Resenha: “Assassinato no Expresso do Oriente”.

Aviso: este texto contém spoilers.

O filme Assassinato no Expresso do Oriente é irresponsável.
É importante deixar claro que eu não li o livro. Falo especificamente do filme. Mas, se o diretor usou da sua liberdade artística para fazer modificações no enredo ou se ele não usou dessa liberdade, os dois casos são igualmente lamentáveis.
No filme, o investigador Hercule Poirot, após resolver rápida e miraculosamente o caso do roubo de uma relíquia religiosa em Jerusalém, é convocado numa nova missão que o leva a pegar o trem Expresso do Oriente em direção a Londres.
A certa altura da viagem, que duraria vários dias, um homem é misteriosamente assassinado. A tensão aumenta pois, além do assassinato, o trem sofre com um descarrilhamento após ser atingido por uma avalanche de neve.
A tarefa de investigar o assassinato antes do trem alcançar seu destino final recai sobre o investigador.
A partir daí, acompanhamos os interrogatórios conduzidos por Hercule Poirot com os passageiros. Começa a vir à tona, a partir de pedaços de informações garimpadas dos discursos dos doze passageiros a bordo do trem, a história de um outro crime ao qual muitos dos passageiros pareciam estar conectados. Tratava-se do sequestro e assassinato de uma criança.
Ao final do filme a trama chega ao clímax quando o bigodudo confronta de uma só vez os doze passageiros. Numa cena pretensamente comovente, descobrimos que todos estavam mancomunados na execução do crime.
No fim das contas o assassinado havia sido o suposto perpetrador do sequestro e assassinato da criança, o que, de uma forma ou de outra, afetou a vida de todos os passageiros do trem.
Hercule Poirot se defronta com um grave dilema moral: o investigador acusava os doze pela execução brutal de um sequestrador e assassino de crianças ou encobria a vingança? Afinal, os doze eram pessoas de bem, não eram assassinos por natureza, apenas pessoas amargurados que haviam sofrido uma terrível injustiça, que tiveram suas vidas paralisadas ou destruídas há muitos anos atrás e que buscavam, uma vez que a polícia havia falhado em encontrar o culpado da violência sofrida pela criança, fazer justiça com as próprias mãos.
Poirot “decide com o coração” e ignora os fatos que havia descoberto, encobrindo a verdade, para que aquele grupo de pessoas pudessem seguir suas vidas e tentar viver em paz dali em diante.
É verdade que a discussão a respeito de se o que é ilegal é necessariamente errado é longa e tem as suas nuances. No entanto, há casos em que o convívio social já avançou satisfatoriamente. O fato de considerarmos o assassinato uma coisa errada, tanto do ponto de vista legal quanto social, é uma das coisas positivas do avanço da organização dos seres humanos em sociedades (pena de morte também discutida a parte em outro momento). O que o filme faz é glorificar e romantizar uma prática extremamente reacionária, retrógrada, atitude que já deveria ter sido superada há anos. Essa atitude, no filme, se torna ainda mais grave porque vem encarnada na figura do personagem que representa a razão universal e a força da moralidade humanista.
Isso sem contar com o fato de que o filme deixa completamente de lado a exploração do caso da criança. Se tratou apenas do uso deliberado de uma violência brutal apenas para colocar em cena outra violência brutal. A criança em si foi apenas um peão completamente esvaziado de vida.
Em segundo lugar, a própria vingança foi “necessária” pois a investigação oficial do caso não levou a lugar nenhum. Foi malfeita, corrupta e descuidada. De modo que o filme não convence o expectador curioso em relação à trama de que o homem assassinado no trem era de fato o culpado do assassinato da criança. Esse descuido com a fundamentação do enredo de uma história tão séria faz com que o sentimento incitado na plateia seja o de aceitação inquestionável da culpa do suposto vilão e da validação da premeditada vingança com requintes de crueldade.
O filme não nos leva a refletir sobre os limites dessa prática de linchamento. É muito fácil odiar um assassino de crianças, mas a história está cheia de supostos assassinos de crianças, bruxas, comunistas, judeus etc. que foram perseguidos e mortos por cidadãos de bem sem direito às mínimas garantias da sociedade liberal a um julgamento justo e ao respeito pelo valor intrínseco da vida humana.
E nós ainda podemos ir além. Se cruzarmos o limite ético da proibição do assassinato onde iremos reestabelecer este limite?
Mataríamos apenas assassinos de crianças? E os assassinos dos adultos? Resolveríamos estender a concessão a eles também? Os assassinos passionais se distinguiram ainda dos premeditados? E os assassinatos culposos, e as mortes decorrentes de falhas humanas, e os médicos que receitam remédios para pessoas que acabam utilizando-os para cometer suicídio? Pode ser que você, leitor, considere este último caso absurdo, mas talvez a mãe de um jovem que usou a medicação prescrita pelo psiquiatra que falhou em salvar a vida do filho dela veja as coisas de outra forma.
E aquelas pessoas que ficam muito, muito, muito irritadas quando são assaltadas? Pode ser que elas passem a achar justo matar os ladrões (que vira e mexe já são linchados).
O sentido da nossa argumentação não é moralista. É perfeitamente compreensível que uma pessoa que teve seu ente querido assassinado seja tomada por um desejo de vingança. Não estamos nem discutindo a questão da vingança em si. O que é inadmissível é que a figura de autoridade, a lei, julgue tais crimes de maneira parcial, fora do que a lei permite. E é exatamente isso que acontece no filme, a figura do investigador que representa a integridade ética social cede à barbárie e valida um crime meticulosamente arquitetado, deixando livre e nos fazendo sentir uma piedade acrítica por uma gangue de assassinos linchadores.