Do Renascimento ao Século XVII d.C. Parte I

Capítulo V

 

(Como este capítulo ficou grande, vou dividi-lo em duas partes. Na verdade, ele não ficou grande. Este foi o único capítulo que saiu com o tamanho padrão de uma monografia. As monografias geralmente são compostas por três capítulos, cada um com dez páginas. Eu acabei fazendo vários microcapítulos, o quinto foi o maior e ficou com onze páginas). Por volta do século XV d.C., alguns eventos se destacam e assumem considerável relevância no que diz respeito ao presente tema. Tanto na defesa do direito à morte voluntária, pelo questionamento da moral religiosa vigente, operada pelos humanistas, quanto na oposição à mesma, operada agora tanto pelo cristianismo quanto pelas religiões filhas da Reforma. (Período difícil de estudar assim, com uma varredura teórica sobre um tema específico, pois são muitas vozes diferentes em conflito. O que fizemos foi pegar um autor de referência e correr atrás dos autores que ele menciona).

Os primeiros humanistas redescobrem toda a riqueza moral do pensamento pagão e o retomam, o que impulsiona uma busca pela grandeza que pode estar por trás do ato de matar a si mesmo. Essa retomada se torna mais marcante e relevante, sobretudo, no âmbito da arte, da literatura e das peças teatrais (Minois, 1998). As duas últimas, no que diz respeito ao questionamento da visão comum sobre o suicídio, se tornam especialmente importantes. A literatura, graças a uma série de avanços tecnológicos do período, como, por exemplo, o surgimento da imprensa, passa a ter um alcance muito maior, difundindo mais rápida e facilmente as ideias da elite intelectual. Já as peças teatrais as difundiam inclusive no meio das grandes massas.

Por outro lado, as religiões emergentes da Reforma – luteranos, calvinistas e, mais tarde, anglicanos – apesar de trazerem consigo intensos questionamentos da Igreja católica, possuem uma visão sobre o suicídio que não se mostrará tão diferente e, sem dúvida, não será menos rigorosamente depreciativa. Para aqueles o suicídio seria um ato cometido pelo próprio demônio, sendo, deste modo, o suicida um possuído que passaria a ser exorcizado caso sobrevivesse a uma tentativa de suicídio. A redução do número de casos de suicídio no seio da própria comunidade se torna extremamente importante para cada uma dessas religiões na medida em que a estatística do suicídio traduz um índice de “satanização” da mesma. (A religião parece começar a adotar aqui essa postura mais paternalista, pensar no fiel como um reflexo do que prega a religião e do que prega a própria igreja. Antes isso não importava tanto. Esse negócio do exemplo do “bom cristão” não valia para o povão”).

Dentre as mudanças operadas pelos questionamentos dos protestantes, no entanto, podem ser citadas algumas bem relevantes. É realizada a primeira tradução da Bíblia, o que faz com que sejam dispensáveis para a sua leitura a missa ou grandes encontros, nos quais a presença das autoridades eclesiásticas era necessária. (O que foi um avanço, convenhamos). A prática religiosa acaba por se tornar algo muito mais particular, passando a valorizar a livre interpretação das Escrituras pelo indivíduo. A relação do fiel pode agora se estabelecer diretamente com Deus, sem a necessidade da mediação da Igreja. Estas novas práticas religiosas acabam dando lugar a um individualismo que se apresentará de maneira crescente na Europa. E para isso irá corroborar também a mudança da organização econômica dos Estados. O mercantilismo e a ascensão da burguesia trarão consigo um individualismo creditário de novas formas de competitividade, de organização do trabalho e da produção, além de novos valores e metas econômicas e políticas. Em decorrência desses fatores, o que se observa é o aumento da lista de razões que levavam ao suicídio, na qual se incluem agora os suicídios por falência, desemprego, alcoolismo e outros fatores ligados às condições econômicas. (Eu também sempre tive um pé atrás nessa coisa de “um aumento no número de razões” para se matar. Certa vez, numa aula de história da psicologia na faculdade, estávamos discutindo produção de subjetividade. Um garoto levantou a mão e disse: “Mas então quer dizer que na Grécia não tinha tanta produção de subjetividade, pois lá não tinha moda, shopping, televisão, ou seja, existiam menos fatores que se entrecruzavam, dando origem ao que chamamos de subjetividade. Não! Os gregos tinham “tanta subjetividade” quanto nós, mas suas experiências eram bastante diversas. Eu penso mais ou menos assim, eles deveriam ter tantos motivos para tirar a própria vida quanto nós, mas eram motivos absolutamente diferentes. Se no século XVII surgia o problema do desemprego, talvez na Grécia uma pessoa se matasse pensando que Zeus estavam descontente com ela. Não se trata de um maior ou menor número de motivos, mas de experiências diversas).

