Fotografias literárias

Um menino de aproximadamente 10 anos está com o dedo na boca na porta do banheiro feminino do shopping. No momento em que eu olho, o menino parecia ter acabado de levantar os olhos; semi-aberta, a porta do banheiro deixa entrever uma mulher que olha para frente, ignorando o menino. Mas o menino está olhando para ela. Vê-se logo que não é a mãe dele. Eu, um pouco mais adiante, observo o menino e me preocupo pensando que ele pode estar perdido, pois a garrafa de 600 ml que eu encho agora no bebedor que libera um fio fraquinho de água já está quase cheia e ainda não saiu do banheiro a mãe daquele menino. Ele obviamente não espera pelo pai. O banheiro masculino pode ser visto do outro lado de onde o menino se encontra. Olhando o campo aberto da imagem, nota-se que o menino estava inclinado, o que dava a impressão de que ele andava em círculos. Seu corpinho meio de lado, numa diagonal estranha, o dedo na boca, olhando ansioso a mulher que sai do banheiro e que não é sua mãe. O chão brilha muito. Deve ter acabado de ser polido. E o menino, vestido em roupas muito claras, contrasta com a parede vermelha atrás de si. Muitas outras pessoas estão ao redor, mas elas não chaman atenção.

“Por onde andam meus pés”? Dia 6.

Quando eu fico dois dias seguidos ou mais na casa da minha avó, eu não resisto. Eu começo a aproveitar o bairro.
Atrações turísticas? Várias barraquinhas de açaí, a pizzaria que tem a melhor pizza do mundo, que é uma meio a meio de atum com banana, a praça da Igreja (que vocês conheceram ontem) e o hambúrguer que me introduziu no mundo do fast food.
Claro que eu não subo mais no trepa-trepa constantemente (ainda que, com dois primos pequenos, eu já tenha feito isso com mais frequência do que o esperado de outras pessoas da minha idade, que são zero vezes), mas essa foto não é tão artificial assim. Deve ter, no máximo dois anos a última vez que eu brinquei nesse negócio.
Sinceramente, esses parques que os adultos podem ir não estão com nada. A gente paga caro para ficar dois minutos no brinquedo, não faz atividade física nenhuma, corre o risco de morrer e vomita no final! Bom mesmo é balanço, escorrega, gangorra e trepa-trepa. Eu só vou no parquinho quando não tem criança nenhuma lá. Então, não me critiquem por ficar ainda sentada num balanço sempre que posso.
Eu vejo menos crianças nos parquinhos do que eu costumava ver antigamente. Me parece que tem menos crianças brincando na rua. Outros adultos têm a mesma impressão que eu. Ficar mais velho é sempre assim mesmo, não é? Começar a achar automaticamente, sem nenhum tipo de reflexão crítica, que na nossa época tudo era diferente e melhor.
Se você conversar com os ex-adolescentes que ficavam comigo na rua naqueles dias, eles vão te dizer que a gente deu sorte, que na nossa época ainda dava para ficar na rua, hoje em dia não mais, porque está tudo muito perigoso. O caso é que, quando eu saía para a rua, minha mãe ficava muito preocupada, porque estava tudo muito perigoso, já era um pouco perigoso na época dela, mas dava para levar. Minha avó já vai te dizer que o medo maior na época dela era com a honra, não tinha essas coisas de violência. Os nossos filhos vão proibir os filhos deles de sair de casa por causa do aumento da violência ou de outro perigo qualquer.
Você deve estar pensando: “mas a violência aumentou mesmo”. Olha só, ou a gente está caminhando para uma distopia bizarra, ou você está apenas sendo enganado pelo truque que engana todo mundo. O de achar que tudo era melhor na nossa época.
Eu também acho que era tudo melhor na minha época! Claro! Apesar das gerações que vieram antes de mim afirmarem que boa mesmo era a época deles, eu acho que a minha é que é a melhor de todas.
O problema é que o ser humano é um bicho que tem propensões estúpidas: ele tem medo do desconhecido e se apega excessivamente ao que conhece. Está aí toda a falha da educação das crianças.
Nós criamos as crianças em um mundo novo, que não é aquele em que nós vivemos. Esse mundo novo é cheio de perigos e armadilhas novas que nós não experimentamos. Não temos as ferramentas necessárias para combater esses novos perigos. Então imbuímos nossos filhos com a única coisa que temos para protegê-los: medo. E é essa herança que eles vão passar adiante.
Quanto a nos apegarmos excessivamente ao que conhecemos, isso se reflete no fato de ser muito difícil para os pais verem os filhos desenvolverem hábitos novos, que a geração deles não tinha, se comportarem de modo diferente, de um jeito que os incomoda e que eles chamam errado e não saudável. Os pais se incomodam, e brigam, e castigam seus filhos porque eles desviam do modo como os pais foram criados.
Existem aqueles pais que fazem questão de não passarem a educação que receberam, é verdade, geralmente por esta ter sido excessivamente rígida. Esses pais também são excessivamente apegados ao que lhes é familiar e vão pecar com seus filhos também. A diferença é que aqui a familiaridade é com o que esses país cozinharam na cabeça deles como forma de educação adequada. Eles se apegaram a uma idéia de educação e é essa idéia familiar que eles lutam para por em prática.
É muito difícil para os pais verem seus filhos se tornarem pessoas novas, independentes e, principalmente, diferentes deles, do que eles viveram quando eram pequenos ou do que queriam ter vivido.
É nesse turbilhão e nessa batalha de emoções que nós crescemos. Não é de se espantar que percamos algumas noites de sono pelo caminho.
Dizer isso não significa que eu não vou fazer besteira se um dia resolver ter filhos. Quer dizer apenas que, hoje em dia, eu adoto a postura política de respeitar a época das crianças.
Você gostava que os adultos falassem mal o tempo todo do mundo em que você vivia? Dizendo que bom mesmo era um mundo que tinha acabado e que você nunca iria conhecer? Isso era desolador. Um desrespeito com as crianças.
O melhor que você pode fazer hoje é pedir que as crianças te contem como está o mundo atualmente, elas sabem melhor do que você. Elas serão os adultos que vão educar os filhos amanhã com base no que vêem hoje. No lugar de tentar fazer ela engolir a sua visão – Você sabe que ela não vai engolir, não é? Você não desenvolveu a sua visão de mundo particular, diferente daquela dos seus pais? Elas também irão – pergunte qual é a visão de mundo dela. Escute para depois saber como orientar. Saiba quem é aquela pessoa, para que depois você possa tentar ajudá-la a atingir o potencial dela.
A despeito das suas ternas memórias da infância, todos os mundos, daqui para frente e daqui para trás, foram tão bonitos e felizes para as crianças que eles abrigaram quanto o seu foi para você. Aprenda a respeitar isso.

