Os Últimos Anos do Suicídio Refletido.

 

Capítulo VI

 

Chegamos então, ao século XVIII. Século da razão e do romantismo, aqui encontramos aliados o suicídio filosófico, retomando o caráter reflexivo do ato, e o suicídio romântico. O Século das Luzes será decisivo no debate sobre o tema, pois aqui se opera uma transição definitiva no caráter das reflexões acerca do suicídio. Do século XIX em diante, essa multiplicidade de opiniões até agora apresentada cederá seu lugar às explicações médicas, sociológicas e psicológicas. (Ainda se trate de uma multiplicidade de visões. Acho que isso não ficou claro. Na época, eu acreditava que a dominação dessas abordagens “científicas” do suicídio empobrecia a discussão. Mas não sei mais se se trata disso não. As ciências humanas não sabem o que fazer com o suicídio).

Em 1700, John Adams, em seu Essay Concerning Self-Murther, tentará firmar uma oposição ao ato dentro do debate filosófico. Mas será para ele muito mais difícil sustentar sua oposição levando em conta aspectos puramente humanos do que foi para Donne defender o ato tendo em vista a vontade de Deus. As reflexões sobre a natureza humana não alcançam nenhum aspecto que permita dizer que o fato de dar fim à própria vida a ela se opõe. Pelo contrário, a liberdade soberana do homem racional coloca-o na posição de senhor de si, responsável pelos próprios atos e apto a tomar qualquer decisão que o pensamento, seja este guiado pela razão ou pelo sentimento, lhe aponte. No entanto, aquele dentre seus argumentos que se refere à dimensão prática da vida humana é o que merece aqui algum destaque. Para ele, “permitir o suicídio equivaleria a destruir todas as leis humanas, dado que a pena de morte, que é a sanção mais grave para os que violam a lei, não teria grande força” (op. cit., p.238). (É, mano, perder o recurso á transcendência te suas dificuldades. Estava na hora dessas discussões começarem a dominar o cenário filosófico e científico. E para você? É possível uma moral absolutamente humana? Ou é absolutamente necessário um conceito transcendental para que não nos destruamos uns aos outros?)

Este mesmo século comporta o lançamento do livro Sofrimentos do Jovem Werther, que torna Goethe o símbolo do suicídio romântico. O livro teria inspirado tantos jovens a cometerem suicídio que sua leitura chegou a ser proibida em alguns lugares. Minois observa, contudo, que Werther não cria uma moda, mas “é antes a expressão de um clima a que dá uma forma” (op. cit., p.331). Goethe, no entanto, parece se incomodar com essas mortes a ele atribuídas e em vários momentos posteriores se defenderá de tais acusações. (Esse aqui é exatamente o ponto daquela discussão do efeito Werther. Eu já falei sobre isso em outro texto).

Por fim, Madame de Staël, também pensadora romântica, considera, a princípio, três causas para o suicídio: por amor, o suicídio filosófico e o do culpado, legitimando-os. Em 1813, preocupada com o que alguns poderiam considerar uma apologia ao suicídio, escreve o ensaio Réflexions sur le Suicide, que representa um dos marcos da transição que ocorreu entre os séculos XVIII e XIX, no qual a autora realiza uma análise neutra e equilibrada da forma mais exaustiva possível. Finalizando por uma exposição relativa à inclinação ao suicídio dos indivíduos de diferentes sociedades, como, por exemplo, a afirmação de que seriam os ingleses os mais suscetíveis ao ato; ainda que uma pensadora romântica, a análise sociológica é demarcada e abre espaço para diversos estudos que se seguem a este. (Eu não falei nada neste trabalho sobre isso, apesar de vontade não ter me faltado, mas existe uma querela entre alguns autores que atribuem a esta pensadora o título de mãe da sociologia, pois ela escreve um tratado cobre suicídio, abordando aspectos sociológicos, alguns anos antes de Durkheim. Mas é ele que fica famoso e não ela…).

