Nos comportamos de acordo com o que pensamos. 

Nossas crenças limitantes e nossos pensamentos negativos são capazes de fazer um estrago em nossa vida.
Em 2012 eu recebi uma bolsa de estudos do instituto Goethe para passar um mês na Alemanha fazendo um curso intensivo de alemão.
Fiquei obviamente extremamente empolgada. Primeira viagem internacional, primeira vez que viajaria sozinha, havia recebido um reconhecimento importante ao conquistar a bolsa de estudos.
Eu iria aproveitar ao máximo a viagem! Só tinha um problema. Sempre fui meio anti-social, meio tímida e insegura. Corria o risco de eu viajar muda e voltar calada. Sem ter trocado uma palavra com os colegas de classe, sem fazer novos amigos, sem treinar o idioma.
Não. Não dava para deixar isso acontecer.
Como evitar esse cenário catastrófico?
Simples. Teria que conversar com as pessoas. Só que isso nunca havia sido simples para mim.
Foi uma terapia de choque. Quando eu cheguei em Freiburg, cidade na qual realizaria o curso, pensei: ok. Que desculpa eu tenho para falar com alguém neste momento? Minha consciência retrucou: mas agora? Precisa mesmo? Não dá para esperar um pouco não? Eu respondi veementemente: Não! Tem que ser agora! Virei para o lado e falei (em alemão): com licença, como eu faço para chegar ao local tal? Pronto. Consegui iniciar minha primeira conversa com um casal de alemães! Ou era isso que eu esperava.
O casal a que eu me dirige, era um casal de idosos franceses que sempre iam passar um tempo na Alemanha todos os anos. Por sorte, eu estava com o francês fresco na cabeça naquela época e pude conversar um pouco com eles. Acompanhei-os ajudando com as malas até o hotel onde se hospedariam.
Ao sair do hotel eu estava ainda mais nervosa. Seria necessário puxar assunto com desconhecidos ainda mais uma vez. Fiz de novo. Sem nem pensar. Era uma moça, que era mesmo alemã dessa vez (ufa! Eu já estava ficando sem repertório de línguas estrangeiras). Ela solidarizou muito conigo, pois a filha dela tinha acabado de viajar para a França em condições muito parecidas com as minhas. Ela me ajudou com a minha mala, pagou minha passagem no trem de rua que eu tinha que pegar para chegar ao hostel, me deixou quase na porta.
Depois dessas ocasiões eu ainda puxei assunto com muita gente. Todas as vezes que eu precisava chegar a algum lugar eu pedia ajuda (como desculpa para conversar mesmo, muitas vezes eu já sabia o caminho), puxei assunto com colegas de classe, pedi isqueiro para os jovens na rua etc. Consegui conhecer bastante gente.
Nenhuma das vezes foi fácil iniciar a conversa. Eu tinha que tomar a decisão de “falar e ponto” em todas as vezes que puxei assunto. Eu pensava: se eu não tonar a iniciativa, não vou conversar com ninguém hoje. Eu evitei refletir muito ou pensar no que poderia dar errado. Só pensei no meu objetivo: praticar alemão e conhecer pessoas desse país.
Foi muito bem sucedido o meu propósito na viagem.
E a mudança do meu comportamento foi duradoura.
Eu já havia passado situações desagradáveis por não conseguir falar certas coisas ou puxar assunto com as pessoas, desde ter que jogar comida em restaurante fora porque estava ruim e eu não conseguia reclamar, até ter feito poucos amigos e colegas ao longo da vida.
Eu ainda sou um pouco anti-social e insegura (percebi que não sou tímida, eu apenas parecia tímida por conta desses dois fatores), mas, se eu quiser por qualquer motivo ou precisar falar com alguém atualmente, eu já não tenho problemas.
Esse é o poder das nossas crenças e dos nossos pensamentos negativos. Se eu tivesse dado espaço aos pensamentos que eu calei na Alemanha, não teria conhecido ninguém.
Os pensamentos, depois eu tive tempo de analisá-los com calma, eram: e se eu falar com algum neonazista que odeia sul-americanos e ele me matar? E se eu falar o alemão todo cagado? E se a pessoa me ignorar? E se ninguém gostar de mim? E se não houver nenhum assunto em comum e a situação acabar sendo constrangedora?
No lugar de ceder a estas preocupações eu apenas pensei no que eu desejava e agi de acordo com isso. Mudei o meu comportamento e a flexibilização emocional veio a reboque.

“Eu espio com os meus olhos”. Parte V.

Eu já falei com vocês do Solícito, que me importunou nos primeiros meses de faculdade.

Além dele, havia um outro menino, que me zoava como se ainda estivéssemos na quinta série: “quantos dedos têm aqui”, “que cara eu estou fazendo”, “está vendo que dedo é esse aqui levantado” e todos os outros clássicos. Mas eu só tenho a agradecer pelo sentimento que todos nós tínhamos de que havíamos amadurecido, pois o menino foi logo desencorajado pelas caras de paisagem que as pessoas ao redor faziam para as encheções de saco dele.

