“Por onde andam meus pés”? Dia 8.

Hoje as estrelas foram os pés dos amigos.

Pés que vêm visitar e que, às vezes, custam a ir embora (importante deixar claro que isso é uma coisa maavilhosa :P). Pés que vêm de longe algumas vezes e pés que pisam a casa inteira durante os fins de semana de estadia. Tem um pé em especial, que quando vem aqui, sempre destrói ou quebra alguma coisa, mas como esses pés também já ajudaram! Subiram e desceram escada durante a pintura do apartamento novo, sustentaram o peso dos móveis na mudança.

Pés descalços como o meu ou os pés calçados que me deixam louca. Não entendo esse povo que adora um sapato. Quando vem um amigo de tênis eu obrigo a tirar. Não quero nem saber. Durante a semana são os pés cansados, cheios de chulé que pisam esta casa.

São todos pés muito bem-vindos.

Tem também os pés sumidos, que nunca pisaram esse território. Cadê vocês? Já passou da hora de conhecer meu chão.

Eu lembro de quando era educado tirar o chinelo para entrar na casa dos outros. Quantas texturas de chão diferente já passaram pelas solas dos meus pés.

Chãos encerados, chãos cobertos de pelo de cachorro e gato, chãos de terra batida, chãos de taco, de cerâmica e de madeira, chãos sujos.

É estranho que eu me lembre do chão da casa das pessoas?

Nos dois apartamentos que eu morei até hoje desde que saí da casa da minha mãe, o chão foi algo que eu fiz questão de mudar para ficar do meu jeito. Afinal, eu aproveito muito o chão da casa. Eu sento e deito no chão e ando descalça.

Não é que eu goste de piso perfeito. Lembro que no quarto onde eu dormia na época que morei na casa da minha avó tinha uma cerâmica quebrada. Olha, eu nunca gostei de quebra-cabeça, mas como eu gostava de ficar encaixando e desencaixando aquele negócio! Tinha um quebradinho na cozinha também… Eu quase senti pena quando essas “imperfeições” foram consertadas.
Sempre dizem que o mais importante dos sentidos humanos é a visão. Importante no sentido de ser o sentido ao qual prestamos mais atenção. Ele monopoliza a nossa percepção do mundo. E é verdade. Temos que nos esforçar para prestar atenção aos outros sentidos. E esse é um exercício que vale muito a pena.

Eu sei que você deve acreditar que a friagem entra pelo pé, mas eu quase nunca gripo ou fico resfriada. Então deixe o medo de lado e dê mais pisadinhas nas coisas.

Duas das coisas que eu não gosto de pisar: algas, que me dão um nervoso extremo, e chão de lagoa, que tem uma textura meio lodosa que me dá arrepios. Fora isso… Tenho curiosidade de como seria pisar em brasa… Ou em pregos, como naqueles espetáculos nos quais as pessoas fazem coisas inimagináveis!

“Eu espio com os meus olhos”. Parte IV.

Até a terceira série, as zoações dos colegas eram inofensivas para mim. Nada do que eu vivi até este período ficou marcado como especialmente negativo. Tinha um pouco da estranheza, eu acho, da parte das outras crianças em relação a mim, pois eu não via a bola nos jogos de queimado, não via onde caiu a pedrinha da amarelinha, não sabia dizer se o paquera da amiga era bonito ou não, não copiava do quadro, não respondia quando acenavam para mim. Mas as crianças não eram especialmente más nessa época, ou eu era mais resiliente.

O problema começou na terceira série.

Além das zoações inespecíficas, que serviam para zoar qualquer pessoa, eu comecei a sofrer com as zoações específicas e elas me magoavam demais.

Uma coisa era aquele garoto que virava para todo mundo e dizia: “Eu não sei se você tem dente ou trave de gol”. Quando todo mundo estava se xingando de “burro” e você era só mais um a ser xingado da mesma coisa a experiência é uma.