Por fim, se no final do século XVIII, “Os suicidas filosóficos seguem para o nada, os suicidas românticos para o céu e os suicidas populares para o inferno.” (op. cit., p.342), nos séculos posteriores isso já não será mais uma questão. (Viram que eu caguei no final, certo? Já tinha dado o tamanho exigido, eu já devia estar revendo o teto na madrugada do dia da entrega e fazendo os últimos acréscimos e correções… Enfim… Eu ainda teria todo o século XX para abordar. Eu cheguei a estudar o tema. Eu só não tive paciência para terminar de escrever o trabalho. Até eu ter a oportunidade de publicá-lo aqui no blog, ele nunca tinha sido lido depois da entrega, há uns cinco anos. De qualquer maneira, foi muito bom ter relida esse trabalho e relembrado da experiência da pesquisa e de tudo que envolveu o meu estudo do suicídio ao longo da faculdade. Quem sabe eu retomo o tema?).

 

 

“13 Reasons Why”

A série “13 Reasons Why” foi muito comentada há pouco tempo e dividiu opiniões. Há os que defendem a importância de existir uma série que tenha se arriscado a abordar o tema tabu do suicídio, há os que afirmam que a série romantiza o ato e corre o risco de, por esta e outras razões, acabar se tornando uma forma de incentivo para aqueles que pensam em pôr fim à própria vida.

Eu me insiro dentro do primeiro grupo. Acho que é muito positivo que uma série se proponha a falar do tema do suicídio. Não é correto afirmar que falar sobre o tema é um incentivo ao ato. Pelo contrário, quando pensamos em prevenção, a primeira coisa que ouvimos falar (após uma pesquisa minimamente séria) é: precisamos falar mais sobre o suicídio. Se você procurar, por exemplo, o manual de prevenção do suicídio do Ministério da Saúde (http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_editoracao.pdf), será possível observar que filmes, séries, livros e músicas não são fatores de risco para o suicídio. O que é essencial para a prevenção do ato é conversar sobre o tema (incluindo perguntar diretamente a uma pessoa se ela está pensando em se matar).

Falando sobre a série especificamente. Assistir 13 Reasons Why foi, para mim, uma experiência muito gratificante. Já tendo pensado em pôr fim a minha própria vida mais vezes do que tive um amigo ao meu lado para conversar sobre o assunto, a série foi muito significativa para que eu sentisse uma parte importante da minha vida emocional acolhida e não invisibilizada. O desejo de se matar e o ato do suicídio em si, não é nem um pouco tão incomum quanto imaginamos, mas é quase impossível conversar sobre ele com uma outra pessoa. A série abriu inúmeros diálogos mundo afora sobre o tema e fez com que houvesse uma sobrecarga dos aparatos sociais que oferecem apoio para a legião de pessoas insatisfeitas com a própria vida, mergulhadas em intenso sofrimento. Tive contato, inclusive, com pessoas que já forma assombradas pelo fantasma do suicídio no passado e que, após assistir à séria, procuraram serviços voluntários (como o CVV – http://www.cvv.org.br/) não só para pedir ajuda para si próprio, mas também com a intenção de se tornarem voluntários e começarem a trabalhar do outro lado da linha de quem procura apoio neste momento tão delicado. Já tendo participado do treinamento para me tornar voluntária em grupos de prevenção ao suicídio, posso afirmar que uma boa parte dos voluntários são pessoas que já estiveram, literalmente, com a faca no pescoço. É terapêutico para esses voluntários poder ajudar pessoas que estão passando pelo que eles já passaram, segundo relatos.

Eu mesma fiquei particularmente surpresa com isso, a princípio. Eu achava que eu seria a única pessoa que já havia pensado em se matar e ia resolver trabalhar com pacientes suicidas. Pensando no efeito Werther, tão comentado ultimamente, ver e ter contato com pessoas estão valorizando o suicídio como saída para uma vida que desprezam e cometendo efetivamente o ato deveria levar os voluntários, principalmente com histórico de tentativas ou desejo suicida a cometerem o ato. Não é o que frequentemente se verifica. Vemos pessoas enfrentando os próprios fantasmas e tirando força do fato de estarem ajudando os outros.

Algumas pessoas tomaram a decisão final de se matar e executaram o ato após assistir a série? É possível que sim. Meu ponto não é afirmar que isso é impossível. A série pode ter sido a gota d’água para algumas pessoas. O que não quer dizer que elas necessariamente não cometeriam o ato caso não tivessem assistidos a série. O fato é que a série não constitui essencialmente um catalizador para o suicídio.