“Por onde andam meus pés”? Dia 4.

Contei para vocês a sensação das pedrinhas do quintal da minha avó sob os meus pés descalços. Agora vocês estão apresentados.
O chão estava quente naquela hora que eu tirei a foto. O calor, as pedrinhas e o Natal.
Foi para a casa da minha avó que meus pés me trouxeram hoje (com a ajuda dos pneus do carro da minha mãe, porque é bem longe).
Todos os anos nós passamos o Natal aqui. Assim como todos os domingos de todos os anos. Esta família se reúne sempre.
Eu sei que existem famílias que esperam o Natal para se reunir e brigar, a gente faz isso periodicamente. Toda semana nós nos reunimos, comemos, rimos e brigamos. No Natal só muda a hora. No lugar de ser no almoço é na janta.
O dia é corrido, passado inteirinho dentro da cozinha: maionese, farofa, várias farofas diferentes, arroz, macarrão, rabanada, carnes, várias carnes diferentes também. O dia inteiro de forno e fogo ligados. Muito calor.
Aqui é muito, muito quente. Tão quente que um ventilador de teto na cozinha não dá jeito.
Hoje, lá pelas quatro, começou a chover, só que não deu nem tempo de dar graças a Deus antes de faltar luz. O ventilador de teto parou e o calor nem tchum. A chuva não refrescou a casa. Me fale de apreciar as pequenas coisas! Uma brisa fresquinha fazia todos pararem e suspirarem.
Nesse clima, cozinhar foi um suplício ainda maior.
Comer a rabanada com café no fim da tarde foi um suplício.
Eu estou tentando escrever e está difícil de me concentrar sentindo as gotas de suor escorrendo da dobra do joelho… da dobra do braço… na testa… nas costas.
Eu fiz uma pausa na escrita do texto para tomar banho e mesmo depois do banho continua quente.
Hoje eu derramei açúcar em cima de mim e foi muito difícil de limpar porque ele meio que derreteu no meu colo suado. Eu tive que ir lá fora no tanque tomar um semi-banho de torneira.
Eu tenho uma lembrança de tomar banho de tanque lá fora quando eu era pequena. Era de noite e a luz da área estava acesa… A iluminação era relaxante. E, naquela época, já fazia calor aqui, então um banho lá fora era o paraíso.
Tem o chuveirão também, lá no quintal, mas com a idade parece que vai ficando mais difícil simplesmente ir lá, e se molhar, e secar ao relento sentada no portão conversando com os amigos como eu fazia antes. Não. Conforme o tempo vai passando eu fico cada vez mais tempo aqui dentro ajudando a cozinhar.
Está muito calor aqui. Mas daqui a pouco todo mundo vai chegar da missa de qualquer jeito, todo mundo vai comer a comida quente de qualquer jeito e vai se abraçar também para desejar feliz Natal. Aqui a gente ignora quando alguém diz: não me abraça não que eu tô suado! Se fosse assim ninguém se tocava.
Está muito calor aqui e mesmo assim eu vou voltar ano que vem e domingo que vem.
As tradições funcionam assim: sempre tem um desconforto, mas alguma coisa compensa o sofrimento. Por mais que você olhe de soslaio para as mensagens clichés, por mais que você xingue todo mundo quando você está no shopping cheio comprando presentes que você não tem dinheiro para pagar, quando você está derretendo na cozinha…
E aí? O que é que tem no Natal e nas tradições de um modo geral?
Tem a sensação das pedras debaixo dos pés descalços: o gosto da infância que já não tem mais tanto glamour assim, mas que, por algum motivo, você não consegue abandonar.
Você não larga disso tudo porque você sabe, lá no fundo, que não tem muito para onde correr.