem a vida como termo de comparação. E não valores morais, como é o caso na discussão sobre a vingança).

A exceção deste quinto item e do caso da violência privada, acho que não é tão fácil dizer que a vingança é essencialmente boa ou ruim.

Eu sei, eu sei. Eu apenas desloquei a relação maniqueísta para outro lugar. Isso mesmo. Mas eu acho que assim está certo e do jeito que a gente aprende normalmente está errado.

Mas ainda é necessário, para encerrar o capítulo sobre a vingança, fazer mais uma distinção. As consequências da vingança para a pessoa que a sofre.

Nesse caso eu faria quatro distinções: a pessoa pode defecar e caminhar para a vingança; pode reagir e procurar se vingar da vingança que sofreu; pode sofrer com as consequências da vingança experimentando sentimentos negativos, situação que culminaria no suicídio.

Vale ressaltar que essa distinção se aplica quando se trata de vingança pública, dos graus 3, 4 ou 5.

Nenhuma dessas distinções sobre as consequências para a pessoa que sofre a vingança eu incluiria confortavelmente no meu novo maniqueísmo.

Bom, falta pensar como o perdão pode acabar sendo negativo.

Eu ligo menos para o perdão, então não pensei muito sobre isso ainda. Mas, preliminarmente, o que eu penso é o seguinte: eu só me esforço por perdoar aquelas pessoas das quais eu me sinto incapaz de me vingar.

Quem são essas pessoas? Ou são pessoas que me afetaram tão imensamente que nenhum cenário possível dentro das minhas restrições morais daria conta do sentimento negativo que eu sinto (por exemplo, as pessoas que assassinaram meu pai), ou as pessoas que eu amo e por isso eu sempre quero perdoar.

Me esforçar para perdoar qualquer outra pessoa que não as que se encontram nesses dois extremos sempre me dá mais dor de cabeça do que qualquer outra coisa.

Quando a pessoa está em alguma área entre as duas que eu citei eu me vingo logo e sigo com a minha vida.