Por que não queremos dar dinheiro aos pobres?

“Era preciso ser caridoso; diziam mesmo que sua casa era a casa de Nosso Senhor. Deleitava-se em dizer que praticavam a caridade com inteligência; na verdade, viviam possuídos do pavor de serem enganados e de encorajarem os vícios. Por isso nunca davam dinheiro, nunca! nem dez soldos, nem mesmo dois; então não era sabido que assim que um pobre se via com dois soldos ia logo bebê-los? Suas esmolas, portanto, eram quase sempre em gêneros, principalmente em roupas quentes, distribuídas no inverno às crianças indigentes” (ZOLA, 1979, p. 98 e 99).

 

Há anos eu quero escrever o texto de hoje. E foi esta passagem do livro Germinal, que eu li recentemente, que fez com que a vez dele finalmente chegasse.

Eu já havia me debatido com esta questão muitas vezes antes na vida, mas nunca encontrei muito coro nas vozes das outras pessoas. “Quem sabe é só um problema meu”? Mas, ao esbarrar com esta passagem, percebi que meu incômodo fazia sentido.

A primeira vez que atentei para o fato foi no primeiro período, na primeiríssima semana da faculdade. Estávamos todos na rua pedindo dinheiro para a chopada como parte do nosso trote. Até que em certo momento, eu fui para o ponto de ônibus. Eu sairia de botafogo e iria para o centro da cidade e pediria mais dinheiro por lá. Quando cheguei ao ponto, não perdi a oportunidade de pedir dinheiro às pessoas que estavam ali. Não me lembro se todas deram dinheiros ou quantas pessoas tinham no ponto nesse momento. Só me lembro que eu recebi dinheiro de pessoas que estavam naquele ponto e, minutos depois, veio um menino pobre, pedindo dinheiro àquelas mesmas pessoas e eu não vi ninguém dar dinheiro para ele.

Aí comecei a me tocar de que as pessoas geralmente não gostam de dar dinheiro para meninos e meninas de rua, mas que, aparentemente, não se importam em dar dois, cinco ou dez reais para calouros universitários.

As pessoas costumam dizer que dar dinheiro para pessoas pobres que pedem na rua significa encorajar o vício ou a criminalidade. Eu fico me perguntando o que essas pessoas acham que um bando de adolescentes de classe média alta vai fazer com o dinheiro que arrecada…? Vocês têm alguma ideia? Vão beber esse dinheiro todo! Fumar, usar drogas etc.

O caso é que a gente não gosta que a pobreza se aproxime da gente enquanto estamos na rua, invada nosso ambiente, polua nosso ar com seu cheiro. O fato é que nos indignamos com o fato de haverem pessoas pobres “que não fazem nada para acabar com a própria pobreza”. Achamos que as pessoas que nos pedem dinheiro na rua estão se aproveitando de nós! Da nossa boa vontade e do nosso árduo trabalho. Para sermos espertos e nos garantirmos de que não seremos enganados, danos roupas ou comida ou qualquer outro bem que NÓS julgamos que aquele pobre precisa ou que julgamos que ele deveria querer. Aquele pobre, de fato, deve aceitar e se resignar ou que o nosso julgamento superior afirma ser a necessidade DELE e o que trará efetivamente maior benefício para ele e para a sociedade. E nós não conseguimos enxergar como isso tudo é absolutamente arrogante e prepotente. Relutamos em admitir que não sabemos o que é melhor para o pobre. Não sabemos lidar com a pobreza.

Pensando numa alegoria, as coisas seriam mais ou menos assim segundo a mentalidade de quem tem poder aquisitivo:

 

Uma pessoa de bem se vê, da noite para o dia, privada de todos os seus bens, morador de rua, desempregado e sem família. Essa pessoa de bem, usando seu julgamento superior e seu acurado senso de dever e de justiça, faria escolhas inteligentes, se esforçaria muito e em dois tempos, conseguiria reorganizar sua vida.