Você deve estar se perguntando a respeito do “Efeito Werther” que mencionei acima. Certo? Este efeito não goza de plena aceitação no mundo científico. Existem autores (MINOIS, Georges. História do suicídio: a sociedade ocidental perante a morte voluntária. Tradução: Serafim Ferreira. Lisboa: Editorial Teorema, 1998.) que afiram que o tal efeito é o resultado da atenção midiática dada à certas mortes e que os suicídios literários ou cinematográficos são mais a expressão de um clima social do que uma apologia ao ato. Quando aceitamos uma ideia como a do “Efeito Werther” fica difícil explicar o porquê d’Os Sofrimentos do jovem Werther causar tal comoção e não o suicídio de Madame Bovary, por exemplo. Existiram suicídios ilustres e romantizados ao longo da história que não teriam desencadeada o suposto efeito.

Por fim, vale comentar que a série, a despeito da questão do suicídio em si, é uma bela metáfora para os problemas que assolam a adolescência. Cada lado de cada fita representando um tipo de problema específico – com a amiga, o primeiro paquera, o assediador do colégio… Por pelo menos um destes problemas TODOS nós já passamos e a série captura bem o modo caótico como essas questões se desenrolam na vida dos adolescentes e os impactos emocionais que eles exercem sobre nós.

 

Para os interessados em saber mais sobre a história do suicídio, sugiro conferir meu e-book sobre o tema que será lançado em breve.  

Taedium Vitae

É possível que uma pessoa venha a cometer suicídio por puro desprezo à vida?

A alternativa seria: uma pessoa, na impossibilidade de mudar o mundo ao seu redor ou a si mesma na tentativa de se ajustar a ele, comete suicídio.

A expressão taedium vitae e a maneira como ela foi compreendida pelos teóricos que estudaram o suicídio, sugere a primeira opção.

Esse conceito é usado para caracterizar um estado de profundo tédio, mórbido e ansioso, em relação à vida. O suicídio por taedium vitae já foi apelidado de “saída racional”. Ele ocorreria no seio da “elite intelectual” em períodos de crises e transições, ou seja, momentos de instabilidade social, moral e/ou científica.

Uma pessoa sensível, refletindo sobre a vida e a condição de sua existência, poderia chegar á conclusão de que a vida não vale a pena ser vivida e resolver, racionalmente, tirar a própria vida.

Parece simples, talvez, expondo a situação desta maneira, mas, na verdade, é algo extremamente difícil de se considerar como verdadeiro.

Uma pessoa que simplesmente, pesando os prós e os contras da existência, decide que a condição humana é indigna e insatisfatória, resolve, portanto, colocar um ponto final em todas as coisas.

Será que isso existe?

Até hoje eu acredito que a resposta seja não.

Todas as pessoas que se matam, recorrem à essa “saída” radical por estarem extremamente insatisfeitas com algum ou alguns pontos de sua vida e acreditarem que a mudança é impossível.

O suicídio nunca se torna uma opção quando não existe um nó na vida de uma pessoa.

Quando estudamos o tema do suicídio ou atendemos pacientes com tendências suicidas aprendemos que falar sobre o assunto e quebrar o tabu de falar sobre a morte e as tendências autodestrutivas são necessidades urgentes.

Infelizmente não temos mais cinco anos de idade e não podemos mais acreditar que o fato de não falarmos sobre as coisas ou fechar os nossos olhos para elas faz com que elas desapareçam.

É errado imaginar que falar sobre o suicídio é um dos fatores que levam as pessoas a se matarem, o oposto é mais verdadeiro: não falar sobre suicídio faz com que mais e mais pessoas fiquem sozinhas com suas dores e fora da possibilidade de receber ajuda ou intervenção de amigos e familiares.

