Cinco palavras sem sentido.

Eu já fiz um exercício numa oficina de escrita criativa que com sistema no seguinte: cinco pessoas da turma falavam cada um uma palavra e todos os participantes tinham que escrever uma narrativa que contivesse todas as cinco palavras sem variações. Por exemplo, se a palavra era sangue, tinha que usar sangue mesmo, não poderia ser sanguinolento.
Há um tempo eu vi uma cena no trem sobre a qual eu queria escrever, mas até hoje eu não sei como fazer esse texto.
Seguindo o procedimento proposto na oficina, trata-se de um texto que tem que conter as cinco palavras a seguir:

Hidrocefalia.
Cego.
Chokito.
Prestígio.
Latão.

 

Eu peguei o trem no meio da tarde para ir até o Engenho de Dentro visitar uma amiga. O vagão não estava lotado, mas não tinha lugar para sentar. Fiquei em pé perto da passagem de um vagão para o outro. Eram vagões assim como aqueles mais novos do metrô, que permitem que você passe de um vagão para outro através de uma estrutura de ligação sanfonada.

Logo assim que eu abri um livro para ler, um homem com uma menina em uma cadeira de rodas pararam bem na minha frente. O homem começou a falar com os passageiros:

– Senhoras e senhores, muito boa tarde! Desculpem interromper a viagem de vocês, mas eu venho aqui, com toda humildade, apelar para o coração de vocês. Se for possível, senhoras e senhores, fazer uma caridade… Esta é minha filha, senhoras e senhores. Ela nasceu com microcefalia, ela não anda, ela não consegue se alimentar ou ir ao banheiro sozinha. A mãe dela nos abandonou alguns anos atrás e eu, infelizmente, não posso trabalhar, senhoras e senhores, pois tenho que cuidar da minha filha, senhoras e senhores. A cabecinha dela, senhoras e senhores, acumula líquido e este líquido tem que ser drenado de duas a três vezes por dia, se não ela pode vir a falecer, senhoras e senhores. E só tem eu para fazer isso com ela. Ela não estuda, ela não fala, ela não tem como viver sem o meu auxílio, senhoras e senhores, e para poder ajuda-la, eu preciso da colaboração de vocês.

A essa altura, o homem já começou a ir andando vagarosamente pelo vagão recolhendo dinheiro. E outra voz começou a ganhar destaque.

– Muito obrigada pela compreensão e colaboração, senhoras e senhores. Que Deus abençoe o coração de vocês.

Era um homem cego idoso que vinha se aproximando da passagem que dava acesso ao meu vagão. Este home cego parou na minha frente e começou a falar.

– Muito boa tarde, senhoras e senhores. O cego vem pedir uma ajuda, pois eu não consigo arrumar emprego e tenho família para sustentar.

Mas nessa hora veio se aproximando novamente o homem com a filha na cadeira de rodas. Ele passou pelo homem cego e ficou a um metro dele, de costas, virado para os passageiros do vagão de onde o homem cego tinha vindo e ele reiniciou o seu discurso.

– Senhoras e senhores, muito boa tarde! Desculpem interromper a viagem de vocês, mas eu venho aqui, com toda humildade, apelar para o coração de vocês. Se for possível, senhoras e senhores, fazer uma caridade… Esta é minha filha, senhoras e senhores. Ela nasceu com microcefalia – a voz do cego se misturava com a dele – e foi assim que eu perdi a visão, senhoras e senhores. E se Deus me tirou a visão eu sei que foi na sabedoria dele e eu só peço que vocês me ajudem com qualquer moedinha – A cabecinha dela, senhoras e senhores, acumula líquido e este líquido tem que ser drenado de duas a três vezes por dia, se não ela pode vir a falecer – E eu entrei sim para as drogas. Eu não tenho vergonha de admitir. Por isso eu sei que Deus, em sua infinita sabedoria, tirou a minha visão. Então, eu já fui punido, senhoras e senhores. – Ela não estuda, ela não fala – Eu não enxergo e conto com a compaixão de vocês.

– Latão! Olha o latão! – Mais um sujeito passa por mim gritando. – Latão cinco reais! Latão para refrescar a sua viagem e começar a sua sexta feira!

– Então, quem puder colaborar, senhoras e senhoras, para evitar que essa criança maravilhosa venha acabe por aí morta, senhoras e senhores, qualquer ajuda eu agradeço.

– Pode colocar o dinheiro aqui no chapéu do cego.

– Ééééééééé… ochokitoprestígiobalahalls a um real… Ééééééééé… ochokitoprestígiobalahalls a um real…

– Ééééééééé… o chapéu do cego para evitar que essa criança maravilhosa a um real para refrescar a sua viagem.

Eu não pude ajudar ninguém. Eu tinha apenas cinquenta reais inteiros, virei as costas na minha estação e saí do trem.

FIM.

 

Ruim, não é? A história? Eu demorei a escrever por esse motivo. Essa história não tem moral, não tem fechamento, não tem epifania. Ela consiste em um monte de palavras aleatórias, absurdas, que jamais apareceriam juntas em uma história se não fosse a vida humana uma loucura.