Mas, ainda com relação aos posicionamentos religiosos, não se pode deixar de observar a contra-investida católica, que não será de afrouxamento da condenação, mas de promoção de certos modos de espiritualidade que pregam o completo desprezo por si mesmo, o próprio corpo e suas necessidades, e pelo mundo. Dentre essas práticas se destacam a “espiritualidade do aniquilamento” ou a “abnegação de si”. Cabe observar que, na realidade, esta emerge com Mestre Eckhart no século XIII. Segundo seus ensinamentos há um caminho a ser percorrido pelo homem que se inicia no recolhimento daquelas energias que são dispensadas as coisas, retirando delas a importância que possuíam; essa é a abnegação do mundo. A seguir, esse homem deve desprender-se de si mesmo, encontrando aí a paz e a serenidade. A abnegação, deste modo, quer chegar ao nada de modo que “entre a perfeita abnegação e o nada não pode haver coisa alguma” (Weischedel, 2006, p.116). A essência autêntica do homem se realizaria precisamente aí, no alcance desse nada que é o fundamento de sua alma, no qual se estabelece uma relação direta com Deus. Pode-se concluir daí que “toda nossa essência não reside em nada mais que um aniquilar-se” (ibidem). Essa forma de espiritualidade se apresentaria como uma segunda opção ao suicídio físico e restaria às almas melancólicas, obrigadas a recusar o mundo ainda que condenadas a suportar a existência. (Ainda hoje em dia eu reparo experiências que se assemelham a esta filosofia em certo sentido. Existem pessoas que, em momentos de melancolia perdem a fome, a vontade de realizar qualquer tipo de atividade, perdem o sono, o prazer. Parece que começam a viver em um estado de abnegação de si e do mundo). Seria uma espécie de suicídio espiritual, um aniquilamento simbólico que teria como repercussão prática um afastamento do mundo. Nas palavras de Minois:

 

Recusa do mundo, recusa da vida pessoal, recusa da consciência individual, vontade de se fundir no grande todo a que uns chamarão nada e outros Deus, deixar de ser eu mesmo, apagar-me inteiramente: eis outras tantas características comuns com o suicídio físico. (1998, p. 207)

 

De um modo geral, essas duas formas de relação com o próprio corpo e com o mundo negarão ao indivíduo o prazer mundano e o interesse por si próprio, estabelecendo uma preocupação única, que seria a negação de tudo aquilo que pode desviar a alma do caminho árduo da salvação. A grande ambiguidade dessa prescrição é o fato de que esse afastamento completo ainda mantém interdito o suicídio, a alma deve padecer de todo esse sacrifício, nunca o abandonar em prol da salvação sob a ameaça de afastar-se dela no momento em que, segundo considera, a ela se entrega. (Loucura, não é? Realmente a religião costuma ter uma postura de desprezo em relação ao corpo e a esta vida mundana. Você não pode se entregar aos prazeres, tem de viver sempre em contrição, mas se ausentar da vida você não pode de jeito nenhum. Ela, ainda assim, tem um propósito que deve ser cumprido).  Os relatos de morte por inanição dos adeptos deste tipo de vida são inúmeros, ocorrendo, principalmente, entre os eclesiásticos.

