Que invisibilidade é essa? 

No banheiro do shopping vazio, de noite, perto da hora de fechar, uma mulher cumprimenta a faxineira:
– Opa! Nem tinha visto você aí. Estava escondidinha.
– A gente fica invisível mesmo.
A mulher que cumprimentou já entrou no banheiro, mas a moça lá fora continua falando:
– Eu até gosto de ser invisível.

Eu também gosto de ser invisível para as outras pessoas em diversas ocasiões. Mas por algum motivo aquela cena me partiu o coração.
Não sei se você pode chamar isso de preconceito da minha parte. Porque eu ouvi como algo triste a moça negra da faxina do shopping da Barra dizer que preferia ser invisível. E, para completar, eu fiquei sem saber o que fazer. Se saía do box onde eu estava e ia lá puxar assunto com ela, arrancá-la de seu esconderijo escancarado, ou se ficava calada e ia embora. Qual era o verdadeiro desejo daquela mulher? Ser notada e tratada direito por aquele povo? Ou simplesmente trabalhar em paz sem ter que ficar dando um bom dia, boa tarde, boa noite sorridente para todo mundo o tempo todo?

Eu não cheguei a decidir. Quando eu saí, ela já não estava mais lá. Me pergunto se ela finalmente tinha ido ser visível em sua vizinhança ou se tinha verdadeiramente se mesclado com as paredes.

“Negro não tem cara de quem gosta de ler”.

Com muito orgulho, mais um post fenomenal de convidados do Encanto (minibio do autor no final).

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Esses dias eu levei meu irmão ao shopping de minha cidade para dar um rolê. Ele tá de férias e eu também, aí quis aproveitar um dia com ele. 

Até aí tudo bem, a gente foi ao shopping com alguns planos do que fazer, pensamos em ir ao cinema e depois comer alguma coisa por lá. 

Quando chegamos no shopping, demos algumas voltas, fomos ver os filmes que estavam em cartaz, mas ele não quis assistir nenhum. Eu achei estranho, porque ele tinha dito que queria assistir “Os Incríveis”, questionei ele sobre o motivo de não querer assistir e ele me disse que não queria assistir filme nenhum, nisso não restou muito o que fazer lá, daí fomos naquele lugar que tem uma par de fliperamas, ele também não quis jogar nada. Aí perguntei o que ele queria fazer, porque eu já estava ficando entediado e ele também. Aí falei para ele que queria ver uns livros e se ele quisesse poderia comprar algum para ele. Quando chegamos na livraria, eu olhei alguns livros, mas nenhum me interessou, foi aí que notei o olhar estranho de algumas pessoas para gente(estranho, mas para mim já é comum ver as pessoas me olhando torto dentro de uma loja), mas nem dei moral, porque não queria que nada estragasse o dia para o meu irmão e para mim. Foi aí que meu irmão me chamou e falou que queria um livro de uma coleção chamada “A Hora do Espanto”, é tipo uma Coleção Vagalume. Eu falei pra ele que tudo bem e perguntei se ele só ia querer aquele, ele me disse que iria procurar outro. Nisso, eu vejo um homem comentar algo com a esposa dele, eu acho que era a esposa, daí os dois ficaram seguindo com o olhar a gente enquanto meu irmão escolhia outro livro. Aí quando eu achei um livro que me interessou, peguei o livro e dei umas folheadas, o cara que tava olhando a gente começou a andar atrás do meu irmão, mas meio que disfarçando. Quando meu irmão foi pegar outro livro, ele colocou o livro que ele tinha escolhido antes em cima de outros para poder alcançar o livro que ele queria, aí o cara foi lá e pegou o livro que ele tinha deixado em cima dos outros e guardou em outra pilha de livros, notei isso e peguei o livro de novo. Meu irmão pegou o segundo livro e me perguntou se poderia pegar um terceiro, eu falei que sim, pq além de incentivar meu irmão a ler, os livros que ele queria estavam na faixa de R$5,00. Quando ele foi pegar o terceiro livro, ele deixou o livro que tinha escolhido em cima de outros livros de novo, aí mais uma vez o cara foi lá e guardou o livro que ele tinha escolhido. Eu olhei bem para a loja para ver se tinha algum vendedor além da moça que tinha me atendido quando entrei na loja e percebi que ela era a única funcionária trabalhando no momento, cheguei no cara e perguntei: Moço, por favor, você trabalha aqui?

Ele me disse que não, aí apontou para a moça que eu sabia que era a vendedora e disse que a moça era a vendedora. Então eu perguntei para ele: Então por que você tá guardando os livros que meu irmão tá escolhendo?

