Eu não preciso e eu não quero.

Em homenagem a uma propaganda que assisti hoje na televisão, que resolveu se pronunciar a respeito do desejo que a população feminina tem de usar maquiagem, resolvi publicar em três partes um trabalho que escrevi para uma disciplina do doutorado no final do ano passado. Simplesmente porque essa farsa de “reconexão” com a própria beleza através do entupimento da pele com maquiagem é apenas uma maneira de refinar o velho mandamento da beleza e submissão femininas. Se vocês não repararam, continuam sem ter voz nem espaço na mídia as mulheres que realmente não usam maquiagem. 

O título do trabalho é:

A abordagem das capacidades e as práticas de beleza feminina. 

 

O que é a abordagem das capacidades de Sen?

A abordagem das capacidades de Sen (2009) é um quadro teórico – framework – que nos proporciona um outro olhar sobre a forma de avaliar a justiça e a injustiça social, bem como as vantagens e desvantagens pessoais dos indivíduos. A abordagem das capacidades foca nas capacidades que as pessoas possuem de realizar a vida que elas têm razões para valorizar.

Qualquer teoria da justiça vai, necessariamente, ter um foco informacional, ou seja, certas informações-chave ou aspectos da sociedade ou das vidas dos indivíduos em questão que servirão de base para que possamos julgar se tal sociedade é justa ou injusta e se os indivíduos estão em vantagem ou desvantagem uns em relação aos outros. Nesse sentido, as diferentes teorias a respeito da justiça social nos apresentam diferentes aspectos que deverão ser levados em consideração neste julgamento.

Poderíamos citar como exemplo as abordagens utilitaristas e as abordagens baseadas em recursos. O utilitarismo se concentra na quantidade de felicidade ou prazer alcançado por uma pessoa para avaliar suas vantagens ou desvantagens em relação às outras pessoas da comunidade. Está em posição de vantagem aquela pessoa que obtém mais prazer quando comparada com as demais; aquelas pessoas que obtêm menos prazer, estão em posição de desvantagem. As abordagens baseadas em recursos, por outro lado, vão se concentrar nos recursos que as pessoas possuem. Recursos frequentemente levados em consideração são renda e riqueza. Quanto mais rico é um país, maiores as suas vantagens em relação aos outros países. É importante deixar claro que estas duas abordagens podem ser utilizadas para avaliar tanto a condição dos indivíduos, como também de comunidades e países.

Na abordagem das capacidades, as vantagens ou desvantagens pessoais são julgadas a partir da capacidade das pessoas de viver a vida que ela tem razões para valorizar. As vantagens de uma pessoa na abordagem das capacidades são maiores do que as de outra se a primeira possui mais oportunidades reais de alcançar as coisas que ela tem razões para valorizar. As capacidades são as possibilidades reais que uma pessoa possui de ser livre para ser ou para fazer aquilo que ela tem razões para desejar ser ou fazer. Este aspecto é relevante para a discussão que pretendemos desenvolver no presente trabalho.

Em inglês, Sen (2009) se refere aos beings and doings que uma pessoa possui oportunidades reais de alcançar. Os beings and doings são chamados por Sen (2009) de funcionamentos.

 

The difference between a functioning and a capability is like the one between an achievement and the freedom to achieve something, and between an outcome and an opportunity. All capabilities together correspond to the overall freedom to lead the life that a person has reason to value. (ROBEYNS, 2002, p. 3).

 

Ao falarmos em funcionamentos nos referimos aos resultados que uma pessoa é capaz de alcançar por meio de suas capacidades, portanto, enquanto as abordagens utilitaristas e as abordagens baseadas em recursos focam nos meios, a abordagem das capacidades foca nos fins. O foco nos fins é importante, pois os meios de uma boa vida não são necessariamente, eles mesmos, os fatores que compõem uma boa vida. Sen (2009) demonstra esse fato importante quando nos chama atenção, por exemplo, para o caso hipotético de uma pessoa que possui muito dinheiro, mas que também possui uma grave deficiência física. Essa pessoa certamente terá dificuldade em transformar os recursos que possui na vida que ela tem razões para valorizar. A sua deficiência física pode torná-la incapaz de experimentar uma série de experiências que ela valoriza, como, por exemplo, dançar ou jogar bola. Por mais rica que essa pessoa seja, ela não vai conseguir transformar seus recursos financeiros nos funcionamentos que ela deseja alcançar (ou, pelo menos, encontrará muitos obstáculos para tanto).