Seria importante ressaltar então a obra de John Donne, o Biathanatos escrito em torno de 1610, como uma obra filosófica importante deste período que avança, se não no sentido da afirmação do direito ao suicídio, pelo menos na imposição de inúmeras ressalvas àqueles que o condenam. A grande ousadia de sua defesa é o fato de ela se fazer inteiramente dentro da teologia cristã. Donne não recorre, como os outros filósofos, aos exemplos gregos e romanos que embasam as posições favoráveis ao mesmo, mas àqueles argumentos que a própria moral cristã disponibiliza. Seu livro é organizado em três partes, as quais correspondem a três questionamentos: seria o suicídio contrário à Lei da Natureza?; à Lei da Razão?; ou à Lei de Deus? Ele chega à conclusão de que não se dispõe de argumentos que permitam afirmar que “algo é tão mal que não possa nunca ser bom”. (Wow! Eu penso no que isso significa até hoje). Não se encontra univocidade nas exposições de exemplos históricos, leis, ou textos que permita seguir em um sentido contrário a essa afirmação.

O autor, não só aí, mas também em muitos de seus escritos literários, tematizou a morte e o suicídio, como se pode verificar no trecho a seguir de uma de suas poesias: (Fantástico esse poema. Eu conheci esse autor na nas pesquisas para a monografia e depois me apaixonei pelos poemas).

 

Morte, não te orgulhes, embora alguns te provem

Poderosa, temível, pois não és assim.

Pobre morte: não poderás matar-me a mim,

E os que presumes que derrubaste, não morrem.

Se tuas imagens, sono e repouso, nos podem

Dar prazer, quem sabe mais nos darás? Enfim,

Descansar corpos, liberar almas, é ruim?

Por isso, cedo os melhores homens te escolhem.

És escrava do fado, de reis, do suicida;

Com guerras, veneno, doença hás de conviver;

Ópios e mágicas também têm teu poder

De fazer dormir. E te inflas envaidecida?

Após curto sono, acorda eterno o que jaz,

E a morte já não é; morte, tu morrerás.

 

A esse exemplo se segue o de Jean Duvergier de Hauranne, um eclesiasta que afirma que em certos casos não é apenas lícito, como constitui uma obrigação entregar a própria vida. É o exemplo do sacrifício feito em prol da vida do rei. De qualquer modo ele coloca a seguinte questão: “dado que existem tantas exceções para o homicídio, porque não as aceitar em relação ao suicídio?” (op. cit., p. 124). (Excelente pergunta. Vemos que é esta pergunta, exatamente a mesma, que inquieta autoridades há séculos).

Em contrapartida, os teólogos e moralistas empreendem uma oposição cada vez mais rigorosa. De qualquer forma, as dificuldades que encontraram foram inúmeras, assim a ambiguidade de seus posicionamentos se torna mais demarcada. O exemplo dos casuístas ilustra muito bem esse aspecto.

A casuística era um método que consistia em comparar cada caso particular com um caso paradigmático, para que então se estabelecesse um juízo. (A gente usa muito isso no senso comum até hoje)! Ao aplicar tal método à reflexão sobre o suicídio, na tentativa de passar em revista todas aquelas situações que podem levar um indivíduo a cometê-lo, os casuístas se deparam com casos extremamente delicados, na medida em que se impõem ao questionamento não só os casos de suicídio direto, mas também aqueles nos quais o indivíduo se expõe voluntariamente a alguma situação que pode colocar em risco a sua vida. Por exemplo: deveria ser condenada a mulher que se dedica ao cuidado do marido vítima de uma doença mortal e contagiosa? Ou então: é negada, àquele que pula de um prédio em chamas, sabendo que pode não resistir à queda, a salvação? No primeiro caso é lícito o cuidado da esposa; já a situação contrária, o marido que cuida da mulher doente, constituiria um pecado (op. cit., p.152). (Sério isso?! Mas a nossa discussão atual não é sobre machismo, certo?).  No segundo caso, a atitude é ilícita, pois não é permitido cometer pecado algum para salvar a própria vida (op. cit., p.154). O embaraço dos casuístas ao responderem a esse tipo de questão gera a ambiguidade anteriormente mencionada. Mas, embora sua oposição não se destaque em termos de consistência, este episódio não deixa de colaborar marcadamente para o debate da época. (Compreensível. Os caras se perdiam debatendo um trilhão de caso contingentes. Você não tira nenhuma regra universal daí, mas eles eram como que gurus da sabedoria, pois sabiam falar de muita coisa e certamente sabiam argumentar).