Ele me responde: Eu pensei que ele só estivesse tirando do lugar para ver, porque ele não tem muita cara de quem gosta de ler. 

Eu: Ah, mas não! Ele tá escolhendo os livros que nós vamos comprar! E me fala uma coisa, qual é a cara de quem gosta de ler? Porque assim, eu curso letras e não aprendi isso na faculdade…

Nisso, o cara ficou meio em choque e meu irmão falou pra mim que só queria os dois livros que ele tinha escolhido mesmo. Dei 10 conto e ele foi no caixa pagar.

Aí virei para o cara e falei: Viu, manda um email para reitoria da Unesp e pede para eles colocarem essa matéria de leitura de fisionomia na grade curricular do curso de letras, porque aí a gente aprende a ver quem tem cara de que gosta de ler ou não.


Saí da loja com o meu irmão e fomos comer. Perguntei para o meu irmão o motivo dele não querer jogar nos fliperamas, porque ele vive em função de jogos de computador e videogame. Ele me respondeu: Pra quê eu vou gastar dinheiro jogando, sendo que eu posso jogar em casa sem gastar nada? Preferi gastar dinheiro com os livros, porque ao menos eu posso ler e guardar eles comigo, igual você faz.


Gente, eu tava tão puto com o cara da loja, mas quando eu vi que ao menos para o meu irmão, eu sou um bom exemplo, toda a raiva que eu sentia se misturou com orgulho e alegria. Voltei para casa com um sentimento muito louco e meu irmão com dois livros novos.


Desculpa o textão, mas eu queria muito compartilhar isso com os outros, porque a gente vive em uma sociedade onde o preto não tem cara de ler, onde a criança preta não tem que ler, onde a criança pobre tem que crescer sem aprendizado para poder trabalhar como mão de obra do rico. Eu juro que isso reforçou todos os motivos para eu querer ser professor. E quem não gostou, só lamento!!!


Rafael é graduando em Letras pela Universidade Estadual Paulista – Unesp campus de Assis.

Poucas e boas. 

Hoje uma mulher negra maravilhosa estava gritando na porta do supermercado Zona Sul em Ipanema:
– Você não me peita não, hein! Eu fui te perguntar uma coisa e você cagou para mim!!! Agora você vai me ouvir!!! Você é gente que nem eu!! Quem você está pensando que é?!?! Meu amooor, eu te perguntei uma coisa e você ca-gou. Quero ver você tratar os outros assim!! Quem que você trata assim? Você cala a boca e me escuta que eu vou te ensinar a ter educação.

Os brancos da zona sul passavam em volta horrorizados. Eu passei com uma amiga e comentei:
– É isso que está faltando na minha vida.
Quanta gente por aí que eu queria meter o dedo na cara e gritar: “Cala a boca agora porque quem vai falar sou eu! Eu confiei em você, me entreguei nessa relação e você cagou para mim! Ca-gou. Eu fui muito otária mesmo para você me tratar desse jeito, mas não vai ser mais assim não, amor. Você vai aprender a me respeitar. Tu tá pensando o quê?? Tá pensando o quê?!?! Eu sou gente também. E não me peita não, hein; não me peita não, que agora você vai me ouvir. Eu te tratando direito e você tirando uma comigo?! Você abusando e abusando. Entorta tanto que uma hora quebra, meu bem. Minha paciência a-ca-bou. Eu cansei de ser usada e você cagando para mim. Só quer saber do venha a nós! E nada do vosso reino?! Eu vou te ensinar agora o que é respeitar uma pessoa”.
Um dia eu vou chegar lá.
Com relação a mulher, eu parei para perguntar se estava tudo bem. Ela disse que a tinham ignorado e tratado mal quando ela quis ir ao banheiro lá. Mas ela havia feito compras como todos outros clientes. Por ser negra e pobre, contudo, foi tratada com hostilidade pelos funcionários que, ela afirmava, eram tão pretos e pobres quanto ela e tinham que aprender a respeitar as pessoas na mesma condição.

Conversão.

Roberto recebeu o sagrado corpo de Cristo das mãos do padre. Voltou em silencio até o banco onde estava sentado. A hóstia colada no céu da boca começava a se desmanchar, aos poucos, soltava pedacinho por pedacinho. Fazia cócegas na garganta, pensou, mas se conteve, imaginando que deveria ser pecado pensar uma coisa dessas. O resto da missa correu como sempre, demorada. Roberto foi embora depois da bênção final que ouviu já da porta da igreja, empurrando outros fiéis que disputavam o lugar mais abaixo no início da escada, mas também não tão baixo a ponto da bênção não o alcançar.