 

É isso que imaginamos: se aquele pobre tomasse jeito e no lugar de ficar largado na rua pedindo dinheiro fosse para um abrigo, procurasse estudar e trabalhar, ele teria uma vida boa e descente.

Eu tenho uma novidade para você: as chances de uma coisa dessa acontecer numa sociedade como a nossa são pequenas. Bastante pequenas.

E o nosso cidadão de bem fosse parar no meio da rua, ele iria possivelmente sofrer algum tipo de violência, sofreria com o preconceito e passaria fome, contrairia doenças e, possivelmente, morreria em dois ou três anos.

Ainda tem o fato de nós inocentemente acreditarmos que é a bebedeira ou o uso de drogas do morador de rua a principal ou uma das principais causas da violência da cidade.

O próprio fato da pessoa estar ali te PEDINDO dinheiro já mostra que ela está com um pé atrás em relação a cometer um crime. Ela poderia, de fato, estar matando ou roubando e ela escolheu não estar.

Nos últimos anos começamos a nos apavorar com o fenômeno das cracolândias, afinal, não é mesmo? A cracolândia é um fenômeno diverso daquele dos moradores de rua. A cracolândia existe porque as pessoas são empurradas para o entorpecimento frente à realidade. Empurradas pela negligência do Estado que não ampara e não cuida dos grupos mais oprimidos, da população pobre que acaba sendo a consumidora necessária do produto do tráfico de drogas, que o governo não combate até as últimas consequências, pois o funcionamento do estado é atrelado ao crime e a corrupção.

Não somos eu ou você individualmente que vamos fazer a diferença positiva ou negativamente nessa questão.

Foi essa reflexão de quase dez anos atrás que Émile Zola descreveu na passagem citada de seu livro Germinal. Parece que esta preocupação de ser enganado e prejudicado pela pobreza ganha força com o surgimento da burguesia. As classes parecem mesmo estar em guerra uma com a outra e não se dá armas ou vantagens ao inimigo.

 

Zola, Émile. GERMINAL. Tradução de Francisco Bittencourt. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

A filha do mineiro e a filha do burguês no Germinal de Émile Zola.

Mais ou menos às quatro da madrugada, durante seis dias na semana, acordavam os mineiros e suas filhas, também mineiras, para um dia extenuante de trabalho, em semi-jejum:

“(…) Catherine fez um esforço desesperado. Espreguiçava-se, crispava as mãos nos cabelos ruivos que se emaranhavam na testa e na nuca. Franzina para seus quinze anos, não mostrava dos membros senão uns pés azulados, como tatuados com carvão, que saiam para fora da bainha da camisola estreita, e os braços delicados, alvos como leite, contrastando com a cor macilenta do rosto, já estragado pelas contínuas lavagens com sabão preto. Um único bocejo abriu-lhe a boca um pouco grande, com dentes magníficos incrustados na palidez clorótica das gengivas, enquanto seus olhos cinzentos choravam de tanto combater o sono. Era uma expressão dolorosa e abatida que parecia encher de cansaço toda a sua nudez” (p. 21).

 

Seis horas mais tarde, acordavam as poucas filhas dos burgueses e os burgueses, para uma mesa posta de pães e bolos e um dia de ócio produtivo.

“(…) forrado de seda azul, com mobiliário laqueado de branco e filetes azuis, um capricho de criança mimada satisfeito pelos pais. No alvor informe do leito, à meia luz filtrada pela abertura de um cortinado, a mocinha dormia, cabeça apoiada no braço nu. Não era bonita, mas muito sadia, muito vigorosa, madura mesmo nos seus dezoito anos, com uma carnação soberba, uma frescura de leite, cabelos castanhos, rosto redondo, narizinho voluntarioso afundado entre as faces. As cobertas tinham escorregado e podia-se vê-la respirando, mas tão levemente que a respiração nem sequer movimentava seu colo já desenvolvido” (p. 83).

 

Zola, Émile. GERMINAL. Tradução de Francisco Bittencourt. São Paulo: Abril Cultural, 1979.