Deficiente é tudo igual, não é?

No último domingo, dia 19/11/17, eu fiz o concurso público da UFRJ, concorrendo para a vaga de Assistente Administrativo.

Como o número de vagas era “alto”, havia vagas para deficientes e eu concorri a uma delas.

Foi a primeira vez que fiz prova para um concurso que abriu vagas para deficientes. Infelizmente, só tenho coisas ruins a relatar.

As salas reservadas para os deficientes eram bastante isoladas e distantes. Antes disso, eu não sei como eles selecionam o lugar no qual as pessoas realizarão a prova, mas seria de se imaginar que iriam colocar os deficientes para realizar provas em locais próximos das suas casas. Tinham dois lugares onde seriam realizadas provas da UFRJ na minha rua e, ainda assim, me jogaram para o Fundão.

Quando eu finalmente cheguei ao Fundão e depois da jornada para encontrar a sala (tudo acompanhada da minha mãe), tive a agradável surpresa de que a sala era, na verdade, um auditório. A princípio, parecia que os problemas haviam terminado. Sala confortável, boa iluminação. Mas foi neste ponto que os problemas recomeçaram.

Colocaram na mesma sala pessoas que só enxergavam com muita claridade e pessoas com fotofobia, como eu. Foi um desespero de abre persiana, fecha persiana, chama o técnico para ver se consegue dar um jeito. Que jeito? No auditório em que estávamos, havia vários conjuntos de lâmpadas diferentes. Três, pelo que eu pude perceber. De modo que era possível acender qualquer um dos conjuntos de lâmpadas isoladamente ou os três de uma vez.

O primeiro conjunto de lâmpadas ficava na parte da frente do auditório, iluminando o tablado e deixando o resto da sala numa semipenumbra. Delicinha. Sabe aquelas palestras nas quais você dorme a sono solto? Então. Havia um segundo conjunto de lâmpadas espalhadas em fileiras ao longo do auditório. Entre uma fileira de lâmpadas e outra deveria haver um espaço de aproximadamente dois metros. Enquanto as luzes que iluminavam o tablado eram amarelas, arredondadas e bem fortes, este segundo conjunto era de lâmpadas compridas que pareciam se esconder em dobras do teto. A luz que emanavam era branca e sutil. Com estes dois conjuntos de lâmpadas acesas a sala estava perfeita para mim. O terceiro conjunto de lâmpadas ficava no espaço de dois metros que mencionei, formando uma nova fileira. As lâmpadas aí eram como as que iluminavam o tablado. Quando este terceiro conjunto era acendido, a iluminação era projetada em cima das mesas onde iríamos escrever e praticamente me cegavam. Então, era necessário acender estas lâmpadas para os que precisavam de muita luz, mas desafrouxar aquelas que ficam em cima das mesas dos fotofóbicos para que não acendessem. Foi um troca-troca de lugar, um senta levanta de dar dor de cabeça até que todos pudessem se ajustar.

Depois desse desespero, ainda aconteceu o problema dos tamanhos das provas. Todos na sala haviam pedido prova ampliada e metade das provas veio em tamanho normal, inclusive os cartões-resposta. Começou um fuzuê tão grande que os fiscais foram chamar uma supervisora. A mulher chegou já pisando duro e perguntando: “O que que foi, gente? O que é que está acontecendo?” Nossa, que mulher grossa! Grossa com os fiscais e grossa conosco que faríamos a prova.

Todos estavam preocupados porque a mulher grossa disse que iria buscar as provas e os cartões ampliados, portanto nós deveríamos nos acalmar e começar logo a prova, mas e aí? Como faríamos com dois cartões? Isso não ia dar problema? Correria o risco de sermos desclassificados? Ela praticamente falou que éramos uns escandalosos preocupados à toa, mas, como veremos adiante, deu problema sim, então a agitação era justificada. A mulher não deu nem previsão do tempo que levaria para que chegasse o novo material.

Enfim, começamos a fazer a prova com uns quarenta minutos de atraso. Eu já estava estressada, com vontade de ir ao banheiro (eu pedi, mas não pude sair enquanto as discussões estavam rolando).