Enquanto isso, Jesus Cristo começava a penetrar lentamente em sua carne, a ser absorvido pelo seu corpo. Pele dura, pouco porosa, mas o santo homem persevera.

Jesus Cristo foi direto ao coração de Roberto.

E lá o encontrou assistindo Game of Thrones.

O coração das pessoas, sob o olhar do filho de Deus, não bate nem está cheio de sangue. Quando Jesus entra nos corações ele vê o dono da casa, que geralmente é pego de surpresa, fazendo o que mais aprecia fazer. Um pouco mais adianta de onde se encontra o anfitrião, estende-se um grande corredor, tanto maior quanto aspectos significativos possui o anfitrião em sua vida. Todas as paredes são vermelhas, essa é a única semelhança com o coração tal como nós o conhecemos.

Roberto, como era de se esperar, levou um susto quando viu o visitante e desligou imediatamente a televisão. Lembrava-se que o padre de sua igreja o havia aconselhado a parar de ver a série, por ser pecaminosa; desde então, Roberto passou a se confessar em uma igreja um pouco mais distante, mas para o padre de lá, nunca havia confessado assistir a série. Acreditava que isso minimizava o peso do pecado. Sentia culpa, mas sentia mais desejo.

Jesus vai andando, passa por Roberto, e chega a primeira porta à direita no corredor. Roberto apenas o observa. A presença mágica do filho de Deus o paralisa.

Jesus abriu todas as seis portas, uma a uma, demorou-se, olhou, olhou… em alguma ele chegou a entrar por alguns instantes. Roberto acreditava ver um certo ar de desapontamento na face do mestre. Nas duas faces. Quem me dera fosse numa só! Recriminou-se pela piada, puro efeito do nervosismo.

Roberto ouviu ao longe a voz de Jesus cumprimentado Natália. Na outra porta estava Carolina. E a voz de Jesus ressoa novamente. Olá, Carolina. Havia sido muito difícil para Roberto traçar a linha divisória entre as duas. Antes elas ficavam na mesma porta. Mas com os anos pegou prática.

Estavam acabando as portas.

Jesus não demorou muito mais para voltar ao pequeno hall onde Roberto se encontrava. Se olhássemos toda essa estrutura de cima, identificaríamos uma forma parecida com o buraco das fechaduras onde enfiamos as chaves, desenhado caricaturalmente.

Jesus voltava segurando um pequeno pé de abacate. O que é isso, Jesus? Roberto ficou curioso. Isto é o único fruto bom das suas últimas ações. Este brotinho aqui nasceu do abacate que você comprou e levou junto com algumas outras compras para a casa de sua mãe. O caroço foi plantado no quintal dela.

É Jesus, é assim mesmo. A vida está difícil. Muito trabalho, todo mundo perdendo o emprego, está tudo caro… E, com todo respeito, senhor, o senhor não tem ajudado muito, não é?! Jesus conteve o desapontamento. Do que você está falando, meu filho? Estou falando, Jesus, de todas as orações que eu tenho feito ultimamente. Roberto, eu não ouvi oração nenhuma sua! Faça agora o seu pedido que eu te atenderei. É meu filho, senhor. Que tem ele? Jesus, é claro, já sabia como aquela história acabaria. Mas se deleitava com a vivência de suas predições. O que te preocupa é a solidão que seu filho está sentindo, Roberto? Não é exatamente isso, Jesus. O senhor sabe que estou muito desapontado com ele. É bom que ele pense nas escolhas que ele está fazendo. O que eu queria era que não houvesse necessidade para nada disso, entende? Roberto, isso que você pediu não é oração que se faça! Ignorei, solenemente. Roberto… Não, Jesus, não diga mais nada. Vou resolver as coisas do meu jeito então. Ah…! Isso você não vai! Disse Jesus em toda a sua tirania de Deus do antigo testamento. Empurrou Roberto com tanta força, que ele cruzou a parede do coração, desceu pelo finalzinho do esôfago até o estômago, passou aos intestinos, uma parte sua saio nas fezes, o que ainda dava para aproveitar deu uma circulada pelo corpo e saiu depois pela urina.

Só Jesus restou no corpo do pecador.

Roberto estava terminando de almoçar a essa altura. Dalí em diante ele mudou. Radicalmente. Obra do demônio aos olhas de sua família e sua comunidade.

Roberto virou militante comunista, feminista, LGBT e do movimento negro. E passou a defender o uso da violência contra a repressão das forças do Estado.