A faculdade de psicologia era meio, digamos que, no mínimo estranha, nos primeiros períodos para quem entra achando que vai aprender a desvendar os mistérios da mente humana nas primeiras duas horas de aula.

Logo na segunda feira do primeiro período da faculdade, passávamos o dia inteira no campus do Fundão assistindo aulas no CCS – Centro de Ciências da Saúde. Anatomia, histologia, genética e embriologia. Isso tomava o dia inteiro.

A princípio, na verdade, ir para a faculdade teria sido um grande desafio para mim, mas a minha mãe conseguiu continuar me dando carona de carro nos dias que eu tinha aula de manhã cedo. (Nas primeiras cinco vezes que ela me levou no Fundão nós nos perdemos lá dentro. Uma comédia).

Então, carona para ir para o Fundão, na volta, vinha todo mundo junto. Tranquilo nesse ponto.

Mas, enfim, essas matérias no fundão ainda exigiam bastante da minha visão, só que eu estava com tanto gás e tão empolgada, que eu copiei os cadernos dos colegas, li os textos, fiz pesquisas na internet e dei conta de passar em todas as matérias biológicas; nos períodos seguintes, ainda tivemos fisiologia I e II. Eu até que gostava dessas matérias.

Estatística foi mais complicado, porque era chato e a empolgação inicial já estava passando.

No segundo e no terceiro período fizemos estatística I e II. Ok. A princípio eu até aturei. Eu ficava dentro de sala, li O Morro dos Ventos Uivantes naquelas aulas. No terceiro lá estava eu novamente, em estatística II. Mas… Eu já estava na faculdade! Já havia sacado há muito tempo que era possível ir e vir da sala de aula sempre que desejasse. Pedi dispensa das aulas, não queria ir mais nem para assinar a chamada, o professor disse: “Você faz o que quiser, minha filha, só que tem que ter nota pra passar”. Maravilha. A nota eu consegui.

Depois disso, nunca mais tive nenhum estresse com quadro ou slide ou qualquer coisa do tipo. Às vezes até tinha, mas era algo completamente dispensável.

A maior descoberta que eu fiz nessa época, a coisa mais importante que a faculdade me trouxe, foi a intuição profunda de que eu tinha nascido para aquilo ali mesmo: estudar.

Cara… Ninguém nunca teria suspeitado que esse era um dos meus principais talentos. Gostar de estudar de um tudo. No segundo período decidi que eu ia cursar o mestrado. E ia ser um mestrado em filosofia. Tem um salto aí, certo?

Foi um caminho tortuoso, mas muito bom.

Eu entrei na psicologia para saber o que era o ser humano. Mas a resposta que a psicologia dá para essa pergunta não é das mais satisfatórias. A psicologia comporta diversas visões diferentes a respeito do que é o ser humano, quais são as suas caraterísticas principais. Bom, logo eu esbarrei com duas explicações para este problema: uma metodológica e outra ontológica.

A explicação metodológica fala do método empregado pelas ciências humanas no estudo de seus objetos. Como o ser humano não é um objeto tal qual os das ciências naturais, como os objetos da física, por exemplo, que podem ser estudados por diferentes cientistas e todos vão chegar às mesmas conclusões a respeito dele; dependendo do método que você utiliza para estudar o ser humano, você vai chegar a uma concepção diferente a seu respeito.

A explicação ontológica, contudo, foi a que me encantou. O que precisamos é descobrir a essência do ser humano e construir uma teoria psicológica a partir daí.

Segui firme e forte por esse caminho e dei a cagada de encontrar um professor da filosofia para me orientar já no meu último período de faculdade. Tive que ir para a filosofia, pois a psicologia não é muito chegada a esse tipo de estudo teórico.

Isso é importante porque, ao longo da graduação, eu peguei inúmeras matérias na filosofia, inclusive lógica. E, no início do mestrado, como eu o cursei no Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, eu tive lógica de novo. Essas matérias dependiam do quadro e dos slides. E foi extremamente gratificante perceber que eu já não sentia nenhum enjoo ou frio na barriga ou nervoso com essa situação. Os anos já passados na faculdade e a confiança que eu havia adquirido, meu novo olhar sobre a educação, o reconhecimento de que não era eu a errada e a culpada por todos aqueles miseráveis anos escolares, enfim, depois de tudo isso, não enxergar do quadro deixou de ser um problema.

Ah, não posso deixar de mencionar um recurso tecnológico novo que também mudou a minha vida: smartfones com boas câmeras. O professor mudava o slide eu tum! Tirava foto e ficava ali com o slide na minha mão, ampliando-o o quanto fosse necessário.