 

Sen argues, we should focus on the real freedoms that people have to lead a valuable life, i.e. on their capabilities to undertake activities, such as reading, working or being politically active, or to enjoy positive states of being, such as being healthy or literate. This line of Sen’s work, known as the capability approach, postulates that when making normative evaluations, the focus should be on what people are able to be and to do, and not on what they can consume or their income. The later are only the means of well-being, whereas evaluations and judgments should focus on those things that mater intrinsically, i.e. a person’s capabilities (ROBEYNS, 2002, p. 2).

 

Sen (2009) chama de “variações nas oportunidades de conversão” (p. 261), os aspectos que podem influenciar a capacidade de uma pessoa de transformar seus recursos em uma boa vida. Esses fatores podem ser pessoais (deficiências físicas ou mentais etc.), sociais (tradição cultural, normas sociais, regras legais, infraestrutura social etc.) ou ambientais (clima, disponibilidade de recursos naturais etc.).

Conforme afirmamos no início deste tópico, a abordagem das capacidades é, na verdade, uma ferramenta de avaliação. Contudo, diferentemente das abordagens utilitaristas e das abordagens baseadas em recursos, Sen (2009) não nos fornece nenhum tipo de informação específica que devemos quantificar e medir na tentativa de determinar se uma sociedade é justa ou não. Ou seja, a abordagem das capacidades não propõe nenhum conjunto de capacidades determinadas que devem ser analisadas ou mensuradas que serviriam de base para tal julgamento. O que ele propõe é um método que nos permite realizar comparações entre as diferentes capacidades e funcionamentos. Não poderia resultar daí uma forma de medida homogênea justamente pelo fato de que funcionamentos e capacidades englobam aspectos bastante variados, que podem ser comparados, mas não redutíveis uns aos outros.

Sen (2009) admite que isso pode causar um pouco de receio naqueles que estão acostumados a medir coisas brutas em números bem específicos – com a renda de uma pessoa ou o PIB de um país. De fato, Sen (2009) afirma que as capacidades não são mensuráveis da mesma maneira o que não quer dizer, contudo, que elas são mais fáceis ou mais difíceis de serem medidas.

Sen (2009) nos dá um exemplo: imagine uma pessoa que deve escolher entre realizar um determinado procedimento cirúrgico ou uma viagem a prazer. Dependendo da condição de saúde desta pessoa, ela não terá dificuldades para decidir[1].

Dizer que a abordagem das capacidades gera uma comparação que não é mensurável, não significa dizer que a decisão se torna mais difícil, quer dizer apenas que não se trata mais de uma decisão trivial como a de avaliar qual é o maior número em uma escala. Portanto, fica claro que a abordagem das capacidades trata de julgamentos comparativos que não são, de modo algum, triviais, mas não por isso são particularmente difíceis de serem realizados.

 

[1] Conferir página 241.

 

Referências bibliográficas

DWORKIN, Andrea. Woman Hating. Nova Iorque: Plume, 1974.

 

JEFFREYS, Sheila. Beauty and Misogyny. Harmful cultural practices in the West. Londres e Nova Iorque: Editora Routledge, 2005.

 

OKIN, Susan, M. Gênero, o Público e o Privado. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 16(2): 440, maio-agosto (2008).

 

ROBEYNS, Ingrid. Sen’s Capability Approach and Gender Inequality. (2002) Disponível em: <file:///C:/Users/melen/Desktop/trabalho%20de%20conclusão%20da%20MARINA%20segundo%20semestre/desigualdade%20de%20genero.pdf>. Acessado em: 31/12/2017.