Para resumir: MITOS SOBRE O SUICÍDIO

1-      Perguntar para uma pessoa se ela já pensou em se matar pode fazer com que ela passe a considerar o suicídio como uma opção. (Não! Se uma pessoa não pensa em se matar e você pergunta para ela: “Você já pensou em se matar?”; ela responde: “Deus me livre! Eu não!”. Você jamais vai ouvir dessa pessoa: “Nossa, boa ideia! Sabe que eu não tinha pensado nisso?”. Perguntar para uma pessoa se ela está pensando em se matar pode, na verdade, salvar a vida dela).

2-      Quem quer se matar não avisa, vai lá e faz. (Que bom que tem gente que avisa! Isso é sempre um pedido de ajuda. É a brecha para que haja intervenção adequada. Se esta pessoa não for cuidada mesmo depois deste pedido de ajudar ela corre sim um sério risco de se matar).

3-      Uma pessoa que avisa que vai se matar está tentando manipular os outros ao seu redor. (Se o anúncio ou a tentativa de suicídio estiver servindo como forma de manipulação das pessoas ao redor, isso apenas significa que aquela pessoa que está tendo um comportamento de risco para suicídio está precisando tanto de ajuda, mas ela não possui meios mais eficientes do que os que está empregando para obtê-la. Ela não está fazendo isso porque é má, mas porque está em tanto sofrimento psicológico que já não vê outra solução para os seus problemas).

4-      Quem se automutila quer morre. (Também não é verdade. A automutilação tem para muitas pessoas a função de aliviar o sofrimento psíquico e não necessariamente estas pessoas pensam em se matar).

5-      Falar sobre suicídio, principalmente nos grandes meios de comunicação, leva as pessoas a se matarem. (Já disse: quem não está pensando em se matar, não vai ser convencido a se matar por ninguém na face dessa Terra. Se a pessoa já tem uma vulnerabilidade nesse sentido, ela pode acabar vendo sim um gatilho em assuntos relacionados ao suicídio. O ponto é, um milhão de outras coisas também funcionarão como gatilho para essas pessoas).

 

Acredito que este último ponto requeira uma pequena reflexão especial por conta dos escândalos recentes do jogo Baleia Azul e da série 13 Reasons Why.

O escândalo girou em torno do Efeito Werther.

Alguns pesquisadores afirmam que o livro Os Sofrimentos do Jovem Werther gerou uma onda de suicídios por imitação – suicídios copiados. Os relatos de época a respeito dos suicídios “causados” pela obra de Goethe, afirmam que os jovens que se matavam estavam com o livro próximo de si quando eram encontrados, ou vestindo as roupas do personagem principal do livro (alerta de spoiler: não é verdade que esses jovens se matavam do mesmo modo que o livro narra. No livro, personagem dá um tiro na cabeça. Não é tão fácil assim para um adolescente deprimido comum arranjar uma arma).

Contudo, não é assim tão unânime a conclusão de que o Efeito Werther existe e é tão devastador quanto se alardeia por aí. Muitos pesquisadores ainda duvidam de sua existência, afirmando que a coleta de dados tem sido seletiva e enganosa.

No meu consultório, chegaram duas pessoas por causa da série. As duas resolveram procurar ajuda psicológica pois estavam pensando em se matar e viram na série um sinal de alerta; uma delas “não queria acabar como aquela menina naquela banheira”.

Alguns sites afirmam que o número de ligações diárias para o Centro de Valorização da Vida (CVV) teve um aumento de quase 500% no auge da divulgação da série.

Afirmar que os suicídios que ocorreram naquela época ocorreram por causa de uma série ou um jogo é banalizar e invisibilizar grosseiramente o sofrimento das pessoas que cometeram suicídio.

Porque com o suicídio é sempre assim: está tudo bem até essa coisa absurda e inexplicável acontecer, aí todo mundo tenta encontrar um bode expiatório, sem ter coragem de encarar da dura realidade do sofrimento alheio e o fato de que todos ao redor foram incapazes de perceber ou de fazer algo a respeito.

Isso não quer dizer que os que sobrevivem devem viver martirizados pela culpa, significa apenas que a morte aponta friamente para os nossos limites, a fragilidade e a brevidade da nossa vida. E isso é difícil demais de encarar. É mais fácil tirar a profundidade do sofrimento do outro e dizer que, se não fosse aquela série ou aquele jogo, isso não teria acontecido.