Perto do final da faculdade, eu viajei sozinha para a Alemanha. O medo do problema de visão bateu novamente. (Imagina minha mãe como ficou). Eu ia fazer um curso de alemão lá e fiquei com medo de não acompanhar. E eu tinha que acompanhar por ser aluna bolsista. Ia pegar muito mal se eu não fosse bem neste curso. Eu estava nervosa de novo. Mas, por incrível que pareça, uma professora rodeada de vinte alunos do mundo inteiro conseguiu lidar melhor com a situação do que meus professores aqui no Brasil. Inclusive, nessa turma tinha um rapaz que via ainda menos do que eu! O material do curso era todo preparado com antecedência e, apesar da professora usar bastante o quadro, tudo que ela escrevia era dado para nós dois no papel e ela ia nos mostrando  onde estava conforme avançava a aula. Todas as placas de rua, monumentos e tal, eu via com a câmera do celular. O transporte também não era desafiador, pois eu só andava de trem e os ônibus eram pegos em um terminal. Pelo menos nas cidade de Freiburg e Berlin era assim, que foram as cidades que eu visitei.

De volta ao Rio de Janeiro, contudo, pegar ônibus ficou ainda mais difícil depois que os pintaram a todos de cinza.

Como as aulas da faculdade ocorriam em diversos horários, minha mãe nem sempre podia me levar. Eu sofri bastante nesse sentido e isso, infelizmente, até hoje não passou. É o inferno para o deficiente visual pegar ônibus nessa cidade.

Pedir ajuda? 1- Nem sempre tem gente no ponto, 2- às vezes eu tenho que falar com duas ou três pessoas quando o meu ônibus demora mais do que o delas, 3- tenho que ficar ouvindo mais blá, blá, blá: “cadê o óculos, hein?”, “Moça tão bonita, não tem que ficar com vergonha de usar óculos não”, “Vai pegar ônibus a essa hora? Vai para onde?”, “Sabe que faz mal forçar a vista assim, não é?”, “Cadê seu namorado para ajudar? Nessas horas é bom, não é?”, “Se você não consegue pegar ônibus, por que você não aprende a dirigir?”, “Ih… Olha o seu ônibus indo lá. Você quer que faça sinal no próximo, é isso?”. Acredite, não é fácil ser obrigada a depender da boa vontade dos outros.

Além dessas bobagens, certa vez, no ponto em frente a faculdade…

– Moço, com licença. Eu não estou conseguindo ver os números dos ônibus muito bem, o senhor pode me ajudar a pegar o 433?

– Você não enxerga não, é?

– Não eu tenho um problema de visão.

– Está conseguindo ver meu rosto?

– Assim no escuro não muito bem, não.

– Então me passa o dinheiro agora, anda!

Isso mesmo. Fui assaltada numa das vezes em que pedi ajuda. Meio traumático. Hoje em dia eu evito. Faço sinal para todos os ônibus até parar o meu. Inconvenientes: em pontos muito movimentados passam vários ônibus juntos e eu só consigo verificar um ou dois, eu fico correndo de um lado para o outro o que é bastante cansativo e demora.

Por falar em demora, certa vez eu consegui um estágio em um hospital psiquiátrico, na Gamboa. Era praticamente impossível chegar lá sozinha, eu só tinha uma opção de ônibus, que passava pouco em um ponto bastante movimentado. Quando eu não estava com um amigo que estagiava lá junto comigo ou com minha mãe, era um parto pegar aquela merda. O professor, psicanalista, usou isso e os meus questionamentos do pensamento lacaniano para me expulsar do estágio afirmando que não, eu não tinha problema com Lacan e nem com a minha visão, mas sim um problema psicológico que devia ser tratado em análise. Saí chorando de ódio da sala naquele dia, estava triste também, mas estava com mais raiva. Mais um imbecil dizendo que o meu problema era alguma neurose a ser analisada.

Hoje em dia, quando eu não posso me atrasar, eu vou de táxi. Uber eu evito pegar sozinha, porque não consigo enxergar a placa para conferir o carro. Mas na época daquele estágio eu não tinha dinheiro para isso ainda. O estágio, inclusive, não era remunerado.

Nem sempre é fácil transformar dinheiro em qualidade de vida, porque a despesa que eu teria que ter para me locomover com tranquilidade pela cidade é enorme. Se eu investir nisso, vou perder idas ao cinema ou passeios com meu marido e amigos.

Até hoje minha mãe me leva de carro a todos os lugares que é possível para ela. Além disso, eu vim morar em um apartamento que fica de frente para quatro pistas, em todas elas passam ônibus indo para diversos lugares do Rio. Também estou a vinte minutos do metrô. No caso dos ônibus, meu marido vê os números da janela do apartamento e me avisa pelo celular para que eu faça sinal. O ruim é que aqui é muito barulhento, tem bastante poluição e eu tenho medo de ficar no celular falando com ele enquanto estou no ponto. Mas eu não penso em me mudar tão cedo.