Cabe observar que a estes três fatores, quais sejam, os questionamentos humanistas, as intolerâncias moralistas e religiosas e as consequências das relações econômicas, somam-se as novas e cada vez mais fortes influências dos estudos médicos, psicopatológicos, psicológicos, sociológicos, dos posicionamentos filosóficos em geral e as novas influências da medicina no direito[1]. Em torno dessas referências se desenvolvem as discussões acerca do suicídio a partir do século XVII. Observa-se também que algumas dessas influências se dão de maneira crescente enquanto outras de maneira decrescente. As explicações emergentes então se tornam cada vez mais determinantes das visões acerca do tema, ao passo que as religiosas e moralistas o são cada vez menos. (E eu vou cortar aqui o capítulo, porque agora vamos mudar um pouco o escopo da discussão).

 

DIAS, O. M. K. Perspectiva Histórica sobre a Morte de Si Mesmo no Ocidente. Monografia de fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: 2013.

 

[1]Minois faz a distinção desses campos de saber a propósito dos temas aos quais marcadamente se referem, não considerando uma possível constituição formal destes na época.

“De que modo são as bruxas transportadas de um lugar a outro “.

Por que lembrar de eventos há tanto transcorridos?
Por que mergulhar no passado uma vez e outra ainda e mais outra?

“Eis, enfim, o seu método de transporte pelo ar. De posse da pomada voadora, que, como dissemos, tem sua fórmula definida pelas instruções do diabo e é feita dos membros das crianças, sobretudo daquelas mortas antes do batismo, ungem com ela uma cadeira ou um cabo de vassoura; depois do que são imediatamente elevadas aos ares, de dia ou de noite, na visibilidade ou, se desejarem, na invisibilidade (…); noutras ocasiões, mesmo sem qualquer auxílio exterior, elas são visivelmente transportadas exclusivamente pela força dos demônios” (p. 228).
“Contamos aqui o caso de um vôo invisível, feito à luz do dia. Na cidade de Waldshut, às margens do Reno, na diocese de Costance, havia uma certa bruxa tão detestada pelos habitantes da cidade que não a convidaram para a celebração de um casamento, ao qual, no entanto, esperava-se o comparecimento de todos os moradores da região. Indignada e desejosa de vingança, chamou a sua presença um demônio. Tendo lhe explicado o motivo de seu aborrecimento, pediu-lhe que desencadeasse uma tempestade de granizo para dispersar todos os convidados da festa; o demônio concordou e, elevando-a no ar, levou-a até uma colina, nas proximidades da cidade, à vista de alguns pastores. Pôis-se então a cavar um pequeno foço que deveria encher de água para poder desencadear a tempestade (pois que é esse o método que usam para provocar chuvas de pedra). Como ali não dispusesse de água, encheu o foço com a própria urina e começou a revouvê-la com o dedo – conforme manda o ritual –, com o demônio a pastos a observá-la. Então, repentinamente, o demônio fez todo o líquido subir pelos ares, desabando uma violenta chuva de pedras apenas sobre os convidados e os dançarinos da festa. Depois de terem se dispersado e ficarem a se perguntar qual teria sido a causa do temporal, viram que chegava a bruxa na cidade, o que levantou forte suspeita sobre ela. No entanto, depois que os pastores contaram o que viram, a sua suspeita transformou-se em certeza, pelo que a mulher foi presa. E confessou que assim procedera porque não fora convidada para o casamento. E, por esse motivo, e pelas muitas outras bruxarias que já perpetrara, acabou queimada na fogueira”.
“E como a história do vôo das bruxas é fato cada vez mais comentado e público, mesmo entre as pessoas comuns, é desnecessário aqui aditar outras provas. Esperamos que esses exemplos sejam suficientes para esclarecer os que ainda negam a existência desse fenômeno, ou os que tentam sustentar que são fenômenos meramente imaginários ou fantásticos” (p. 229).
“De fato, teria pouca importância deixar esses homens incorrerem nesse erro, não fosse a sua crença tão danosa à Fé. Pois que, não contentes em sustentar o erro, ainda persistem em sustentar e publicar muitos outros que contribuem para o aumento do número de bruxas e para o detrimento da Fé. Porque afirmam que toda a bruxaria só pode ser atribuída à imaginação e à ilusão de alguns homens, como se se tratasse de algo inócuo, tão inócuo quanto o seu vôo, mera fantasia” (grifo meu, p. 229).