 

SEM, Amartya. The Idea of Justice. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.

O que as feministas querem de você.

Meu sapato favorito exalava um cheiro insuportável de chulé o dia inteiro.
E eu me perguntava, sempre que alguém se aproximava, se outras pessoas conseguiam sentir o cheiro tão terrivelmente fétido quanto eu.
O cheiro não ficava contido no sapato. Subia até minhas narinas.
Aquele sapato era extremamente confortável. Eu não o havia escolhido por nenhuma qualidade estética. Tratava-se de um santo sapato, contudo. O mais confortável que eu já havia calçado em toda a minha vida.
E eu fui obrigada a abandonar o sapato. Voltar aos pares bonitos e perfumados que farão meu pé descamar até a carne viva eternamente, removendo esparadrapo, band-aid e o que mais você quiser colocar nos meus pés para protegê-los. Camada por camada eu vou sentindo dor.
Com isso meus valores estavam corretos novamente. Realinhados.
Fui aplaudida pelo abandono do confortável.
Claro que as pessoas não queriam ativamente que eu sofresse.
Mas sair por aí com sapato fedido é foda, não é?
Claro que ninguém quer ativamente que eu tenha câncer, mas abandonar desodorante é inaceitável.
Ninguém quer que eu sinta dor, mas depilação é uma questão de higiene.
Não querem que a minha pele fique sem respirar, mas uma maquiagenzinha dá uma vida para a cara morta e desinteressante natural que a gente tem, certo?
A pergunta não é: por que o feminismo não quer que eu use maquiagem, me depile e use desodorante.
A questão é que deve-se ter em mente duas coisas:
1- De onde vem o meu desejo de tratar o meu corpo desta forma? (Se pergunte, por exemplo, de onde vem o seu desejo de beber refrigerante? Ou o seu gosto por filmes de Hollywood?). Nossos desejos e a maneira de lidar com o nosso próprio corpo são historicamente construídos e possuem muitos significados que não podem ser ignorados. O que nos leva ao ponto número dois;
2- O que acontece com as mulheres que escolhem não se submeter a esses padrões? É tranquilo para elas?

A resposta é não.

Não é tranquilo para as mulheres fazerem escolhas que desviem daquilo que lhes é imposto.

Esse é o ponto da luta. Defender o seu direito de tratar o seu corpo do jeito que você quiser sem que você seja punida por isso.

Vamos imaginar que Maria decidiu ficar em casa no sábado à noite no lugar de ir para a balada. Este é o cenário A. Neste cenário, Maria exerceu a sua liberdade e decidiu o que queria fazer, além de ter tido condições de efetivamente fazer o que havia decidido. Também estava preservado o seu direito de mudar de ideia. Caso ela desejasse sair, ela seria livre para isso.

Agora vamos pensar no cenário B. Maria havia acabado de tomar a mesma decisão de não sair no sábado à noite, quando alguns bandidos invadiram sua casa para se esconder da polícia. Eles disseram para Maria que ela estava proibida de sair de casa enquanto eles estivessem lá sob a pena de sofrer pesadas punições.

No cenário B, Maria acaba fazendo o que ela havia resolvido fazer de qualquer maneira, mas podemos dizer que ela foi realmente livre nesta situação?

A resposta é não.

No cenário B, a despeito do resultado final da ação ter sido o mesmo, Maria não era verdadeiramente livre. Ela não poderia ter mudado de ideia. Ela não poderia ter escolhido fazer outra coisa. E ainda, uma severa restrição havia sido adicionada à sua decisão inicial de não sair de casa, de modo que não há mais como afirmar se Maria não sai de casa porque ela manteve a sua decisão inicial de não sair e ela não muda de ideia até os bandidos irem embora ou se ela apenas estava evitando ser severamente punida pela desobediência às condições que lhe foram impostas.