Quando você começa a ser alvo de xingamentos específicos, direcionados única e exclusivamente para você, a experiência de singularização fica mais evidente. Como consequência, eu comecei a ser vista como diferente e isso foi fazendo com que eu ficasse isolada socialmente.

“Cara de peixe morto”; “Abre o olho!”; “Quantos dedos têm aqui?” (com o dedo na minha cara); “Cegueta”; “Cega”; “Ceguinha”; e, além das falas, tinham os comportamentos. Eu geralmente fico com os olhos apertados ou olho pela parte de baixo do olho (como quem usa óculos multifocal tem que fazer), pois isso me ajuda a ver um pouco melhor. Esse gesto que eu fazia para ver melhor era imitado pelas outras crianças.

Tudo isso servi apenas para zoar a mim e a mais nenhuma outra criança.

Até eu faço gozação com o meu problema de visão. Meus amigos fazem. Se a gente não rir de si mesmo está condenado ao sofrimento. Mas ser zoado com amor pelos seus amigos é bastante diferente de ser ofendido por pessoas que afirmam te odiar.

Ainda havia aquelas crianças que, assim como alguns professores, pareciam ficar com raiva do meu problema de visão e demandavam que eu me curasse magicamente.

Por exemplo: havia crianças que não me zoavam por causa do problema de visão, mas que me chamavam de metida, porque eu não as cumprimentava quando passavam por mim. Eu explicava que não cumprimentava porque não as enxergava. Era só elas virem até mim e me cumprimentarem, ou me chamarem a atenção de alguma outra forma, que eu falaria com elas sem problema nenhum. Não era de propósito que eu as estava ignorando. Mas elas não aceitavam muito bem esta situação e ficavam irritadas comigo. Continuavam achando que eu era metida e se afastavam de mim.  

Já me perguntei muito o porquê disso. A melhor explicação que eu consegui encontrar, foi o fato da minha deficiência não ser aparente. As pessoas não conseguem entender isso muito bem: uma pessoa que sofre com um prejuízo tão grande, mas que elas não conseguem enxergar… Essas pessoas acham que eu estou de palhaçada ou de má vontade.

O fato é, eu fui um tipo de criança que já teria sofrido bullying de qualquer forma. O problema de visão só fez com que as coisas ficassem um pouco mais difíceis. Até porque, além do bullying, eu passei por uma série de outras dificuldades.

O incrível é que, mesmo no meio de tudo isso eu consegui encontrar as minhas melhores amigas.

Minhas amigas sempre fizeram tudo que podiam para que eu conseguisse acompanhar as aulas. Desde ir me falando e explicando baixinho tudo que o professor falava, até me ajudar a copiar a matéria que havia sido dada para o meu caderno na hora do recreio. Pensamos de tudo ao longo dos anos. O papel carbono foi uma das nossas melhores descobertas, apesar de ele não permitir que a minha amiga escrevesse dos dois lados da página do caderno dela porque borrava a minha cópia. Então, o prejuízo que os pais delas tinham com caderno era minha culpa.

Elas me ajudaram lendo os menus dos restaurantes, me ajudaram falando quais meninos eram meu tipo e quais não, me ajudaram a atravessar ruas, a pegar ônibus, a não morrer atropelada.

As amizades daquela época fizeram com que as tristezas vividas no sofrimento das chacotas, estejam agora, nas minhas lembranças, permeadas por todas os lados das maiores alegrias e aventuras que a infância pode comportar.

Não vou mentir. Tem uma barra que a deficiência impõe que você vai carregar sozinho e ninguém tem como sentir ou saber como é. Essa solidão não é exclusiva, mas é particular. Cada um tem o seu calo que faz com que só essa pessoa saiba como é andar nos próprios sapatos. A deficiência é assim também. Mas você nunca precisa estar solitário, mesmo quando estiver absolutamente sozinho no seu sofrimento. Não é porque as pessoas não entendem ou não sabem como é sentir o que você está sentindo, que elas não querem estar junto de você para te dar apoio.