Sabem tudo aquilo que te falaram para que você não julgasse os fatos do passado com os olhos atuais? Devemos perdoar os homens do passado, pois eles não sabiam o que estavam fazendo? Eu já havia falado sobre essa ideia em um texto bastante antigo do blog. Repito. Não temos que perdoar os homens do passado. Temos que repudiar suas ações e nunca mais repetir seus erros. Encontrei no próprio Martelo das Feiticeiras, livro publicado em 1484, o argumento que me permite condená-los por seus atos sem desculpá-los por motivo algum. Na passagem destacada acima fica absolutamente evidente o fato de que, já naquela época, havia pessoas apontando para o absurdo que era acreditar em bruxaria. O que aconteceu foi que, infelizmente, aqueles que estavam certos perderam na disputa pelo poder e tiveram seu discurso suplantado pelo fanatismo.
Já naquela época havia trabalhos sendo publicados que falavam sobre o absurdo que era creditar em bruxaria, que afirmavam que tudo não passava de uma fantasia. Então, os elementos necessários para combater o obscurantismo da fé e acabar com toda a abominação que foi a Inquisição estavam dados.
Você me pergunta qual é o sentido de ficar revirando o passado? Porque estamos sempre a um movimento social em falso de uma nova barbárie. Além das muitas das quais ainda somos vítimas.
Por acaso vamos querer que o futuro nos perdoe por massacrar nossos jovens negros nas favelas? Por culpar as mulheres vítimas de violência pela violência que sofrem? Qual é a nossa desculpa?
O nosso erro é pensar que o passado foi completamente superado. A gente assiste séries e filmes sobre a forma como o tempo é circular e não linear (A Chegada e Dark, por exemplo), e não se dá conta de que esse fenômeno é verídico; mais uma vez, a ficção conta verdades falando mentiras.
O passado se repete, e repete, e repete. E se essas citações não te assombram como a mim, é sinal de que temos de lembrar estas histórias horrendas mais e mais.

KRAMER e SPRENGER, O Martelo das Feiticeiras. Tradução de Paulo Fróes. 13a edição. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1998.

Déjà vu.