No que diz respeito aos cuidados com o corpo de uma mulher a situação é semelhante a do cenário B. Substitua Maria por uma mulher X e os bandidos pelo machismo que impõe padrões ao corpo dessa mulher.

Aí eu já sinto o seu desejo de perquirição: você está dizendo então que as mulheres não sabem o que querem com o próprio corpo? À mulher não cabe dizer o que ela quer do próprio corpo? É você quem sabe e quem tem que dizer?

Não.

A palavra final é sempre da mulher.

Lembra que eu disse que o importante é que cada uma possa fazer o que deseja com o seu corpo e com a sua vida sem que haja algum tipo de punição desta atitude?

Pois bem. Dito isso, afirmo que, uma vez que você tenha consciência de que há uma força estrutural que demanda certas coisas do corpo feminino, a última palavra a respeito do seu corpo e dos seus desejos é sua. Sem dúvida alguma. Mas enquanto uma reflexão deste tipo não é feita, você pode estar à mercê de certas forças opressoras da sociedade sim. E pode acabar reproduzindo-as às custas dos desejos e dos cuidados com o corpo próprio de outras mulheres.

Esse raciocínio não é novo. Começamos a ser alertados para os efeitos perniciosos das ideias preconceituosas e opressoras que absorvemos passivamente e sem questionamento ou plena consciência há muitos anos e por muitos movimentos de minorias diferentes.

Essas forças funcionam em larga escala sob a superfície dos desejos e dos atos. Temos que retirar uma camada, olhar por debaixo dos nossos comportamentos e pensamentos para perceber sua influência.

É o que fica claro no cenário B. Essa força do machismo só fica evidente quando há desvio e sofrimento. Se você olha apenas para o fato de que Maria ficou em casa no sábado à noite, você não é capaz de ver o bandido atrás da porta apontando o revólver para ela.

É apenas em um terceiro cenário hipotético C, no qual Maria poderia vir a resolver desobedecer ao bandido e sair de casa a despeito de suas ordens, que nós percebemos que Maria não era realmente livre para fazer o que desejasse seja lá o que for que ela escolhesse.

No cenário C, no qual Maria resolve fugir, desrespeitando o comando que lhe foi dado, ela é baleada. É apenas nesse momento que vemos o perigo de desviar da ordem dominante.

Mas liberdade não é meramente ter a sorte de querer o mesmo que o seu agressor te obriga a querer não é mesmo?

Isso é a mesma coisa que ser escravo do “bom senhor”. Não importa se o seu senhor é “bom”, a sua liberdade jamais será verdadeira enquanto você estiver sob o domínio de um “mestre”, pois a qualquer momento, essa liberdade pode acabar.

Me acompanhe ainda no cenário D, no qual Maira está em casa obedecendo ao comando dos seus sequestradores, mas estes, em algum momento, dominados pelo medo, imaginam ter visto em uma dobra do vestido de Maria um aparelho celular e supõem que ela tentou ligar para 190. Tomados pela raiva do que imaginam ter acontecido, eles acabam atirando em Maria e fugindo.

No cenário D, ainda que Maria não estivesse em conflito com a obrigação específica de ter de ficar em casa no sábado à noite e a despeito do fato de ter obedecido ao comando dos sequestradores, vemos que a suposta liberdade da vítima era falsa, pois ela acabou sendo baleada de qualquer modo.

Assim é também quando nos adequamos às demandas do machismo. Nem mesmo quando nos adequamos às tais normas estamos perfeitamente seguras.

Usando maquiagem ou não, depilação ou não, a liberdade da qual desfrutamos não é inteiramente real.

Não é verdade, por exemplo, que são estupradas ou sexualmente abusadas apenas as mulheres que desviam dos padrões machistas de vestimenta ou de comportamento.

Tendo tudo isso em vista, lembre-se sempre: a feminista quer o seu bem, seja você homem ou mulher, ela quer que você seja feliz e livre; o que não pode é você só querer o bem da mulher se ela for do jeitinho que você aprova.