Durante a prova ainda ocorreram diversas interrupções. As duas mais desagradáveis merecem destaque. A primeira foi quando a supervisora veio entregar os cartões. Como já havia transcorrido mais de uma hora de prova, eu fui marcando o meu cartão. Vai que a mulher não chega nunca ou chega já nos últimos minutos… “Melhor pintar essas minúsculas bolinhas do que não conseguir preencher tudo ou fazer correndo e acabar errando depois”, pensei premonitoriamente. Por isso eu não me manifestei quando ela perguntou quem havia solicitado o negócio, mas a mulher atrás de mim, querendo ajudar, falou que eu havia solicitado um. Eu me manifestei:

– Não, obrigada. Não precisa mais não – pois eu não queria nem pegar o cartão não estando confiante de que não daria problema.

Aí a babaca me faz um comentário completamente dispensável em voz super alta para todo mundo ouvir – Ah, então não era necessário, não é.

Cara, foi bate e volta, eu levantei a cabeça na hora e respondi – Era muito necessário, mas deveria ter estado aqui antes da prova começar.

Fiquei muito orgulhosa por não ter deixado passar aquele comentário. Já era a segunda vez que eu me estressava com ela. No início, quando estavam distribuindo as provas, eu tive uma dúvida, perguntei a um dos fiscais e ela veio se intrometendo e me dando patada. Eu reclamei do jeito que ela estava falando comigo e ela ficou fazendo sinal de joinha na minha cara.

Eu fico sensível em momentos de estresse. Eu estava sensível naquele momento sim, mas não era só eu que estava puta com o comportamento dela. Foi só a mulher sair que todo mundo reclamou. Estavam todos legitimamente tentando adequar suas deficiências à situação da prova. Aconteceu um monte de merda no meio do caminho e a pessoa que está ali para resolver fica te tratando mal?! Porra!

A segunda interrupção foi justamente por causa do cartão. Parece que todos que estavam com o cartão pequeno, esperaram o grande para começar a marcar as respostas, menos um cara, que marcou em um catão até o outro chegar. Mas ele acabou errando na marcação do novo cartão, o grande, e resolveu entregar o pequeno mesmo. Nós não havíamos sido orientados a não marcar os dois cartões, ninguém falou que se marcasse o grande, era ele que valeria. Lembra, quando estávamos tentando tirar essas dúvidas, a grossa interrompeu e falou que não ia ter problema nenhum, que estávamos muito estressadas, que era para a gente respirar. Aí o cara ficou uns dez minutos brigando com o fiscal, porque queria que valesse o cartão pequeno. O fiscal também não sabia muito bem o que fazer, estava inseguro, mas tentava afirmar que não podia escolher, que ia ser o grande. E metade da sala ainda estava fazendo a prova.

Pois bem, para começar, o local de realização da prova, difícil acesso para certos tipos de deficiência; não sabiam como organizar as pessoas, jogaram deficientes com necessidades incompatíveis na mesma sala (na hora de fazer a inscrição, havia lá a possibilidade de marcar fotofobia, então não era nem como se eles não soubessem das pessoas nesta condição); depois foram as provas e cartões que vieram em tamanhos errados; e, por fim, os profissionais despreparados (o que nem foi o pior) e grossos.

Péssima experiência. Eu não fui bem na prova (Ok, não foi só pela condição esdrúxula da realização da prova, mas também porque eu continuo não sabendo uma vírgula de matemática).

 

“Eu espio com os meus olhos”. Parte VI.

Me formei. Hora de atacar o mercado de trabalho. Bom, eu fui trabalhar com clínica particular e com docência.

Na clínica, meu problema de visão nunca foi um grande problema. Eu fico a pouca distância do paciente, portanto, consigo enxergá-lo suficientemente bem.

Eu já percebi que ver o rosto do outro com clareza faz diferença em algumas situações sim. Por exemplo, eu não tenho nenhum problema de audição, mas quando pergunto para o motorista do ônibus, por exemplo, se aquele ônibus passa em tal lugar, eu nunca entendo a resposta, mas o meu marido sim. A minha hipótese é que as pessoas normalmente fazem meio que uma leitura labial inconsciente que colabora para que se entenda o que o outro está falando em locais barulhentos ou quando estão falando baixo. Como eu não enxergo o movimento da boca, acabo tendo dificuldade para ouvir o que as outras pessoas falam em certas situações.