Nós temos a certeza de que a morte é o fim da nossa vida atual.
Isso não quer dizer que a morte é necessariamente o fim de tudo.
Há aqueles que acreditam na vida eterna, os que acreditam em reencarnação etc. Mas eu ainda não conheci nenhuma religião que diz que você, depois de morrer, pode escolher retomar sua vida do ponto onde parou e seguir como se nada tivesse acontecido (ou seja, escolher ressuscitar) ou, segunda opção, escolher ficar morto mesmo.
Seria assim: você morre e imediatamente se vê diante de um ente sobrenatural que te pergunta: “e aí? Vai ser dessa vez ou não”?
Aí você pensa, pensa… Lembra daquele curso que você não terminou de fazer… Daquela pessoa que está ficando para trás… E aí? Fico ou volto?
E você resolve voltar. Neste momento a sua memória é apagada, logo antes de você ser mandado de volta apenas com o gatilho necessário para não repetir a cagada que aconteceu antes.
Mas esse gap de tempo em que você ficou morto cria uma pequena distorção na realidade, que nós conhecemos como o fenômeno do já visto ou Déjà vu.
E quando a gente morre e volta, rebubina-se a fita um pouco (para que a gente não acabe morto novamente), para o ponto em que você ainda pode mudar o curso dos eventos, não disparando a cadeia de ações e acontecimentos que levaram até a sua morte. Com essa rebubinada, você pega um milissegundinho do que você já viveu e esse fenômeno se faz perceptível para que haja a tal interferência no rumo das suas ações: nesse momento você tem um Déjà vu. Ele geralmente quebra o ritmo dos acontecimentos momentaneamente. É desse gatilho que falamos acima. É aí que você muda o seu rumo.
Eu tive um Déjà vu hoje durante uma aula. No momento, eu estava decidindo se saía mais cedo ou não. Depois do Déjà vu eu pensei nessa teoria (na verdade, eu lembrei, pois era isso que eu pensava sobre o fenômeno na adolescência). Resolvi, então, fazer o contrário do que eu estava inclinada a fazer: fiquei até o final da aula.
Se a minha teoria sobre o Déjà vu estiver correta, eu já havia tomado a decisão de sair mais cedo e uma tragédia já teria acontecido. Eu teria morrido, mas resolvido voltar.
Voltei para o ponto em que eu estava tomando a decisão que acarretaria a tragédia e tomei uma decisão diferente.
Por que, então, se é possível escolher voltar, as pessoas acabam morrendo de modo mais permanente a certa altura de suas vidas? Eu imagino que tenha um número limitado de vezes que uma pessoa pode escolher voltar. E outra possibilidade, pode ser que nesse momento de escolher voltar ou não, a pessoa fique encantada com as maravilhas do outro mundo e resolva ficar pelo lado de lá mesmo. Então, tem essas duas explicações para a saída desta vida.
Tem também o problema do que acontece com a vida das outras pessoas quando se rebubinada o tempo. Bom, eu imagino a existência temporal e espacial como uma grande colcha tecida a mão. Se dá um problema em um pedaço, você desfaz aquele pedaço que deu defeito, você não precisa refazer o serviço inteiro. Na pior das hipóteses, você desfaz a colcha até chegar no pedaço que você quer consertar e depois continua.

Conversão.

Roberto recebeu o sagrado corpo de Cristo das mãos do padre. Voltou em silencio até o banco onde estava sentado. A hóstia colada no céu da boca começava a se desmanchar, aos poucos, soltava pedacinho por pedacinho. Fazia cócegas na garganta, pensou, mas se conteve, imaginando que deveria ser pecado pensar uma coisa dessas. O resto da missa correu como sempre, demorada. Roberto foi embora depois da bênção final que ouviu já da porta da igreja, empurrando outros fiéis que disputavam o lugar mais abaixo no início da escada, mas também não tão baixo a ponto da bênção não o alcançar.

Enquanto isso, Jesus Cristo começava a penetrar lentamente em sua carne, a ser absorvido pelo seu corpo. Pele dura, pouco porosa, mas o santo homem persevera.

Jesus Cristo foi direto ao coração de Roberto.

E lá o encontrou assistindo Game of Thrones.

O coração das pessoas, sob o olhar do filho de Deus, não bate nem está cheio de sangue. Quando Jesus entra nos corações ele vê o dono da casa, que geralmente é pego de surpresa, fazendo o que mais aprecia fazer. Um pouco mais adianta de onde se encontra o anfitrião, estende-se um grande corredor, tanto maior quanto aspectos significativos possui o anfitrião em sua vida. Todas as paredes são vermelhas, essa é a única semelhança com o coração tal como nós o conhecemos.

Roberto, como era de se esperar, levou um susto quando viu o visitante e desligou imediatamente a televisão. Lembrava-se que o padre de sua igreja o havia aconselhado a parar de ver a série, por ser pecaminosa; desde então, Roberto passou a se confessar em uma igreja um pouco mais distante, mas para o padre de lá, nunca havia confessado assistir a série. Acreditava que isso minimizava o peso do pecado. Sentia culpa, mas sentia mais desejo.

Jesus vai andando, passa por Roberto, e chega a primeira porta à direita no corredor. Roberto apenas o observa. A presença mágica do filho de Deus o paralisa.

Jesus abriu todas as seis portas, uma a uma, demorou-se, olhou, olhou… em alguma ele chegou a entrar por alguns instantes. Roberto acreditava ver um certo ar de desapontamento na face do mestre. Nas duas faces. Quem me dera fosse numa só! Recriminou-se pela piada, puro efeito do nervosismo.

Roberto ouviu ao longe a voz de Jesus cumprimentado Natália. Na outra porta estava Carolina. E a voz de Jesus ressoa novamente. Olá, Carolina. Havia sido muito difícil para Roberto traçar a linha divisória entre as duas. Antes elas ficavam na mesma porta. Mas com os anos pegou prática.

Estavam acabando as portas.

Jesus não demorou muito mais para voltar ao pequeno hall onde Roberto se encontrava. Se olhássemos toda essa estrutura de cima, identificaríamos uma forma parecida com o buraco das fechaduras onde enfiamos as chaves, desenhado caricaturalmente.

Jesus voltava segurando um pequeno pé de abacate. O que é isso, Jesus? Roberto ficou curioso. Isto é o único fruto bom das suas últimas ações. Este brotinho aqui nasceu do abacate que você comprou e levou junto com algumas outras compras para a casa de sua mãe. O caroço foi plantado no quintal dela.

É Jesus, é assim mesmo. A vida está difícil. Muito trabalho, todo mundo perdendo o emprego, está tudo caro… E, com todo respeito, senhor, o senhor não tem ajudado muito, não é?! Jesus conteve o desapontamento. Do que você está falando, meu filho? Estou falando, Jesus, de todas as orações que eu tenho feito ultimamente. Roberto, eu não ouvi oração nenhuma sua! Faça agora o seu pedido que eu te atenderei. É meu filho, senhor. Que tem ele? Jesus, é claro, já sabia como aquela história acabaria. Mas se deleitava com a vivência de suas predições. O que te preocupa é a solidão que seu filho está sentindo, Roberto? Não é exatamente isso, Jesus. O senhor sabe que estou muito desapontado com ele. É bom que ele pense nas escolhas que ele está fazendo. O que eu queria era que não houvesse necessidade para nada disso, entende? Roberto, isso que você pediu não é oração que se faça! Ignorei, solenemente. Roberto… Não, Jesus, não diga mais nada. Vou resolver as coisas do meu jeito então. Ah…! Isso você não vai! Disse Jesus em toda a sua tirania de Deus do antigo testamento. Empurrou Roberto com tanta força, que ele cruzou a parede do coração, desceu pelo finalzinho do esôfago até o estômago, passou aos intestinos, uma parte sua saio nas fezes, o que ainda dava para aproveitar deu uma circulada pelo corpo e saiu depois pela urina.

Só Jesus restou no corpo do pecador.

Roberto estava terminando de almoçar a essa altura. Dalí em diante ele mudou. Radicalmente. Obra do demônio aos olhas de sua família e sua comunidade.

Roberto virou militante comunista, feminista, LGBT e do movimento negro. E passou a defender o uso da violência contra a repressão das forças do Estado.