Esse, ainda bem, não é o caso no consultório, pois é um lugar silencioso. Além disso, eu já estou adaptada ao meu problema de visão. Eu não consigo ver o branco dos olhos do cliente, mas a minha percepção de alterações no rosto dele me fazem perceber que ele mudou o direcionamento do olhar. Pequenas habilidades adaptativas que são desenvolvidas para lidar com o dia a dia. Esta é mais uma das razões pelas quais os médicos não indicam a cirurgia para a miopia no meu caso. Eu já estou há 27 anos nesse processo adaptativo. A cirurgia não me daria uma melhora tão significativa, mas seria o suficiente para invalidar todas as estratégias que eu desenvolvi até hoje para lidar com a deficiência visual!

No meu trabalho em consultório, acredito que o único momento em que meus clientes percebem que eu tenho algum problema de visão é quando eu tenho que preencher e assinar recibos na frente deles. Como isso ocorre com pouca frequência, eu não me dou ao trabalho de ficar explicando o problema.

Dando aula o buraco é mais embaixo. Não faço grandes cerimônias para explicar o problema, mas sempre tem aquele aluno que começa a falar do nada, sem levantar a mão. Nesses casos, eu tenho duas alternativas: quando eu não estou a fim de falar sobre a minha visão, eu faço uma cara de concentrada e fico olhando para baixo, quando eu estou disposta, eu brinco. “Quem está falando aí? Levanta a mão porque – mais alto! -; isso… agora sim estou te vendo”. Os alunos, às vezes, comentam que eu estou precisando trocar os óculos e eu respondo: “Menina, quem tem tempo para isso? É mais prático e mais barato se vocês levantarem a mão!”

Recentemente eu comecei um treinamento para dar aulas em um lugar novo (ano que vem vai ter post sobre isso!) e, nesses casos, sempre bate a dúvida: faço o discurso da lamentação – ah… eu tenho um problema de visão assim e sei lá mais como… – ou deixo rolar e se der merda eu explico? É uma grande dúvida.

Mesmo que eu não fique me fazendo de coitada quando apresento o problema, as pessoas ficam ou com pena ou com receio. Com receio principalmente se se tratar da sua chefe no trabalho. Então, eu tenho um pouco de medo desse preconceito e acabo deixando rolar no início. Depois eu explico o que eu tenho de maneira que pareça menos uma solenidade.

De um modo geral tenho que jogar as mãos para o céu, pois além do episódio no estágio durante a faculdade que eu já mencionei ao longo do me relato, nunca tive problemas no trabalho por conta da deficiência.

Não sei como seria se eu tivesse tentado entrar no mercado de trabalho empresarial. Tenho a impressão de que não ia chegar muito longe não. Mas isso não me frustra. Eu ia ficar louca se trabalhasse dentro de um escritório. Passei tempo demais ouvindo minha mãe falar: “Filha, procure um trabalho no qual você não fique presa dentro de um escritório. Entrar de manhã cedo, sair já depois de escurecer”. Uuuu… Me dá arrepios só de pensar. Por isso eu odeio o horário de verão, porque tem sol até mais tarde e o calor é exorbitante, e minha mãe ama, porque ela ainda via a luz do sol depois de sair do trabalho.

Temos também os concursos públicos. O povo acha que é moleza fazer a prova com a concorrência bastante reduzida. Isso é verdade mesmo. Mas talvez isso não compense o fato de que as opções de concursos com vagas para deficientes é muito pequena e é quase impossível achar um concurso com vagas para deficientes que pague bem. Então, não se chateiem por não ter a vantagem de competir para as vagas de deficiente.

Bom, de qualquer forma, o meu maior problema para trabalhar não é o trabalho e si, mas é como chegar ao trabalho.

A questão do transporte novamente. Esse, pelo que estou percebendo, vai ser o problema da minha vida.

E eu faço muita coisa, então…

Trabalho com a docência em duas instituições diferentes, em dois consultórios… Os horários também não são fixos, o que torna difícil fazer sempre arranjos de carona. Então eu estou constantemente rodando as ruas do Rio de Janeiro. Ando até os pontos finais para pegar os ônibus, vou até ruas onde só passa aquela linha que serve para mim, caminho meia hora até os metrôs, gasto uma grana com transporte individual, peço milhões de caronas para minha mãe, peço ajuda aos amigos para me colocarem nos ônibus.  

Eu me viro e muita gente me ajuda, mas não vou abrir mão de dizer que é chato, inconveniente e, algumas vezes, triste ter que lidar com qualquer tipo de deficiência.

Por outro lado, não dá para negar, a vida é boa para caralho.